Para a escritora Andreia Prestes, reler as cartas que recebia dos avós durante a ditadura militar é como “se transportar para a infância”. Ela, que até os nove anos viveu o exílio com a família em Maputo, capital de Moçambique, se lembra de quando pedia que enviassem do Brasil suas guloseimas preferidas. Isso porque viviam “privações decorrentes do processo de guerra no sul da África e, por isso, faltavam alguns doces de que gostávamos”. Mais tarde, as memórias da neta dos ativistas Luís Carlos Prestes e João Massena se transformaram em livros infantis.
No mesmo período, em Brasília, o escritor e ilustrador Roger Mello convivia durante a infância com várias normas impostas pela ditadura militar, inclusive com a censura de obras literárias. Embora alguns dos autores que o acompanharam enquanto criança, como “Joel Rufino, Ziraldo, Ana Maria Machado, Ruth Rocha e Marina Colasanti” tenham sofrido perseguição política, segundo Roger, os censores pareciam mais preocupados com a literatura “para adultos”. “Por ingenuidade ou burrice, eles não percebiam as diversas camadas dos livros infantis e como eram múltiplos os significados das obras desses autores geniais.”
Conservar as lembranças sem alimentar os fantasmas do passado
As infâncias de Andreia Prestes e de Roger Mello vividas durante a ditadura militar revelam como a literatura foi uma espécie de refúgio. Isso porque o período implicava em famílias perdendo direitos, mulheres que não tinham voz, e crianças e adolescentes torturados. É nesse sentido que eles defendem que a literatura para crianças aborde a ditadura e seus efeitos.
Para Andreia, esses “lugares de memória” ajudam os mais novos “a compreender o que ocorreu no Brasil e o processo de luta para chegarmos hoje a essa democracia que vivemos”. Mas, segundo ela, o fato de ter pouca produção dessa temática para o público infantojuvenil pode significar que “ainda há muitos silenciamentos ao mesmo tempo em que há poucas respostas sobre os crimes cometidos pelo Estado. E isso se relaciona à forma como esse período é encarado no país”.
Já Roger afirma que falar sobre o assunto é importante para incentivar um processo de leitura crítica entre as novas gerações. Além disso, percebe como “os jovens leitores conseguem enxergar as incongruências e inconsistências de uma ditadura”. Para ele, as crianças têm “um evidente interesse por esse período histórico”, diz.
Também em entrevista ao Lunetas, a escritora chilena María José Ferrada conta que as escolas de seu país tentam trabalhar o tema em sala de aula. Porém, ainda são minoria porque há muitas famílias que não estão de acordo. Então, para ela, são as crianças qu epodem quebrar essa barreira. “Elas reservam especial atenção às coisas que aconteceram com outras crianças”. Por isso, é interessante “a construção ou o resgate de personagens que os representem de alguma maneira”.
Para incrementar o interesse desse público, ela defende uma combinação entre história e ficção literária. “As duas formas de contar são complementares. Enquanto o uso exclusivo do discurso histórico pode passar a impressão de que tudo foi algo distante e longínquo, os discursos literários podem desfazer essa sensação.”
Livros infantis que falam sobre a ditadura militar
As lembranças da casa dos avós ainda estão vivas. Neste livro, a autora conta o que sua visão de criança capturou em meio às reuniões que aconteciam naquele quintal. Conforme as dúvidas da época e da descoberta do amor em família, a história mostra como conviver com a ideia de nunca mais ver alguém tão querido. Isso porque o fio condutor é o desaparecimento do avô, João Massena Melo, na década de 1970. Andreia também publicou o título “Lila em Moçambique” (Quase Oito), em que registra as memórias da infância na África. Ela conta, a partir das aventuras da protagonista, o que era ser uma família brasileira no exílio.
É pelo olhar da menina Clarice que o autor aborda questões de diferentes gerações. Dúvidas sobre o poder dos adultos, os medos e as contradições entre proibir e liberar. A história mostra, portanto, uma Brasília na década de 1970, quando militares censuraram obras de arte e Clarice se fazia várias perguntas. Por que precisa jogar livros no Lago Paranoá? Por que sente medo até de pensar em voz alta? “Em Clarice, o pai de uma das personagens é um militar que trabalha ‘cortando’ cenas que ele considera ‘subversivas’ em filmes nacionais. Mas, ele se torna contraditório entre seus pares militares porque, depois de tantos filmes, tenta ‘salvar’ essas cenas”, explica Roger. O livro venceu o Prêmio Jabuti de Ilustração e de Melhor Livro Juvenil e faz parte do Programa Nacional do Livro Didático.
Neste livro de poesia, María José fez, em versos, uma homenagem a meninos e meninas que tiveram a vida interrompida pela ditadura no Chile. Assim, os poemas recebem os nomes de 34 crianças que estavam em relatórios oficiais do Estado. Cada um traz experiências simples do cotidiano, como, por exemplo, o contato com a natureza, a imaginação de sons e cores, a ansiedade para o próximo aniversário. Toda a leveza que deveriam ter vivido. É desse modo que a autora dedica um memorial a Alicia, Pablo, Soledad e tantos outros que não serão esquecidos pela doçura e coragem.
As marcas do regime militar na América Latina
Na América Latina, países como Paraguai, Bolívia, Peru e Argentina viveram governos autoritários com a imposição do regime militar. Há 60 anos, o Brasil encerrou a ditadura, uma das experiências mais longas da região. Mais tarde, em 1990, o Chile derrubou o governo de Augusto Pinochet, que deixou marcas violentas no país.
Censura ainda persiste na literatura
“O avesso da pele”, de Jeferson Tenório; “Amoras”, de Emicida; e “Meninos sem pátria“, de Luiz Puntel, são alguns exemplos de livros que foram recolhidos de escolas ou alvo de vandalismo. As justificativas apontavam que essas obras continham “palavras de baixo-calão”, “sexualidade”, “temas inadequados” e questionamentos sobre a liberdade religiosa.
Para Andreia Prestes, proibir livros para crianças e adolescentes tem relação com o avanço da extrema direita no mundo. “As ações vão desde o banimento de livros até a redução de verbas públicas para a promoção do livro e da leitura”, diz. “ Então, tudo isso surge com um movimento de censura de temas como gênero, raça, sexualidade e história. Por isso, é importante promover ambientes leitores nas escolas.”
Segundo ela, incentivar a leitura desde cedo impede que atos de censura amadureçam, principalmente na comunidade escolar. Mesmo que esses espaços sejam “reconhecidos socialmente pela consolidação dos valores democráticos”, é preciso cultivar um ambiente de diálogo. E também de escuta e exercício da cidadania, defende a autora.
Outra questão que ela comenta é a lembrança dos nomes de militares daquela época, assim como um processo de apagamento de revolucionários políticos e líderes populares. “Infelizmente existem escolas públicas com nomes de presidentes militares, que cometeram crimes de violação dos direitos humanos. Isso me causa um sentimento enorme de indignação”, revela.
Desse modo, ainda que a ditadura esteja nos livros de história e de literatura, assim como temas que questionam problemas sociais – homofobia, racismo e violência policial, por exemplo -, a censura persiste. E essa prática atinge diretamente as crianças em seu processo de descoberta do mundo. Daí, a defesa em manter a memória viva nos livros para a formação cidadã de crianças e adolescentes.
“Os estudantes têm que saber o que de fato ocorreu durante a ditadura militar no Brasil, quais vozes foram perseguidas e como isso serve de reflexão para a construção de um outro país”