Thomaz, Sandro e Alexandre compartilham da experiência de terem sido adotados. Os três revisitaram suas histórias ao se tornarem pais de filhos biológicos e revelam como essa jornada os transformou. Afinal, como dizem, a adoção não apenas influencia o modo como criam seus filhos, mas redefine a compreensão do que é família.
“Falar sobre adotivos é entender os impactos da adoção em toda a biografia da pessoa, inclusive na forma como ela se relaciona com seus filhos”, explica Larissa Alves, filha adotiva, pesquisadora da adoção pelo viés dos adotivos e cofundadora da Associação Brasileira de Pessoas Adotadas (Adotiva). A adoção também implica em considerar como homens enfrentam o trauma do abandono e como constroem vínculos afetivos quando suas próprias origens foram silenciadas, diz.
Como a adoção molda o olhar paterno
O jornalista Alexandre Lucchese, 42, vivencia a adoção como parte de quem é. Adotado ainda bebê, ele lembra que sua mãe conversava abertamente sobre o assunto desde cedo. “Ela dizia que eu havia chegado por outra barriga. A sensação que tenho é de ter nascido sabendo, mas fui assimilando conforme amadurecia”. Pai de Vicente, 5, ele diz que a adoção impacta a maneira como cria o filho porque é também “um modo de ver o mundo”.
A confirmação da adoção de Thomaz Rodrigues de Sousa, 49, aconteceu durante um almoço, há 16 anos. “Você não saiu de dentro de mim, mas entrou no meu coração” foi a frase que a mãe usou para comunicar o fato. Para ele, “a sensação de inconsistência existencial” diminuiu com a chegada dos três filhos biológicos (Inti Caire, 18, Aman Terra, 17 e Aylinn, 14). “Ressignifiquei minha vida, buscando superar o ‘trauma do abandono’, comum aos adotivos. Portanto, minha história ajuda as crianças a olharem de forma diferente para esse universo repleto de preconceitos”, conta.
Por outro lado, a revelação abrupta da adoção desestruturou a infância do psicólogo Sandro Pettezzoni, 51. Ele tinha sete anos quando ouviu da madrasta: “Seu pai não é seu pai e sua mãe não é sua mãe. Vocês foram adotados no sul do Brasil.” Depois disso, ele perdeu a convivência com a irmã, também adotiva, por uma década. “Minhas lembranças são de choro, tristeza e brigas entre os adultos porque nós não tivemos nenhuma espécie de suporte para lidar com aquela informação”, recorda.
Por isso, hoje ele tenta expressar as emoções mais livremente e estar presente para a filha Letícia, 23. Mais do que contar sua história, Sandro deseja que ela compreenda as nuances e potências que existem nos vínculos por adoção. “Adoção não é caridade. É um ato de filiação com responsabilidades de longo prazo. Precisamos abandonar o ideal de que tudo será igual à filiação biológica. Não é. E tudo bem”, afirma.
Conhecer as origens ajuda a seguir em frente
Como explica a pesquisadora Larissa Alves, as pessoas adotadas enfrentam duas questões cruciais: o direito às origens e o espelhamento genético.Ou seja, o primeiro é o direito de saber de onde se veio e faz parte da construção da própria identidade. Como Sandro diz, “o filho adotivo não é uma tábula rasa. Ele tem uma história pregressa e o direito de conhecê-la”.
Porém, durante muito tempo, ele acreditou que buscar suas origens genéticas seria uma forma de traição. “Parecia uma ingratidão, como se eu devesse aos meus pais adotivos o silêncio. Tinha medo de magoá-los. Mas eu não me sentia confortável, o tema não era bem explicado”, lembra. Foi apenas aos 50 anos que ele pôde reencontrar sua mãe biológica. “Conhecer minha origem foi uma chave compreensiva para minhas relações familiares adotivas. Fiquei mais humano, mais íntegro, e transmito tudo isso à minha filha”, relata.
Aos 30 anos, Alexandre encontrou sua mãe biológica e familiares por parte de pai, já falecido na época. Mas, junto da descoberta, veio a necessidade de lidar com antigas feridas. “Carregava muito ressentimento em relação ao meu pai. Ele teria condições de me criar, mas escolheu não fazer. Ao conhecer sua família e conversar com amigos, entendi as pressões sociais que ele vivia. Foi só quando parei de demonizá-lo que me permiti pensar em ter filhos. Antes disso, a paternidade parecia pesada, cheia de julgamentos”, conta.
Mais tarde, o nascimento de Vicente ajudou a ressignificar muitas dessas dores. “Percebi que passava a ele duas heranças: uma afetiva, ligada à minha família adotiva, e outra hereditária, relativa à família biológica. Mas hoje, elas se entrelaçam e se completam.”
Thomaz ainda não conheceu sua família biológica, mas segue buscando pistas do seu nascimento, marcado por uma adoção informal. Ou seja, sem registros e com a cumplicidade de cartórios.
O outro ponto, do espelhamento genético, é poder se reconhecer nos traços físicos e trejeitos de alguém. Larissa Alves lembra que crianças pretas adotadas por famílias brancas, por exemplo, podem crescer sem referências raciais ao seu redor, o que impacta a construção da autoestima e da identidade. O mesmo acontece quando há uma mudança radical de classe social ou regional. Isto é, para quem vive em contextos muito diferentes dos de sua origem, explica a pesquisadora.
Para Alexandre, a adoção cruza aspectos sociais, raciais e históricos, embora, segundo ele, muita gente foque nos desafios desse cruzamento. “Gosto de lembrar que isso constrói singularidades muito potentes que podem transformar todos ao redor”, analisa o jornalista. O filho Vicente cresceu próximo da mãe e da irmã biológicas de Alexandre e, para ele, “é mais uma parte da família, um laço de afeto”.
De forma gradativa e sincera, o assunto da adoção também é recorrente na família de Thomaz. “Especialmente quando falamos dos avós que não conheceram e da genética que começa comigo”, diz.
Sandro, por sua vez, considera a força que a adoção traz de “repensar o que nos vincula uns aos outros”.
O que os pais adotados passam para os filhos?
A chegada de Letícia trouxe à tona não apenas o desejo de Sandro Pettezzoni ser um pai presente, mas também o reconhecimento de que precisava, antes de tudo, acolher sua criança interior que um dia ouviu a verdade sobre ser adotado de forma abrupta e solitária. “Para conseguir ser um pai suficientemente bom, eu precisei revisitar minha história. Hoje estou mais disponível, mas esse processo de cura levou tempo.”
Primeiro ele precisou superar o medo de não poder gerar filhos. “Imaginava que, como minha mãe adotiva, eu também não poderia ter filhos biológicos. Então, a adoção mal elaborada me cercava de dúvidas. Uma criança não é retirada de sua família à toa. Isso marca a vida de todos”, pontua. Hoje ele entende que a qualidade da paternidade não está na biologia, mas na honestidade afetiva que se constrói diariamente. “Quanto maior a implicação da família adotiva, da família biológica e dos filhos adotivos em um ambiente que favoreça o diálogo afetuoso, melhor”, analisa.
Em sua atuação profissional, Sandro acompanha adoções mal elaboradas de crianças por meio da escuta. Além disso, ajuda pais que buscam transformar suas feridas em afetos mais conscientes. “Sair do isolamento envergonhado e encontrar outras famílias é muito especial”, diz o psicólogo.
Já Alexandre compartilha sua própria história de adoção com o filho, mas também traz outros relatos de adultos que foram adotados no livro “Vida de adotivo: a adoção do ponto de vista dos filhos”.
Para Thomaz Rodrigues de Sousa, criar os filhos biológicos é como criar uma nova história de si. Assim, ver seu envelhecimento e educá-los de “maneira emancipatória, livre de dogmas” demanda lapidação constante. “Eles olham de forma diferente para esse universo repleto de preconceitos sobre pessoas adotivas.”
Adoção requer apoio psicológico e letramento racial
No Brasil, a fila da adoção envolve um problema numérico: há mais pretendentes que crianças disponíveis. Conforme dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) de 2024, mais de 32 mil pretendentes estão aptos a adotar, mas pouco mais de 4 mil crianças e adolescentes estão disponíveis para adoção. No entanto, segundo Larissa Alves, a questão é mais complexa. “Se hoje a fila fosse zerada, amanhã a situação seria a mesma. É preciso chegar à origem do problema. A adoção é reflexo de desigualdades estruturais, racismo, moralismos e falta de apoio às famílias de origem”, observa a pesquisadora. Por isso, ela defende o preparo adequado dos pretendentes à adoção, com letramento racial e apoio psicológico ao longo da vida.