Reprodução “O menino Nito” / Ilustrações: Victor Tavares

Foi no diálogo com o médico que o menino Nito encontrou a solução para os choros engolidos.

Reprodução “O menino Nito” / Ilustrações: Victor Tavares

Ao ouvir do pai que “homem não chora”, Nito precisou encontrar uma forma de esconder suas lágrimas.

Reprodução “O menino Nito” / Ilustrações: Victor Tavares

Com equilíbrio, ele aprendeu que chorar e sorrir fazem parte da infância de todos os meninos.

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‘O menino Nito’ e a literatura negro-afetiva de Sonia Rosa

Imagem mostra uma ilustração do personagem menino Nito jogando um barquinho de papel em um lago.

Sonia Rosa afirma que, para ela, escrever é identificar os afetos. A autora define sua literatura como negro-afetiva, em que não pode faltar amor e crianças negras em situações de protagonismo, respeito e acolhimento.

Seus livros nascem da escrevivência, como aprendeu com a escritora mineira Conceição Evaristo, e são povoados por personagens e situações de seu cotidiano. As décadas como professora na educação básica do Rio de Janeiro consolidaram a experiência de ouvir, contar e escrever histórias, que a menina Sonia Rosa já gostava desde a infância.

“Eu fui uma criança muito amada e minha família sempre acreditou em mim. Mesmo diante das adversidades, aprendi a ir em frente e não vacilar. Isso ajudou a fortalecer meus passos e ir em busca dos meus projetos de futuro”, relembra Rosa.

O primeiro livro nasceu de uma história de família e levou alguns anos até ser publicado: “O menino Nito”. Prestes a completar 30 anos, o título já trazia temas como a representatividade negra e a construção de uma masculinidade saudável desde a infância.

“O menino Nito”, de Sonia Rosa e Victor Tavares (Pallas)

“Homem que é homem não chora” foi o que Nito ouviu do pai diante da choradeira. Depois da conversa séria, o menino passou a engolir todo choro que aparecia. E de tanto engolir, foi ficando pesado e amuado. A família achou que ele estava doente e, sem saber o que fazer, chamou um médico. O doutor não trouxe remédios, pois a solução era de outra natureza.

Nesta entrevista exclusiva para o Lunetas, a autora conta os caminhos percorridos por “O menino Nito” desde o lançamento, sobre o que inspira e embasa seu trabalho nestes quase 30 anos de produção literária para as infâncias. Confira:

Memórias, inspirações e abordagens de Sonia Rosa

Lunetas – Quais foram suas inspirações para criar “O menino Nito”?
Sonia Rosa –
A minha inspiração é uma história de família. Quando eu conheci meu marido, ele trouxe na bagagem os amigos e a família, entre eles o Nito, um homem negro, o caçula de muitos filhos. Esse apelido veio porque quando ele nasceu era tão bonito que passou a ser chamado assim e com o tempo comeram o “bo” e ficou só “Nito”. Como ele chama Francisco, perguntei porque não Chico e ele me contou essa história, que eu achei muito provocativa.

Da história de família, como nasceu o livro?

SR – Eu era professora alfabetizadora, já fazia poesias desde cedo e tinha experiência com a escrita, a leitura e de contar história para os meus alunos. Então, em 1988 resolvi inventar narrativas e me inspirei nessa de família para criar meu primeiro texto literário que se tornaria livro anos depois. Não tive respostas positivas até 1995, quando, enfim, “O menino Nito” foi publicado por uma pequena editora [Memórias Futuras], mas que tinha força no mercado. O lançamento foi na Bienal do Livro Infantil do Rio de Janeiro, ótimo para uma estreia.

“O Nito não ficou na gaveta. Enquanto ele não se tornava livro, era protagonista nas minhas aulas. Trazia o texto literário para alimentar o imaginário dos meus alunos e ampliar o vocabulário e a intimidade com a escrita e a leitura.”

O livro já adiantava temas como masculinidade e representatividade negra, que sabemos serem essenciais, mas que não tinham espaço até pouco tempo atrás. Foi uma escolha intencional?

SR – Sim, foi uma escolha intencional. Eu sou uma mulher negra de pele clara e tenho irmãos de pele preta. Então foi natural para mim querer trazer a representatividade para a obra, até porque naquela época tínhamos poucos protagonistas negros nos livros infantis e não se focava nessa questão da representatividade. Com relação à questão de gênero, era um comportamento comum naquela época, via isso até na minha casa. Meus pais faziam interferências com os meus irmãos com relação à sensibilidade. Que bom que evoluímos e hoje isso, embora ainda exista, não cabe mais.

Você acredita que desde que escreveu “O menino Nito” tivemos uma evolução com relação aos temas que o livro aborda?

SR – Tivemos sim. Quando lancei o Nito, eram poucos os autores com esse trabalho literário de apresentar a representatividade negra positiva. Dois nomes que destaco são Júlio Emílio Braz e Rogério Andrade Barbosa, que estão já há muito tempo trazendo as histórias africanas e os personagens negros para o cotidiano dos livros.

A lei 10.639, de 2003, é um marco que mudou a educação e tornou obrigatório que a Educação Básica de escolas públicas e particulares aborde o legado do povo africano, sua potência, competência e resistência. Depois ela foi ampliada pela lei 11.645, de 2008 ao incluir os povos indígenas. O mercado editorial entendeu mais rapidamente do que as escolas a demanda por livros com protagonismo negro. Assim o mercado se ampliou para essa temática e foram surgindo novos autores.

Hoje temos Kiusam de Oliveira, Otávio Júnior e muitos outros autores trabalhando nessa perspectiva. Então, houve de fato uma mudança do cenário e acho que muito por conta dessa lei. Foi uma desconstrução da perspectiva racista que a literatura infantil carrega desde Monteiro Lobato, onde a presença do negro e o tratamento dado a personagens negros era de muito descaso e desrespeito. Acredito que a lei contribuiu para essa percepção e, consequentemente, desconstrução.

Como a literatura para as infâncias pode contribuir no debate de temas sociais, como os que aparecem no livro?
SR – Eu costumo dizer que os livros formam mentalidades e, portanto, atuam na forma como as crianças pensam. Por mais que tenhamos um racismo estrutural na sociedade, não podemos manter nem legitimar. É preciso combater e transformar. As obras literárias ensinam sem querer ensinar através das suas imagens, da forma como são apresentados os personagens, como é a escrita. A criança lê nas entrelinhas, levanta hipóteses, amplia o conhecimento de mundo, seu vocabulário e sua forma de pensar, conflitua com o que vê e vai avançando. É impressionante o poder que a literatura tem e não só para criança.

“Quando temos a valorização das identidades negras na literatura, isso faz com que os livros para as infâncias atuem como verdadeiro e eficiente letramento racial, em uma perspectiva de mudança de cenário.”

“O menino Nito” está prestes a completar 30 anos. O que este personagem e suas histórias trouxeram para a escritora?
SR
– O Nito foi um grande divisor de águas na minha vida. Está entre os grandes acontecimentos, junto com o dia que eu conheci meu marido e a chegada dos meus três filhos. Este livro deu para mim uma outra vida, diferente daquela que tive na infância e na adolescência, com dificuldades. Ele me abriu muitas portas, me fez conhecer pessoas e chegamos a muitos lugares. Foi comprado pelo PNLD e por conta disso fiz viagens para falar sobre ele pela Fundação Vale. Fez parte do programa Cor da Cultura, do Canal Futura. Ele me deu até a possibilidade de ter bibliotecas e salas de leitura com meu nome! Esse reconhecimento eu devo à trajetória que começou pelo Nito. E continua me trazendo muita alegria.

Em 30 anos de carreira como escritora profissional, que marcos você destaca?

SR – “O menino Nito” é o primeiro deles, depois dele vieram quase 60 livros. Um momento importante foi a seleção do meu livro “Enquanto o almoço não fica pronto” pelo Programa Leia com uma Criança, em 2021. Imagina 1 milhão de exemplares do título chegando às crianças de todo o Brasil. Outros momentos que guardo com carinho são recentes. Fui convidada pela Fiocruz para escrever uma história de literatura negro-afetiva sobre vacinas. Escrevi Maria Rosa, o amor e as vacinas com ilustrações de Graça Lima em 2023 [pela Portinho Livre, plataforma de conteúdos infantis da Fiocruz]. E agora há poucos meses, no Museu da História e da Cultura Afro-brasileira (MUHCAB) temos a Sala de leitura Sonia Rosa. Isso para mim é um dos maiores reconhecimentos.

Depois de “O menino Nito” vieram muitos livros…

SR – Apesar das dificuldades para publicá-lo, não desisti. Enquanto não conseguia uma editora, fui estudando e criando novas narrativas. Fiz cursos para entender a dinâmica do mundo dos livros e da leitura. Amigos escritores me levavam às escolas para contar histórias para as crianças. Nesse meio tempo, tive mais dois filhos e fui inventando mais e mais histórias. Hoje já são quase 60 livros publicados.

Você define a sua obra como literatura negro-afetiva. Poderia nos contar sobre este conceito?

SR – Na minha dissertação do mestrado em relações étnico-raciais fiz um passeio pela minha obra. Então eu percebi algo que era recorrente, muita gente preta e muito amor. Isso no que escrevo e na minha vida. Não existe nada mais poderoso do que o amor, nada mais humano. Mas as pessoas racistas não conseguem identificar humanidade na pessoa negra. Por isso criei esse conceito de literatura negro-afetiva, fundamentado no que ensina Cuti [um dos criadores da série Cadernos Negros e do grupo Quilombhoje], que fala em literatura negro-brasileira.

“Na minha escrita está presente também a dimensão do afeto.”

O que não pode faltar na sua literatura, levando em conta esse conceito?

SR – Não pode faltar amor, criança negra em situação de conforto, de protagonismo, de respeito e de acolhimento. Uma pessoa negra que vai escrever sobre negritude tem mais material, mais conteúdos de vida. Até mesmo uma pessoa branca pode fazer literatura negro-afetiva, mas para isso é preciso ter conhecimento e consciência. Só que é preciso ter atenção para não criar bobagem como encontramos por aí.

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