“Estamos pedindo socorro.” O apelo é de Júnior Hekurari Yanomami, presidente do Conselho Distrital de Saúde Indígena (Condisi) Yanomami, sobre a onda de violência que os indígenas vêm sofrendo nos últimos anos e que, segundo ele, tem afetado diretamente as crianças da sua etnia. “Nós estamos morrendo por violência dos garimpeiros e não há ajuda do Governo Federal”, denuncia.
O relato de Júnior é um recorte da realidade de violência na Amazônia evidenciada pela pesquisa “Violência contra crianças e adolescentes na Amazônia Legal”, produzida pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) a pedido do movimento Agenda 227. O estudo indica que, em 2021, a taxa de morte violenta de crianças e adolescentes na região foi 34,3% maior que a média nacional. Enquanto no restante do Brasil o índice de morte violenta na faixa etária de 0 a 19 anos é de 8,3 para cada 100 mil habitantes, na Amazônia Legal esse número sobe para 11,1.
De acordo com o pesquisador Aiala Couto, que pesquisa crime organizado e crimes ambientais na Amazônia, e um dos autores do Anuário 2022 do FBSP, o número elevado de mortes violentas de crianças e adolescentes está relacionado ao crescimento geral da violência na região, o que ele atribui a dois principais fatores: o avanço do narcotráfico e do crime organizado, e a manutenção dos conflitos fundiários.
“O primeiro relaciona-se à vinda de facções do Sudeste para a Amazônia, bem como ao surgimento de grupos locais e regionais, o que vem acentuando as disputas pelo controle de territórios e das rotas importantes na região”, afirma o pesquisador. “Em relação aos conflitos fundiários, há um avanço da fronteira econômica relacionada ao setor madeireiro, agropecuário e de mineração, enquanto que, por outro lado, houve um desmonte das políticas ambientais e do aparelhamento dos órgãos de fiscalização do Estado, o que criou uma instabilidade institucional acompanhada de vulnerabilidades que atingem os povos da floresta e camponeses.”
“Num cenário de violência crescente, crianças e adolescentes em situação de precarização e desigualdades tornam-se vulneráveis para as ações do crime organizado”
“Faltam políticas públicas que possibilitem a geração de oportunidades e construção de cidadania plena. A violência é a presença na ausência, ou seja, embora não goste do termo ‘ausência do Estado’, reconheço que há um vazio de poder que vem sendo ocupado pelo crime”, opina Aiala Couto.
A promotora Mônica Freire, coordenadora do Centro de Apoio Operacional da Infância e Juventude do Ministério Público do Estado do Pará, também destaca o cenário de desigualdade como potencializador de diversas formas de violência a que as crianças ficam sujeitas, sobretudo “as crianças mais pobres, que residem nas periferias, cujas famílias vivenciam fortemente a falta de renda”, avalia.
O estudo encomendado pela Agenda 227 sinaliza ainda que a violência sexual também é maior na Amazônia Legal, quando comparada ao índice nacional. As meninas são as principais vítimas e são mais violentadas na Amazônia (89,2%) do que no restante do país (86,0%).
Freire explica que os casos de exploração sexual de crianças na região, além de abranger em maior número meninas na faixa etária entre 9 e 14 anos, acontece de forma mais intensa em municípios com pior IDH, “muitas vezes em troca de poucos recursos e/ou alimentos”, comenta.
Entre os Yanomami, não é diferente. A falta de proteção social faz das meninas e mulheres as principais vítimas da violência sexual, denuncia Júnior. “Tem criança e adolescente de 11, 12 e 13 anos grávida. Já nasceram filhos de garimpeiros. Só que elas têm muito medo de denunciar, porque eles ameaçam com revólver na cara”, relata.
O relatório “Yanomami sob ataque: Garimpo ilegal na Terra Indígena Yanomami e propostas para combatê-lo”, lançado pela Hutukara Associação Yanomami em abril deste ano, relata casos de estupro de crianças e adolescentes indígenas, além de citar mortes após ataques de garimpeiros a comunidades da TIY ou por afogamento provocado por embarcação utilizada no garimpo.
Crianças indígenas sob ameaça e o urgente enfrentamento
O projeto “Cartografia das violências na região amazônica”, também produzido pelo FBSP, chama atenção para a interiorização da violência na Amazônia. A taxa de violência letal nas zonas rurais e de floresta nesta região apresentou crescimento de 9,2% entre 2018 e 2020, na contramão do que ocorreu no restante dos municípios brasileiros, onde houve queda de 6,1%. “Esse fenômeno aponta para a importância de conflitos agrários e crimes ambientais, que coexistem e se imbricam no território com as dinâmicas das facções criminosas”, afirmam os autores do projeto, no documento.
“Medo é uma palavra pequena para descrever o que essas populações vivem. Isso aí é terror”
O alerta sobre as violências que afetam diretamente as populações indígenas em suas terras é de Ronaldo Amanayé, da Federação dos Povos Indígenas do Pará (Fepipa) e da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai). Segundo ele, “muitos povos estão sob ameaça, e não tem como preservar as crianças dessa realidade de violência. Não é só de garimpeiro: é madeireiro, fazendeiro, pescador, todos querendo adentrar os territórios. O pessoal está acabando com a Amazônia”.
“Isso atinge diretamente todo o modo de vida de uma comunidade. As pessoas têm que se deslocar de um local para o outro, por exemplo, porque a terra está sendo invadida”, segue Ronaldo. “Isso também é uma violência, porque o pessoal não está caçando, não está trabalhando na sua roça, com medo de ser morto por garimpeiro.”
Entre os Yanomami, Júnior, presidente do Condisi, denuncia que, com a presença dos garimpeiros, além da disputa pelo território, os indígenas precisam conviver com outras violações de direitos e a onda de violência em terras indígenas também provoca a morte de crianças indiretamente, por meio da contaminação por mercúrio, da desnutrição crônica e mortes decorrentes de doenças tratáveis, como malária. “Postos de saúde nas comunidades estão sendo fechados e profissionais de saúde não querem mais atender por medo da violência. As crianças estão bebendo água suja, morrendo por falta de assistência de saúde“, relata.
Júnior comenta que os garimpeiros facilitaram a entrada de armas, álcool e drogas no território. “Já pedimos para as autoridades e para a Polícia Federal retirar os garimpeiros de imediato, porque estamos perdendo controle na terra indígena. Eles armaram adolescentes Yanomami e estamos perdendo muitas crianças, até por morte de tiros. Os garimpeiros incentivam as crianças a matarem outros Yanomami, como aconteceu na comunidade Xitei. Morreram três crianças.” Além disso, Júnior denuncia o aliciamento de crianças. “Eles colocam as crianças para segurança deles”, afirma.
Esta reportagem entrou em contato com a Polícia Federal de Roraima, mas a sua Assessoria de Comunicação informou que nenhum porta-voz estava disponível para entrevista. De acordo com o Ministério de Justiça e Segurança Pública (MJSP), em reportagem, a Operação Guardiões do Bioma incluiu “Terras Indígenas” como um de seus eixos de atuação neste ano e investiu R$ 2,5 milhões para a proteção da TI Yanomami. “As ações ostensivas de repressão a ilícitos ambientais e extrusão de garimpeiros visam combater a extração ilegal de minério e a prática de outros crimes na região, além de proteger os índios da ação de invasores, preservar o meio ambiente e garantir a segurança dos povos indígenas”, informa. O Ministério Público de Roraima também foi acionado, mas até o fechamento desta matéria não houve resposta. Estudos preliminares da Cartografia das violências na Amazônia indicam que a mera militarização e/ou envio de forças de segurança de fora da região para suprir demandas pontuais de comando e controle “não só é extremamente cara, mas pouco efetiva”. Para os autores, é preciso investir no fortalecimento do trabalho integrado de diferentes órgãos e Poderes (como polícias, Ministério Público, IBAMA e ICMBio, entre outros).
Num cenário de pobreza e aumento das violências que afetam direta e indiretamente as crianças na Amazônia Legal, sobretudo aquelas pertencentes a grupos originários e comunidades tradicionais, são inúmeros os desafios, considera Lucas Lopes, representante da Agenda 227 e Secretário Executivo da Coalizão Brasileira pelo Fim da Violência contra Crianças e Adolescentes. Ele reforça a importância de assegurar acesso aos equipamentos e serviços básicos nas comunidades, pois, quando precisam acessá-los, “o trajeto, atravessado pela mineração, pecuária, desmatamento e outras atividades realizadas de forma ilegal, é perigoso”, pontua. “Políticas públicas devem ser potencializadas e efetivadas, num pacto federativo com ações coordenadas para a ampliação de ofertas de serviços para crianças, adolescentes e suas famílias, sobretudo em educação, assistência, saúde e cultura.”
“Se a questão ambiental está no cerne dos conflitos na Amazônia, nela também pode estar a chave para a redução da violência”, avalia Lucas. Para ele, o desenvolvimento pleno das infâncias na região e a redução da violência observada também dependem da preservação do bioma amazônico e das formas de manejo populares, que “promovem a segurança alimentar, espaços seguros de socialização e regulação dos conflitos, e reduzem a ocorrência de trabalho infantil, abandono escolar, exploração sexual e exposição precoce a fatores de risco”, explica.
O Movimento Agenda 227 elaborou, em 2022, o Plano país para a infância e a adolescência, entregue aos candidatos à Presidência da República nas últimas eleições, com propostas de políticas públicas para que sejam garantidos os direitos de crianças e jovens no Brasil. O documento propõe o combate a “todas as formas de violência contra crianças e adolescentes baseadas em etnia, raça e gênero, modificando padrões sexistas e machistas e construindo valores antirracistas, de paz, não violência e valorização da diversidade”.
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A pesquisa considera morte violenta intencional os registros de homicídios dolosos, latrocínios, lesões corporais seguidas de morte e mortes decorrentes de intervenções policiais.