“Só os passarinhos recebem comida na boca”, observa a educadora Fabiolla Duarte. Crítica em relação ao famoso método da distração ou de utilizar a comida como moeda de troca por recompensa, ela procura trazer um outro olhar sobre a introdução alimentar. “Para dar qualquer salto de desenvolvimento com um bebê, eu tenho que aprender qual é o percurso cognitivo desse indivíduo”, afirma.
Para isso, segundo ela, não existe método, fórmula e nem é necessário o estímulo. Apenas é necessário deixar com que a criança se interesse pelos alimentos e construa sua própria trajetória de relação com a comida. O papel dos cuidadores? Dar espaço para que isso aconteça, sem pressa: “O desafio é desconstruir a ideia de que nós somos os protagonistas da introdução de alimentos.”
Fabiolla se formou na Inglaterra, pelo Emerson College, e no Brasil, pela Faculdade Belas Artes de São Paulo com licenciatura em artes visuais. Seu trabalho de conclusão de curso fez o registro cultural da alimentação colonial na obra do pintor francês Jean-Baptiste Debret.
Ela é idealizadora do Colher de Pau, um projeto com foco na introdução de alimentos e no comportamento alimentar infantil, a partir do ponto de vista do desenvolvimento da criança. Conversamos com a especialista sobre a prontidão motora, o caminho dos bebês em busca do alimento, as possibilidades iniciais e o papel dos adultos nesse processo.
Confira a entrevista com Fabiolla Duarte
Lunetas – Como surgiu o Colher de Pau?
Fabiolla Duarte – Foi pensando na introdução de alimentos para o meu filho Hari, hoje com sete anos. Pesquisei várias linhas, como a macrobiótica, a antroposofia e o crudivorismo. Como todas falavam coisas diferentes, até mesmo os pediatras entre si, fiz uma síntese de todas as linhas e fui experimentando com ele [Hari]. Dei alguns passos para frente e outros para trás até que percebi que era importante esperar meu filho se movimentar na direção da comida. Ou seja, quando percebi que algumas coisas não davam certo e deixei elas acontecerem sozinhas, foi aí que eu aprendi sobre introdução alimentar.
Quando o bebê senta, já está pronto para comer?
FD – Não necessariamente. Sentar é, ao meu ver, uma interpretação superficial do que significa prontidão motora. Prontidão motora é o sinal mais visível e que mais revela sobre a maturidade digestiva. É, por exemplo, imaginar que qualquer filhote na natureza só come se vai até o alimento. É pensar que um filhote, em algum momento, movido pela curiosidade, vai na direção de um mundo de possibilidades.
Ele vai até a comida movido pelo interesse de saber o que aquilo é e não porque está com fome e a comida vai resolver o problema dele. Ele não tem fome, porque mama no peito ou na mamadeira. O bebê só dá conta de se relacionar com esse novo mundo, cheio de novos tons, cores e novas formas geométricas, no qual a comida está inserida, se ele faz isso pelas próprias pernas. Então, vai muito além do que só sentar.
Existe um melhor método para introduzir os alimentos sólidos?
FD – Não acredito em método nem em receita alguma para nada. Eu acredito em quem é o cuidador e como ele está exercitando uma escuta conectada com a criança. Para dar qualquer salto de desenvolvimento com um bebê – e a introdução alimentar é um salto de desenvolvimento-, eu tenho que aprender qual é o percurso cognitivo desse indivíduo. Para isso, vou utilizando o que ele vai me fornecendo de material, como pista de como lidar com ele. Não uso fórmula e receita para aplicar nele, porque isso achata o indivíduo. O método traz um olhar que tem como expectativa que todos tenham os mesmo resultados, nas mesmas datas, com a mesma performance. Caso contrário, não deu certo. Essa é uma visão violenta aplicada às crianças e a nós mesmos.
As crianças podem ter traumas alimentares?
FD – Dependendo do nível de insistência dos adultos, pode deixar alguma cicatriz. Ou até mesmo desencadear uma reação crônica em relação à comida ou algum trauma. Em suma, cuidar da introdução de alimentos de um bebê é apenas dar espaço para as tentativas dele de se aproximar do cenário alimentar. É como quando o bebê começa a andar. Eu não olho no relógio e no calendário para isso, mas vamos vendo os ensaios dele e servindo de companhia.
Nossa tarefa é deixar a casa mais segura para a exploração dele. Pega essa cena e copia para a introdução de alimentos. Isso muda todo o resultado, porque quando uma criança consegue pegar a comida a partir do investimento motor e cognitivo dela, ela tem um banho bioquímico de prazer. E isso entra na canaleta dos sentidos, dentro do campo do seu aprendizado.
Mas e a ideia de que a criança precisa de estímulos, o que você pensa disso?
FD – Eu detesto a ideia do estímulo. Hoje, na educação e na pediatria moderna, não se acredita muito em estímulo, mas em campo do aprendizado. Uma criança não precisa de estímulo para nada, a não ser que ela tenha alguma síndrome ou necessidade específica. Fora disso, a criança está, por exemplo, geneticamente programada para andar e, uma hora ou outra, ela vai conseguir. Ela precisa apenas ter oportunidade de se movimentar quando sentir vontade para isso. E a nossa função é apenas dar espaço para isso acontecer.
Condições sociais e financeiras afetam a estrutura ideal para que isso aconteça?
FD – A meta não é comer. Essa é a premissa básica, seja em casa – com pai, com mãe, com babá -, seja na creche ou em qualquer cenário. A primeira camada é ele curioso com a comida da casa. Quando se percebe isso, o ideal é dar espaço, mas não dar comida só porque ele está reparando. Uma hora ele vai tentar pegar. E chega uma hora em que ele se cansa de tentar e quer conseguir. Nesse processo, o cérebro está sendo utilizado, ele está desenvolvendo o movimento de pinça, coordenação, mãos, olhos e outras alavancas, mobilizadas pelo interesse.
Estamos falando, então, de um tempo indeterminado?
FD – A introdução de alimentos não precisa acontecer com seis meses. Tem gente que está pronta com seis, mas outras não. A Organização Mundial da Saúde recomenda o aleitamento materno exclusivo até os seis meses e como o principal alimento até um ano. Então, o bebê tem tempo para se adaptar e ir criando um repertório, assim como inserindo os nutrientes sem pressa.
Você mencionou as recomendações da OMS, mas no Brasil o aleitamento materno exclusivo até os seis meses gira em torno de 40% apenas. Existe alguma orientação específica para este cenário?
FD – Primeiro é preciso entender por que as mães não conseguem amamentar até esse período. De modo geral, somos mal orientadas. Amamentação não é uma história fácil. Outra questão é que a indústria de alimentos tem um apelo muito grande em relação às fórmulas infantis. Para esse cenário, é preciso existir consultores de amamentação e pediatras que estimulem o aleitamento.
Outro coisa que eu acredito é que só faz sentido comer quando se consegue digerir, assimilar e eliminar. Algumas irritações das mucosas internas e em alguns casos de alergias são um resultado da introdução precoce de alimentos. Ou seja, mais traz estresse do que aproveitamento. É preciso ter enzimas digestivas, tônus nos músculos peristálticos do intestino e todo um sistema para realizar a digestão. A comida não faz sentido de ser comida se não se pode aproveitá-la.
As crianças precisam comer sempre orgânicos?
FD – As crianças precisam comer orgânicos, os adultos e os velhinhos também. O Brasil é campeão mundial no uso de agrotóxicos proibidos. Por isso, o assunto é bastante sério, por isso é importante buscar as pesquisas que mostram os efeitos cumulativos e os impactos na saúde. Mas não tendo como comprar orgânicos, o melhor é optar por alimentos da época, que necessitam de menos agrotóxico na produção.
De todo modo, é preciso ressaltar que o preço dos orgânicos no supermercado são absurdos. Para se ter acesso é preciso ir em feiras. Uma outra estratégia é procurar nas cidades a CSA, ou Comunidade que Sustenta a Agricultora, que, além de ser um sistema de aprendizado, fairtrade e conscientização, é mais barato. Se está sem dinheiro, vai na hora da xepa na feira, mas não use os processados.
Em quem você se inspira para realizar o seu trabalho?
FD – Durante todos esses anos, eu fui estudando muitas coisas, fazendo uma síntese e observando os bebês. Mas há referências que respeito muito, como o pediatra espanhol Carlos González, autor do livro “Meu filho não come”, sobre introdução de alimentos e comportamento infantil. Outro livro essencial é o “Baby-led Weaning” (“O desmame guiado pelo bebê”, em português), das difusoras do BLW pelo mundo, Gil Rapley e Tracey Murkett.
Alguma outra questão que você considere essencial dentro deste tema?
FD – Nunca forçar uma criança a comer. Nunca distrair uma criança para fazer ela comer. E, quando a criança for crescendo, nunca barganhar com “se comer arroz e feijão, pode comer sobremesa”. A comida não pode ser algo que tenho que suportar para merecer algo melhor depois. Isso afeta a relação da pessoa com a alimentação mais tarde. Os adultos que conheço que têm uma relação ruim com a comida também têm históricos parecidos na infância. A maioria dos bebês que eu conheci não estavam prontos aos seis meses. Com sete anos, o Colher de Pau já atendeu quase 2 mil pessoas e a média de prontidão é de oito meses. Isso não é científico, mas foi a minha observação.
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