Partindo da própria dor, a diretora Eliza Capai costura sua história com a de outras seis mulheres que viveram uma perda gestacional, uma morte neonatal ou um procedimento de aborto, no documentário “Incompatível com a vida”.
Vencedor do prêmio de melhor documentário do festival “É tudo verdade – Festival internacional de documentários”, o longa brasileiro partiu do desejo de “tirar esse tema de dentro dos quartos”, já que a vida interrompida de um filho que não teve a oportunidade de crescer gera um dos lutos mais solitários que existe, como ressalta a diretora. “É um assunto que o casal ou a mulher geralmente vive dentro do próprio quarto por causa de sentimentos como tristeza, vergonha e culpa. É sobre um filho que ninguém mais conheceu, a não ser a mãe que estava com ele na barriga, ou no máximo também o pai”, explica. O filme tem estreia prevista para 2024, exclusivo no canal “Curta!”, que viabilizou a produção.
“O luto de quem passa por uma perda gestacional ou neonatal é muito solitário”, Eliza Capai.
No discurso da premiação, Capai disse que espera que o filme seja “um abraço e também uma catarse” para quem passa por esse tipo de luto. Ela destacou ser inaceitável a morte de uma mulher a cada dois dias no Brasil por causa de processos inseguros de abortamento. “Precisamos tirar o debate do aborto do campo da opinião pessoal e da crença religiosa e encará-lo como um debate sobre saúde pública”.
O título do filme, “Incompatível com a vida”, corresponde a um termo médico que denomina o diagnóstico pré-natal de malformação congênita, implicando na morte do feto ainda no útero ou após o parto. Sem levantar bandeiras pró ou contra o aborto, Capai defende que, no filme, não há discursos, e sim vivências. “Acredito que isso leva o público a questionar a violência do nosso sistema hospitalar e as nossas leis sobre o aborto e o sistema reprodutivo em geral”, pontua.
Além de temas políticos sobre a violência aos direitos reprodutivos e ao corpo da mulher, o documentário toca em feridas abertas da sociedade, como o amparo a quem precisa ou escolhe interromper uma gravidez, mas sempre a partir da preocupação de seguir um enredo baseado em aspectos emocionais, como lembra a diretora.
Um mosaico poético de histórias e perdas
Numa primeira camada narrativa, Capai compartilha imagens da sua gestação; depois, depoimentos amparam uma troca entre mulheres que viveram situações parecidas; e, por fim, imagens inspiradas nos sentimentos em comum das personagens que vivenciaram algo além da frustração materna são mescladas às narrativas, formando um mosaico, de maneira poética e até “onírica”, como define a diretora.
“Eu sei a dor dilacerante de gestar um bebê que você não vai ver”, conta uma das personagens.
A água, elemento presente em vários momentos, serve de metáfora para o mergulho profundo no mar que transcende as dores do corpo enlutado, por exemplo, explica Capai. Na tentativa de acolher quem passou por essa situação, “o filme tem uma carga de dor, mas, ao mesmo tempo, traz muita empatia ao mergulhar nesses lutos e na busca de sair dessa situação para ressignificar a vida”, pontua.
Leia mais