Os heróis habitam o espaço onde imaginação e realidade se encontram. Com seus superpoderes em defesa do bem, por realizarem a nossa vontade de cuidar das pessoas e por sua capacidade de salvar o mundo, eles podem impactar a vida crianças e adultos que se dediquem a acompanhar a sua jornada. Como os heróis podem inspirar na vida real?
“Gente, de todo tamanho, precisa da fantasia para dar conta da realidade”, aponta Carla Jarlicht, especialista em literatura infantojuvenil e consultora educacional da Casa do Saber (RJ). Ao abordar questões humanas complexas, os textos literários são importantes fontes de autoconhecimento, ampliação da consciência e formação da identidade, na medida em que “nos fazem acessar nossos conteúdos afetivos, provocam a autorreflexão e nos levam a uma (re)organização interna que nos ajuda a lidar melhor com os sentimentos, direcionando-nos à superação dos próprios limites e a encontrar saídas nos labirintos da vida”, comenta Carla.
Esse espelhamento que fazemos entre nossa vida e a saga do herói envolve imaginação e realidade, explica Michel Alexandre Fillus, doutor em Psicologia Clínica. “Nossa imaginação é um mundo cheio de realidade, só que expressa em uma linguagem diferente. Lidamos com os problemas diários a partir de nossos recursos internos que nos ajudam a enfrentá-los”, diz.
Nossa força pessoal heróica não é inventada, mas uma representação simbólica e verdadeira de uma realidade que estamos vivendo
Os heróis de hoje
No contexto da pandemia de coronavírus, que colocou o mundo em suspensão, refletindo nossa ânsia por intervenções heróicas para dar conta de desafios grandes demais, são destacados como heróis, na vida real, os profissionais da saúde, sobretudo enfermeiros que enfrentam os próprios medos, para lutar, dia a dia, na linha de frente, contra esse inimigo invisível que tem feito vítimas reais.
Em homenagem a esse profissionais, o artista Bansky deixou o seu recado no muro de um hospital no sul da Inglaterra: um menino brinca com um boneco de enfermeira enquanto o Batman e o Homem-Aranha descansam aposentados num cesto.
Quando Pauline Neudl, enfermeira que está trabalhando diretamente com pacientes de Covid-19, em São Paulo, viu a arte fez questão de logo atualizar sua foto de perfil numa rede social. “Senti uma identificação muito grande, como se enfim reconhecessem a enfermagem como uma profissão heróica”, comenta. “É claro que a gente não quer só aplauso, mas o destaque é importante para evidenciar nossa luta diária, como nos doamos 100% acompanhando os pacientes e oferecendo a eles os cuidados mínimos”.
Para Malena Contrera, doutora em comunicação e semiótica, considerar os profissionais de saúde heróis da vida real durante a pandemia pode ter um duplo efeito: “evidenciar o potencial que todos temos como verdadeiros heróis de fazer a diferença em prol do bem comum, não apenas para si mesmo; mas também projetar nestes profissionais uma aura de poder que lhes permite enfrentar a situação sozinhos, independente das condições desumanas de trabalho e isentando outros setores responsáveis, como o Estado e as instituições sociais, o que é bem perverso.”
Já Carla aprova “voltar os holofotes para essas pessoas reais, ‘gente como a gente’”, pois isso favoreceria a aproximação e poderia gerar uma identificação ainda mais potente e transformadora, além de reforçar a mensagem de que “todos podemos ser heróis, dependendo da capacidade de cada um assumir o compromisso consigo mesmo e se arriscar ou se sacrificar pelo outro.”
“Uma narrativa, como essa pandemia, sem a possibilidade de um herói da saúde seria impossível de ser vivida de forma minimamente esperançosa”
No livro, o mitologista Joseph Campbell analisa um modelo de herói que se repete em mitos ao redor do mundo, com base nas teorias de Freud e Jung, fundadores da psicanálise. Para ele, o heroísmo está mais relacionado a atitudes altruístas, que excedam a capacidade humana e sejam uma demonstração do sagrado do que força física ou habilidades paranormais. Em outras palavras, um herói bem-sucedido consegue dominar e transcender o próprio ego em prol de uma causa que beneficie a todos.
Inspirado pelo trabalho da mãe enfermeira, Theodoro, 5 anos, cuida de seus próprios pacientes fictícios em casa, muitos contaminados pelo novo coronavírus. Quando Pauline chega em casa, ele já a alerta para não encostar em nada e a incentiva a ir direto pro banho; depois, quer saber quantos pacientes a mãe cuidou e ajudou a salvar naquele dia. Pauline também é mãe de Eloíse, de 11 meses.
No universo infantil, é possível que esses profissionais da saúde já tenham conquistado o lugar de heróis, considera Carla, porque “lutam bravamente contra bruxas e dragões da realidade e, assim, as protegem do perigo”.
“Saber que no meio desse caos há alguém tentando nos conduzir a um lugar mais seguro é acalentador para a criança”
Para Michel Fillus, “apesar de não terem poderes mágicos, são heróis encarnados e humanos, com um compromisso ético capaz de nos inspirar. Esse modelo de heroísmo deverá permanecer em nossa memória”, diz. Além disso, “as histórias de bravura e coragem desses profissionais podem auxiliar na construção de valores fundamentais para a coletividade, sobretudo empatia e responsabilidade. Afinal, eles lutam por todos nós”.
Eleja seus heróis particulares
“Quase sempre os heróis são revestidos de estereótipos, o que ajuda a reforçar preconceitos e influenciar, de forma camuflada, as crianças”, comenta Malena. Ela ainda ressalta o papel (e a responsabilidade) da mídia ao sugerir heróis e alerta cuidado com o foco em “valores ideais”. Como representatividade importa, para viabilizar que crianças de qualquer etnia ou gênero possam se identificar e ter seu valor reconhecido, Michel recomenda que “os modelos heróicos tenham o tom da pele, a forma do cabelo, a ancestralidade do nosso povo.”
Você pode ser um herói na vida real
“A figura do herói nos oferece a oportunidade de olharmos para dentro de nós e buscarmos o nosso herói interno, que está apenas aguardando a hora de ser convocado a entrar em cena”, indica a consultora educacional Carla.
É no “interesse humano” que reside essa capacidade empática: entender que somos feitos da mesma matéria e compartilhamos das mesmas emoções, dos medos às esperanças. Ao assumirmos essa possibilidade de heroísmo em nosso dia a dia e dedicar essa energia em prol de outra pessoa, somos convocados a “sair da zona de conforto, enfrentar desafios, tomar decisões, lutar pelo o que é certo”, diz ela, mas considerando que podemos “vacilar, tombar, cair e, então, seguir em frente de novo. Não somos imbatíveis”.
O envolvimento infantil permite à criança pensar nela mesma como capaz de transcender os limites impostos pela vida real, em um contexto mais adaptado às suas possibilidades de ação. Então, ela “coloca uma máscara e vai salvar o mundo, veste uma capa e voa, fala uma palavra mágica que a transporta para outro lugar”, comenta Carla.
Mas, para além do universo da imaginação, o arquétipo do herói também simboliza uma motivação para o desenvolvimento de um “eu” que se sinta, progressivamente, capaz de se autogerir, adquirindo uma representação madura de si mesmo, sentindo-se importante no seu meio e adaptando-se às exigências da vida, aponta o psicólogo Michel, exemplificando:
Leia mais
“Pequenos atos heróicos da criança são grandes feitos para o seu desenvolvimento, como ir para escola sozinha, enfrentar a noite em seu quarto, vencer o medo de um monstro, separar-se dos pais em alguns momentos. O sucesso das primeiras provas irá fortalecê-la, preparando-a para outras mais difíceis que virão.”