Era janeiro de 2019. Rayane, 11, e sua mãe, Cláudia Pessoa, 49, aguardavam ansiosas para acolher em sua casa duas crianças: um menino de 1 ano e 8 meses e uma recém-nascida de 3 meses. A família foi logo colocando a bebê para dormir e o menino ficou brincando de bola no terraço. “Minha filha sempre perguntava: ‘mãe, que dia vai chegar a criança?’. Quando eu disse: ‘é hoje!’, os olhos dela brilharam, foi aquela festa, uma felicidade”, relembra.
Cláudia integra o programa Família Acolhedora, em João Pessoa (PB). O serviço proporciona que crianças e adolescentes em situação de risco e vulnerabilidade possam conviver com famílias que estão dispostas a dar-lhes acolhimento por determinado período. Esse tipo de ação alternativa ao acolhimento institucional (abrigos e casas-lares) garante a convivência familiar e comunitária, possibilitando minimizar os impactos do afastamento da família de origem e dando a oportunidade à criança de ter uma referência familiar.
A dona de casa conheceu o serviço por uma amiga, fez o cadastro, participou da capacitação e, após três meses, já estava apta para acolher.
“É uma forma de ajudar essas crianças e fazer parte da história delas”
Entusiasmada, ela diz ser gratificante contribuir com o desenvolvimento da criança por meio de ensinamentos e orientações – um cuidado bem diferente das experiências vividas por muitas meninas e meninos em situação de abandono, violência, ruptura familiar ou que permanecem anos em abrigos até conhecerem a experiência do acolhimento. “Acolher vai muito além de dar um ou prover alimento”, explica Cláudia.
“Acolher uma criança é deixá-la fazer parte da nossa família”
O Serviço de Acolhimento em Família Acolhedora (SAF), em João Pessoa, atualmente atende 17 crianças e adolescentes em lares temporários. Pela casa de Cláudia, já passaram três duplas de irmãos, dois bebês recém-nascidos e uma menina de 4 anos. Hoje, ela acolhe duas irmãs, uma com 11 e outra com 1 ano de idade.
Esse ambiente familiar e comunitário proporcionado pelo serviço contribui para o desenvolvimento da criança e do adolescente. O maior benefício é que, ao invés de ir para os abrigos, onde recebem uma abordagem mais coletiva, a família acolhedora tem um olhar responsável e cuidadoso até o final do trâmite judicial que envolve a tutela. O objetivo do acolhimento é a reintegração familiar – o retorno do acolhido à família de origem ou extensa – e, caso não haja essa possibilidade, a criança ou o adolescente acolhido poderá ser inserido no Sistema Nacional de Adoção (SNA).
Segundo o Estatuto da Criança e do Adolescente, o prazo máximo de acolhimento temporário deve ser de 18 meses, mas especialistas afirmam que nem sempre é possível definir a situação da criança nesse período. A condição da criança ou adolescente é reavaliada a cada três meses por uma equipe multidisciplinar, para que possa ser determinada a reintegração à família de origem ou a colocação para uma família substituta.
Para a advogada, educadora e psicóloga Ângela Farias, de Maceió (AL), o acolhimento familiar é um serviço importante para o desenvolvimento psicossocial na infância. “A convivência familiar e comunitária é um direito da criança e do adolescente. Quando as crianças vão para os abrigos e orfanatos, ela fica institucionalizada, sem referências, convivendo em um espaço físico comum. Ela tem cuidadores que são responsáveis por várias crianças, com quem elas podem desenvolver o vínculo afetivo ou não. O abrigo é um lugar com cuidado e equipe técnica, mas não é uma família”, explica.
Ângela é mãe adotiva e conhece de perto a realidade dos abrigos. O filho Davi chegou à sua casa aos 6 anos, vindo da casa de uma família temporária que o acolheu.
“É a família acolhedora que vai cuidar e dar a referência de casa, que trará emoções mais positivas e vínculos mais saudáveis às crianças. Mesmo que seja um lar provisório, vai reverberar socialmente”
Nordeste é a região com menor número de cidades com Família Acolhedora
Dados de 2020 do Censo da Secretaria Nacional de Assistência Social (SNAS), do Ministério do Desenvolvimento Social, mostram que embora o serviço de Família Acolhedora seja preferencial por lei, no Brasil, apenas 33% das cidades apresentam crianças sendo acolhidas nesta modalidade. No Nordeste, das 1.793 cidades da região, apenas 45 ofertam o serviço de Família Acolhedora, o que representa apenas 2,5% dos municípios – último lugar no ranking em comparação às outras regiões.
Em relação às capitais da região, Salvador (BA), Fortaleza (CE), João Pessoa (PB), Teresina (PI) e São Luís (MA) possuem o serviço. Já Recife (PE) não chegou a realizar o cadastro por conta da pandemia de covid-19.
Em nota, a Secretaria de Desenvolvimento Social e Direitos Humanos de Recife justificou o não funcionamento do serviço. “Uma vez que o programa consiste no acolhimento de crianças e adolescentes em residência de famílias acolhedoras cadastradas, seria necessário uma equipe técnica para realizar o serviço e acompanhar as famílias interessadas. Entretanto, devido à pandemia, não foi possível dar andamento ao concurso público previsto para este ano, com o objetivo de contratar 301 profissionais para reforçar diversos serviços da Secretaria”, diz um trecho do documento.
Já em relação aos estados, Sergipe ainda não oferece o serviço de acolhimento. Em Alagoas, apenas o município de Igaci está cadastrado para oferecer o serviço por meio da Lei 696/2018, que dispõe sobre o Sistema Único de Assistência Social e institui, no artigo 10, o Serviço de Família Acolhedora. Procurada diversas vezes pela reportagem, a prefeitura de Igaci não se pronunciou a respeito, nem informou se o serviço estava sendo ofertado.
No caso do Serviço Família Acolhedora no Nordeste, apenas 2,2% das crianças são acolhidas nesta modalidade, sendo que 97,8% desse público estão no acolhimento institucional.
Segundo a juíza coordenadora da Infância e Juventude, do TJ/AL, Fátima Pirauá, a ausência do serviço na capital alagoana traz prejuízos. Ela conta que já fizeram algumas tentativas de começar o programa em Maceió, sem êxito. “Vamos continuar pleiteando o cadastro de famílias para receber crianças em situação de violação de direitos e de risco”, defende. A reportagem questionou a Secretaria Municipal de Assistência Social do Município de Maceió que, em nota, informou o interesse da gestão em implantar o serviço, além da necessidade de uma articulação com a Vara da Infância e Juventude da capital para realizar o cadastro e a escolha dessas famílias, bem como a definição de questões administrativas para a sua implantação.
Como ser uma Família Acolhedora
As famílias que querem ser voluntárias passam por um processo de avaliação e capacitação ofertado pela equipe técnica do SFA, geralmente formada por profissionais da área da psicologia, assistência social e pedagogia. O processo de habilitação das famílias que desejam acolher consiste em entrevista, análise documental, visita domiciliar, consulta inicial com psicólogo e capacitação.
“Caso a família acolhedora desista do acolhimento, a equipe técnica realiza a migração do acolhido para outra família, mantendo a modalidade de acolhimento e garantindo o direito desta criança ou do adolescente à convivência familiar e comunitária. O retorno ao acolhimento institucional é uma possibilidade quando o acolhido não se adapta à modalidade de acolhimento familiar”, explica Talita Mayra Ramos de Souza, assistente social do Serviço de Família Acolhedora em Fortaleza (CE).
Os requisitos para a inscrição
As Famílias Acolhedoras são preparadas por uma equipe técnica que irá acompanhar e monitorar a família durante todo o período do acolhimento. Ao acolhedor cabe prover a criança e ao adolescente condições básicas para o seu desenvolvimento (alimentação, cuidados médicos, odontológicos, higiênicos e de educação), além de oferecer condições para uma socialização e um desenvolvimento psicomotor, cognitivo e de linguagem.
Toda Família Acolhedora recebe um salário mínimo como ajuda de custo pelo período determinado de uma adoção provisória. Só será permitido acolher uma criança ou adolescente por vez, exceto na condição em que se tratar de grupo de irmãos; neste caso, o número poderá ser ampliado. Os casais, mulheres e homens solteiros podem ser acolhedores, mas com idade mínima de 21 anos. As famílias são selecionadas, capacitadas e acompanhadas por uma equipe técnica do Serviço de Acolhimento. As inscrições acontecem geralmente na Secretaria de Assistência Social do município.
Documentos necessários:
- Comprovante de residência
- Atestado de antecedentes criminais
- Atestado de saúde física e mental
- Conta corrente para crédito da bolsa-auxílio
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O Marco Legal da Primeira Infância estabelece que a União é responsável por implementar o serviço no país, como política pública, com equipes que organizem o acolhimento temporário de crianças e de adolescentes em residências de famílias selecionadas, capacitadas e acompanhadas que não estejam no cadastro de adoção.