Foi na pretensa segurança do seu lar, que ela – ainda pequena – começou a sofrer abuso sexual. Quando não aguentou mais, fugiu de casa. Sem dinheiro e dependendo da ajuda de estranhos, foi parar em uma rede que explora crianças e adolescentes, sobretudo em regiões pobres do Brasil.
Essa é uma das muitas histórias contadas em “Um crime entre nós”, que investiga os motivos que posicionam o Brasil em segundo lugar entre os países com maior número de ocorrências de exploração sexual infantil, segundo a The Freedom Fund. Lançado neste Dia Nacional de Combate à Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes (18/5), o filme dirigido por Adriana Yañez, com idealização e produção da Maria Farinha Filmes e dos Institutos Liberta e Alana, pode ser assistido no GNT Play e na plataforma gratuita Videocamp, mediante criação de cadastro.
O documentário foi lançado no contexto do distanciamento social, adotado como medida preventiva à pandemia do coronavírus, quando instituições alertaram para o aumento da violência contra grupos vulneráveis em todo o mundo, especialmente mulheres e crianças. Na época da pandemia, em Pernambuco, denúncias de violência sexual contra crianças haviam aumentado 50%, apesar das subnotificações e do silenciamento da vítima, já que o principal espaço de denúncia, a escola, estava fechado. Dados do Anuário do Fórum de Segurança Pública de 2022 mostram que o crime de estupro de vulnerável (menores de 14 anos) responde por 75% dos casos de estupro no país em 2021: foram 35.735 vítimas com até 13 anos por ano. O pior cenário está na faixa etária entre 10 e 14 anos, chegando a um patamar de 173,1 vítimas a cada 100 mil pessoas. Em relação à exploração sexual, o FDP aponta que, em 2020, foram 683 vítimas de 0 a 17 anos, número que cresceu para 733, em 2021, representando um aumento de 7,8% na taxa por 100 mil habitantes.
Aproveitando a campanha do Maio Laranja, que destaca o combate ao abuso de crianças e adolescentes, convidamos a colunista do Lunetas, Viviana Santiago, gerente de gênero e incidência política da Plan International Brasil – parte da rede de impacto e mobilização do “Um crime entre nós”, e uma das maiores e mais antigas organizações pelo desenvolvimento das crianças do mundo – para nos ajudar a entender por que a exploração sexual infantil passa por questões de gênero, raça e classe.
Leia a entrevista com Viviana Santiago
Lunetas – No filme “Um crime entre nós”, alguns depoimentos mostram que existe uma sensibilização maior aos casos de abuso sexual infantil que de exploração. Por que isso acontece?
Viviana Santiago – Abuso é uma violência imposta à criança e ao adolescente; já a exploração existe pela possibilidade do adulto comprar sexo em troca de dinheiro, presente, brinquedo, até um pacote de bolacha. Então, esse adulto pensa que, se a criança aceitou a troca, ela consentiu.
Mas antes de tudo eu queria dizer que a gente não deve ficar muito confortável na percepção de que existe maior sensibilidade ao abuso do que à exploração, como se isso significasse uma grande massa de proteção a crianças e adolescentes vítimas de abuso sexual, porque não há. Quase não há sensibilidade na sociedade para perceber crianças e adolescentes exploradas sexualmente como vítimas e existe uma pequena sensibilidade em relação a quem sofre o abuso. Digo isso porque a sociedade não cuida e não ouve esta criança ou adolescente, principalmente meninas, que não tiveram uma rede de proteção, que sentiram medo de compartilhar os abusos com a família, ou contaram e foram desacreditadas. Ainda existe a culpabilização da vítima ou o pensamento patriarcal e machista de que os adultos teriam licença para explorá-la – se “a menina está vestindo uma saia curta, estava provocando”.
Precisamos considerar também a sociedade do consumo, que altera o foco do ser para ter. E as redes de exploração estão cientes disso. Lembro a história de uma professora de região metropolitana de Recife, às margens da BR, que diz ter cansado de tirar crianças de dentro dos caminhões, pois eram aliciadas pelos caminhoneiros por troca de dinheiro pra comprar um tênis, um perfume ou uma blusa da marca.
Se pudéssemos desenhar um perfil, quem são estas crianças e adolescentes que sofrem a exploração sexual no Brasil?
VS – Um marcador presente é a pobreza.
Mas não é porque a exploração sexual infantil nasce na pobreza, que somente a pobreza a alimenta. Só é possível manter esta rede de exploração, com recursos para comprar e vender corpos e vidas de crianças e adolescentes como se fossem objetos, é porque também há uma rede de poderosos donos de grandes contas bancárias.
A exploração sexual afeta, na maioria, crianças em situação de vulnerabilidade, e são muitos os casos: que vêm de lares marcados pela violência doméstica e abuso sexual, que fugiram de casa por não se sentirem seguras e, na rua, voltam a ser vítimas da violência e da exploração sexual. A vulnerabilidade econômica também atua como forte vetor: muitas crianças precisam contribuir para o sustento da família e são aliciadas pelas redes de exploração sexual.
Outros perfis são o de meninos gays e de meninas trans, que começam a se posicionar no mundo a partir de uma experiência que não a heteronormativa. Suas histórias são marcadas por não serem aceitas em casa e serem expulsas e, nas ruas, também podem ser dragadas por essas redes de exploração.
Lunetas – O Brasil tem 500 mil casos de exploração sexual contra crianças e adolescentes por ano, ocupando o segundo lugar no ranking de exploração sexual infantojuvenil, sendo que apenas 10% dos casos são notificados, de acordo com a ChildFund. Também ocupamos o quarto lugar no ranking de casamento infantil do mundo, segundo dados do Banco Mundial. O quanto isso está ligado a questões de classe social e de raça?
VS – Falar de classe é falar de raça no Brasil. As pessoas insistem no argumento numérico: “tem muito preto na favela, porque tem muito preto no Brasil”. Aí questiono: se a maioria da população é formada por pretos, por que a maioria dos estudantes de medicina, dos deputados, dos ricos não são pretos?
O Brasil foi o último a abolir a escravidão e não se preocupou em reparar a violação cometida contra escravizadas e escravizados, mas somente indenizar as perdas econômicas dos ex-proprietários dos escravizados. Assim, barrou acesso a terras, à educação, à saúde e ao processo de desenvolvimento desse coletivo liberto, impactando também a existência dos que já nasceram livres. É uma população destinada a um processo de exclusão. É uma pobreza negra e formada por uma maioria de mulheres desempregadas, trabalhadoras informais ou com empregos precários.
Percebe-se que a maioria das crianças que sofre abuso e exploração sexual são negras. E a intersecção de classe e raça ajuda a explicar porque é tão difícil tirar crianças e mulheres negras dessa condição.
É como se a sociedade naturalizasse mexer com uma menina negra quando ela passa na rua, porque falam ser “da cor do pecado”. Estudos recentes mostram que homens acreditam que meninas negras de apenas oito anos conhecem mais do sexo do que as brancas.
Vale citar também o conceito de necropolítica, do filósofo Joseph-Achille Mbembe, sobre aqueles que merecem viver e os que podem ser deixados para morrer. Percebemos isso quando a sociedade aplica a perspectiva do pelo menos para pensar a exploração sexual de crianças e adolescentes negros (e todas as demais violações de direitos como trabalho e casamento infantil): “pelo menos, ela está comendo”, “pelo menos, tem abrigo”. Precisamos lutar pela perspectiva do pelo máximo.
Como, então, podemos proteger estas crianças que estão tão vulneráveis e expostas à violência dentro e fora de casa?
VS – Primeiro, precisamos fortalecer a política de enfrentamento à violência doméstica, seguido dos canais de denúncia. É necessário também promover uma formação extensiva das pessoas que rodeiam as crianças no sentido de detectar as violências, físicas e psicológicas, pois muitas vezes essas crianças estão dentro de um processo de dominação e medo e, sozinhas, nunca conseguirão sair. Essa formação se estende às crianças para que percebam a violência mais cedo, com habilidades que lhes permitam pedir ajuda. Além disso, precisamos fomentar programas sociais para ter o necessário – e não o mínimo – para viver de maneira digna.
Acima de tudo, devemos continuar disputando o lugar da criança e do adolescente como pessoas em desenvolvimento incapazes de entender a exploração, e trazer a narrativa das consequências do impacto para que a sociedade se posicione contra a violência, e não se alienando em relação ao assunto ou estigmatizando a vítima. Pesquisas indicam que uma minoria dos violadores são pedófilos (que têm a doença, o transtorno). A violência contra meninas e mulheres vem de uma perspectiva patriarcal, da objetificação do corpo da mulher, “quanto mais nova, melhor para dominar’. Se a gente não interdita este comportamento, a gente o reedita.
Por que é importante a educação sexual dentro das escolas, e de que forma ela pode ser aplicada?
VS – A sexualidade faz parte da dimensão do humano, do prazer, que expressamos de maneiras diferentes ao longo da vida. A educação integral para sexualidade na primeira infância envolve reconhecer e nomear seu corpo, entender noções de privacidade, de autoproteção. À medida que a criança cresce, outros conteúdos aparecem: aprendem sobre gravidez, práticas sexuais com segurança, consentimento. Elas aprendem sobre o direito a dizer não, e entendem o sentido essencial do não. Isso é fundamental, pois muitas meninas e mulheres tiveram como primeira experiência sexual o estupro e só percebem isso depois de adultas.
Está em curso hoje a retirada da ideia da criança-cidadã para a criança que é só filho-propriedade. Tudo só pode chegar à criança por via da família. Isso é equivocado porque muitas famílias não contam com habilidades para lidar com esses conteúdos de forma pedagógica e livre de estigmas e preconceitos e também porque, em última análise, é na família que acontecem muitas das situações de violação de direitos de crianças, inclusive violência sexual, mas não se limitando a ela.
Em artigo recente para o Lunetas, você alertou sobre o risco do uso de internet por crianças e adolescentes, durante o isolamento domiciliar para combater a pandemia de Covid-19. Quais são suas recomendações práticas para que pais percebam indícios de exploração sexual? Qual o caminho para a denúncia?
VS – No contexto da pandemia, existe o pensamento do universo on-line como o lugar de aulas, de lives, de contação de histórias. Mas também é um ambiente perigoso. Educamos filhos e filhas para a emancipação. Contudo, precisamos saber quando essas crianças e adolescentes conseguem realmente criar a capacidade crítica de estarem atentos aos sinais de perigo. Precisamos sempre acompanhar e mediar a relação da criança no espaço on-line para que possam acessar conteúdos adequados ao seu desenvolvimento.
Perceba se ela está consumindo um conteúdo compulsivamente, se há irregularidade nos horários de dormir, se ela está com dificuldades de conciliar internet com outras tarefas, se tem uma atitude furtiva de rapidamente mudar de tela quando um adulto se aproxima. Tudo isso são sinais de alerta para situações que podem estar colocando essa criança ou adolescente em risco – ou já pode estar dentro do contexto de violência. Além disso, mães, pais, cuidadoras e cuidadores devem evitar publicar fotos dos filhos e filhas na internet, principalmente sem seu consentimento, pois isso faz parte dos cuidados para manter segurança e privacidade das crianças.
Por que é tão difícil combater a pornografia infantil na internet?
VS – Além de a sociedade não entender como problema a ser resolvido, existem muitos que consomem este conteúdo e acham que não é problema seu. Se você derruba uma página, surge outra em seguida com milhares de seguidores. Estes consumidores têm certeza da impunidade, acreditam que o prejudicado será apenas o criador da página.
Precisamos responsabilizar e constranger quem consome, para entenderem que eles são os culpados, e não as vítimas.
Mais de 70% das pessoas que presenciaram violência sexual contra crianças e adolescentes não denunciaram. Como então combater a exploração sexual infantil em uma sociedade que silencia e culpabiliza a vítima?
VS – Precisamos retomar a ideia de que criança e adolescente fomentada pelo ECA [Estatuto da Criança e do Adolescente], e não a visão de adultos em miniatura, que existia na Idade Média. Precisamos colocar uma lupa sobre as causas e consequências da exploração sexual infantil e de outras formas de violência, as dores que afetam o corpo e a alma para o resto da vida dessa criança.
Precisamos acabar com o silêncio e com a resposta evasiva que alimenta a violência.
Como denunciar exploração sexual infantil?
- Disque 100 – Disque Denúncia Nacional: o Disque Direitos Humanos, ou Disque 100, é um serviço de proteção de crianças e adolescentes com foco em violência sexual, vinculado ao Programa Nacional de Enfrentamento da Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes, da SPDCA/SDH. Trata-se de um canal de comunicação da sociedade civil com o poder público, que possibilita conhecer e avaliar a dimensão da violência contra os direitos humanos e o sistema de proteção, bem como orientar a elaboração de políticas públicas.
- Para crimes cibernéticos: procure a delegacia local ou a especializada em crimes virtuais, se sua cidade conta com uma. Reúna provas como cópias e prints de mensagens para contribuir com as investigações. É possível também buscar apoio da organização Safer Net, que atua na área de promoção de direitos humanos na internet.
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Na sexta-feira (22/5), às 14h, a Plan International realiza o webinar “Um crime entre nós: se é sobre as vidas das nossas crianças, assumimos a posição”, no seu canal do YouTube. Viviana Santiago participa da conversa com Clélia Rosa, do Luderê Afro Lúdico, e Mafoane Odara, do Instituto Avon.