Seja forte, seja provedor, tenha confiança em si próprio. O “manual imaginário do homem viril” é composto por uma série interminável de mandamentos e estereótipos de masculinidade. Do cheiro ideal à conquista das mulheres até as fórmulas de sucesso profissional e liderança política. Se há um denominador comum nesse roteiro, é tentar fugir de tudo aquilo que é identificado como “feminino”.
“Quer constranger e punir os meninos? Diga a eles que estão agindo ‘como menininha'”
A pedagoga e e especialista em educação sexual Caroline Arcari observa como os sentidos da masculinidade vão sendo elaborados desde a infância. “Muitas vezes, os meninos não querem cumprir o papel do controlador ou garanhão. Mas a cobrança em relação ao corpo e às atitudes é gigante, então eles se veem excluídos se não se comportam conforme a masculinidade vigente”, explica.
Arcari é autora do livro “Princesas de capa, heróis de avental: o livro das possibilidades”, que estimula o pensamento crítico e o combate às desigualdades e violências reforçadas por estereótipos. Ela utiliza personagens do universo de meninos e meninas para debater a divisão de papéis de gênero a partir de uma linguagem acessível às crianças.
A pedagoga enfatiza que os padrões estimulados de comportamento, juntamente com a assimetria de poder entre homens e mulheres, se materializa, por exemplo, nos números alarmantes de denúncias de violência física e sexual: a maioria das vítimas de estupro são meninas e mulheres, enquanto a maioria esmagadora dos autores de abuso ou violência são homens. “A violência sexual está ligada de forma estreita às questões de gênero”, diz a especialista.
“Enquanto as meninas continuarem sendo ensinadas a serem mais submissas e passivas e meninos autorizados a serem agressivos e com comportamento predatório, criamos um ambiente propício para as violências”
Se, por um lado, o machismo é fatal para as mulheres, para os homens trata-se também de uma grande armadilha. “Todos saem perdendo”, lamenta Arcari.
O sofrimento dos homens é outro
No entanto, se homens também são limitados pelos padrões vigentes de comportamento, isso não faz deles vítimas. O psicólogo Alexandre Coimbra atenta que “o sofrimento que o patriarcado impõe aos homens é incomparavelmente menor do que aquele que impõe às mulheres, porque ele dá poder aos homens, inclusive, para violentar as mulheres. Então, estamos falando de um sofrimento de outra ordem”.
“Reconhecer essa situação leva à primeira e mais urgente tarefa: romper com a ideia de que o homem tem direito sobre o corpo da mulher, poder este que o psicólogo chama de “indignidade”.
“A coisa mais importante de dizer a um menino é: você, homem, não tem o direito de invadir o corpo de uma mulher de forma alguma, se não existe consentimento. Além disso, perceba, nas formas mais sutis, como você invisibiliza uma mulher cotidianamente”, aconselha.
“Para os homens, o grande prejuízo é não poder expressar aquilo que sentem”, diz o terapeuta. Ao contrário, o que se espera é geralmente que sejam racionais e pragmáticos, silenciando ao máximo as emoções. Por esse motivo é que “engole o choro” é uma frase tão perigosamente comum na experiência de vida dos meninos.
A emergência de uma nova masculinidade
Entre as quatro paredes da terapia, quando os sentimentos e as lágrimas podem fluir naturalmente, e sem julgamentos, a possibilidade de aprendizado quando há empatia é inesgotável.
“Entre as possibilidades de exercer uma paternidade consciente e mais libertária, a discussão gira em torno de coisas básicas, como evitar a divisão entre brinquedos ‘de meninos’ e ‘de meninas'”, comenta Alexandre.
Além disso, segundo ele, os pais podem ser orientados a conversar com os filhos sobre sensibilidade e medo, desestimulando a ideia de que precisam sempre ser fortes ou dominadores. “Temos que permitir a eles chorar e falar quando sentirem tristeza, não apenas expressá-la através da raiva, que é a emoção mais legitimada”, explica o psicólogo.
Desconstruindo o ideal de “macheza”
“Entre o gatilho e a tempestade
Sempre a provar
Que sou homem e não covarde”
(Letra da música “Negro drama”, dos Racionais MC’s)
“Do que a letra está falando? O que eu preciso para ser um homem? Quem aqui conhece alguém ou tem algum parente que esteja preso?” Essas são algumas perguntas que o ator e designer gráfico Rafael Cristiano do Nascimento propõe a crianças e adolescentes de escolas públicas do Grajaú, na Zona Sul de São Paulo.
Preocupado em debater as ideias de macheza que são determinadas a partir da vivência de jovens negros nas periferias das grandes cidades, o ator encontrou no rap e no funk uma ponte para o diálogo.
“É impossível não fazer um recorte de classe e de raça, pois isso interfere no tipo de masculinidade que vai ser construída e em como esses jovens vão se mostrar para a sociedade”, afirma o ator.
Condição carcerária, crime, violência policial e drogas são temas que estão presentes no cotidiano das periferias. Sem debatê-los, segundo Rafael, fica difícil pensar em desconstruir estereótipos. Para ele, os homens negros, de regiões periféricas, conhecem o corpo a partir da violência, o que se torna um elemento central no tipo de relações que são construídas socialmente.
“Sonhos quebrados, sonhos mal paridos, sonhos frustrados. É o que o recorte de raça e território nos mostra, pois determina como vamos viver e como vamos ser homens na sociedade. Os ideais de homem são brancos, europeus, heterossexuais, bastante distante da realidade desses meninos. É difícil ver o sucesso de algumas pessoas e saber que aquilo tem poucas chances de acontecer aqui. Lidar com frustrações é também lidar com a violência”, diz Rafael.
Como mudar um comportamento aprendido?
Do ponto de vista teórico, estamos falando sobre as formas como a identidade e o corpo são construídos, a partir das dimensões biológica, psíquica e social. É o que explica a cientista social Simone Frigo.
“O grande problema da maioria das teorias e interpretações é que o foco e a verdade estão assentadas no biológico. Isto é, na relação direta entre sexo e gênero: nascer com pênis automaticamente imprime em você uma identidade”
As mulheres avançam significativamente na problematização dessa ideia e cada vez mais se manifestam publicamente sobre o tema. É comum, por exemplo, que meninas e adolescentes rebatam piadas machistas de colegas e professores. Enquanto isso acontece, a pergunta que surge é se os homens também estão se questionando e, se estão, de que forma eles têm demonstrado mudanças de comportamento?
Para Simone, os espaços de autonomia construídos pelas mulheres a partir do feminismo ou dos feminismos, que exigem muitas vezes excluir os homens do debate, fazem parte do processo de desenvolvimento de autonomia e afirmação do lugar público de fala.
Ao mesmo tempo, é preciso considerar que enfrentar o machismo exige também o diálogo com os homens, pensando gênero dentro das relações com o outro.
“Existe uma dificuldade nesse diálogo, pois mulheres estão fartas, e quando tentam dialogar, o diálogo se transforma em uma fala única, pois os homens não se expressam”
Prova disso, de acordo com a cientista social, que é professora de Gênero e Sexualidade na pós-graduação da PUC-PR, tem sido o relato de professoras da educação infantil (em sua maioria mulheres), sobre as reações machistas de pais em relação a atividades abordadas em sala de aula com os filhos.
“Quando há atividades que buscam levantar outro olhar sobre o corpo e fazer a desconstrução de gênero, quem vai na escola reclamar é o pai machista, embora muitos pais e mães concordem com a abordagem. O pai que apoia e poderia falar ‘que legal’ não é o pai que elogia a professora. Nesse sentido, as mulheres estão mais à frente”, defende Simone.
Os desafios
Não é simples tentar reconsiderar a criação dos filhos, e quem ousa fazê-lo enfrenta seus dilemas. “Que gritinho é esse?” ou “cuida da sua irmã, hein, cara?”, são comentários que, definitivamente, não cabem no repertório da advogada Samia Gomes, mãe do Caetano e da Helena. Apesar disso, ela confessa que trabalhar a quebra de estereótipos acaba sendo mais intuitiva do que pautada em orientações pedagógicas.
“É muito mais fácil criar uma menina feminista do que um menino não machista”
Segundo ela, isso acontece porque perceber e questionar os comportamentos esperados pelos meninos pode ser mais sutil.
Se Helena não usa brincos e pode usar as roupas que quiser, inclusive as que ainda estão grandes para o irmão, o contrário seria mais difícil. Algumas situações do dia a dia ajudam a pensar na questão:
“O Ricardo [marido] sempre chamava a Helena de ‘linda’ e o Caetano de ‘fortão’ ou ‘grandão’. Conversamos sobre isso, pois além de ter outros apelidos para se dirigir a ela que não tivessem relação com o físico, eu não o via chamando o Caetano de ‘lindo’ ou sendo tão compassivo com as manhas. E ele disse que tinha dificuldades, porque na casa dele, ele tinha que ser mais forte do que as meninas.”
E, se de um lado as mulheres crescem reivindicando outro papel, por outro é preciso evitar que homens cresçam com as mesmas ideias de sempre. Caso contrário, será impossível equilibrar a balança. Isso exige diálogo e um papel ativo de toda a sociedade, de homens e de mulheres, a partir das relações que constroem cotidianamente.
“É muito difícil quebrar esses estereótipos, mas acho que é um processo que nós quatro, juntos, temos que trabalhar, conta Samia.
“Vamos apresentando as coisas o mais longe possível dessa dicotomia chata entre feminino-masculino”
“Não falamos em novas masculinidades, pois não necessariamente serão masculinidades que irão contribuir com a igualdade. Mas pensamos em masculinidades positivas”, sugere a pedagoga Caroline Arcari.