Pode ser difícil imaginar filhos, netos, bisnetos e até tataranetos todos juntos no mesmo recorte de tempo, sentados na mesma mesa para o almoço de domingo, por exemplo. Mas, com o aumento da expectativa de vida em relação ao século passado, as relações intergeracionais são cada vez mais comuns. De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), o Brasil terá a quinta população mais idosa do mundo em 2030. Os reflexos dessa relação podem gerar um entendimento diferente sobre o tempo e o envelhecer. E isso inaugura também novas formas de estar no mundo além da idade.
“A geração de hoje está ressignificando o que representa a idade. É uma revolução do que significa o tempo”, diz o médico gerontólogo Alexandre Kalache, presidente do Centro Internacional de Longevidade Brasil. A fala dele está no documentário “Quantos dias. Quantas noites”, produzido pela Maria Farinha Filmes e lançado no dia 12. O filme traz depoimentos de personagens que atravessam a percepção de longevidade e combinam impressões de como construir essa nova sociedade.
Construir a velhice já na infância
Pensar em envelhecer é pensar também na infância, como explica a médica geriatra da Santa Casa de São Paulo, Renata Mara. “Precisamos de vários pilares para um envelhecimento saudável e isso requer bons hábitos desde criança”, diz. “Tudo precisa ser saudável. Desde o sono, alimentação, prática de exercícios físicos e também as relações familiares. Envelhecer é um caminho e precisamos decidir o quanto antes como segui-lo.”
Além disso, é fundamental preparar a nova geração para conviver com avós, bisavós e outros parentes mais velhos. “As famílias com a possibilidade de manter uma boa relação intergeracional têm trocas de experiências muito benéficas. Além da convivência no lar, as escolas também podem se adaptar, incluindo os avós nas programações, por exemplo.”
“Construir relações entre as gerações é fazer um compromisso com a vida que vai existir depois de nós” – Ailton Krenak
Geração sanduíche: quem vai cuidar de quem cuida?
Mas, ao mediar essa convivência, os adultos se veem muitas vezes sobrecarregados com tal responsabilidade, sobretudo as mulheres, historicamente responsáveis pelo cuidar. A manicure Ana Claudia Martins sabe como é ser uma cuidadora que faz parte da “geração sanduíche”, encarregada de cuidar ao mesmo tempo dos próprios filhos e das pessoas mais velhas da família. “Quando ficou viúvo, meu pai veio morar comigo e eu já tinha minha filha de 13 anos. Depois de um tempo engravidei de novo. Agora, tenho um bebê, uma adolescente e um idoso em casa”, conta. Para ela, a carga mental é pesada. “É cansativo. Meu companheiro faz o que pode, mas, no final, as decisões da rotina e da casa ficam mesmo por minha conta.”
Assim como Ana Claudia, 85% das pessoas que fazem os serviços de cuidados (do lar ou de pessoas) são mulheres, como mostra a plataforma “Vale do cuidado”. Nesse sentido, segundo a geriatra Renata Mara, os “cuidadores sanduíches” necessitam também de condições físicas e mentais para “dar conta e não chegar à exaustão”. Por isso, ela defende que a rede de apoio familiar precisa se estender para políticas públicas que também atendam as necessidades não só das crianças, mas também de idosos. Um exemplo é a oferta de “lugares de interação, cuidado e atividade para pessoas mais velhas. Além de programas do governo que estimulem os hábitos saudáveis desde cedo.”
Viver com qualidade requer trocas respeitosas
Nessa caminhada, a geriatra explica que o respeito aos espaços e vivências do outro é fundamental. Sobretudo para equilibrar a compreensão de cada peça desse quebra-cabeça de gerações. Enquanto o mais jovem tem que enxergar no mais velho a vivência que ainda não teve, o mais velho deve entender que a vida é além dos filhos e netos. O idoso também pode socializar e fazer outras atividades. “Cuidar do corpo e da mente é a chave para a longevidade saudável”, diz Mara.
Mas, no contexto brasileiro, a noção de longevidade toma caminhos diversos por causa das diferenças socioeconômicas, raciais e de gênero da população. O documentário “Quantos dias. Quantas noites” também aborda esse aspecto nas histórias de seus personagens.
Em um trecho do filme, um enfermeiro voluntário na favela da Rocinha questiona se é importante “viver mais ou viver com qualidade?” e relata a experiência de cuidar de pacientes idosos ainda pouco contemplados por políticas públicas. O fio de esperança surge justamente da troca respeitosa e carinhosa entre as gerações. Dona Dalva, voluntária em uma creche na mesma favela, resume o que sente ao trabalhar diariamente com crianças pequenas. “Se me tirarem isso aqui, eu morro.”
“O agora nos lembra quem nós somos e o que fazemos nesse mundo” – Daniel Munduruku