Mesmo com milhares de anos de civilização humana, a ciência constatou que as mudanças climáticas mais acentuadas só começaram a ocorrer após a revolução industrial. Pela primeira vez na história, a ação do homem se tornou um fator determinante na alteração global do clima, a ponto de ser considerada pela Organização das Nações Unidas (ONU) um dos maiores desafios contemporâneos.
Se pensarmos no aumento significativo da população nos dois últimos séculos – passando de aproximadamente 1 bilhão de pessoas nos anos de 1800 para os atuais 7,8 bilhões -, talvez seja possível entender essa relação. Mas não só: o desenvolvimento de um modelo industrial e de transportes baseados em fontes energéticas altamente poluentes (combustíveis fósseis derivados de petróleo, carvão mineral e gás natural); a agropecuária, o desmatamento e o descarte de resíduos sólidos seguem intensificando a emissão de gás carbônico e outros gases de efeito estufa (GEE). Esse cenário favorece a exposição de crianças a elementos químicos perigosos, como fluoreto, mercúrio e pesticidas, por meio da comida, da água, do ar e de produtos manufaturados.
Assim como outras populações, as crianças e os bebês ainda no útero ficam particularmente mais vulneráveis aos efeitos causados por essas atividades. O relatório da Organização Mundial da Saúde de 2017, “Herdando um mundo sustentável: atlas sobre a saúde das crianças e do meio ambiente”, mostra que anualmente 1,7 milhão de crianças com menos de 5 anos morrem no mundo devido a problemas ligados à poluição ambiental. Entre as doenças mais comuns que atingem essa faixa etária estão infecções respiratórias, malária e diarreia, que, segundo o documento, poderiam ser prevenidas com ações para redução de riscos ambientais como acesso à água potável e ao saneamento básico.
A OMS ainda aponta que, no Brasil, a cada 100 mil crianças de 5 anos, 41 morrem anualmente devido a alguma modalidade de poluição do ar, que se tornou a maior causa ambiental de doenças e mortes prematuras não apenas no país, mas no mundo. Conforme explica a médica Evangelina Vormittag, doutora em Patologia pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP) e presidente do Instituto Saúde e Sustentabilidade, os efeitos são calculados em relação à dose e ao tempo de exposição. “Além de o sistema imunológico das crianças estar em estágio de desenvolvimento e o aparelho respiratório em formação, elas respiram 50% a mais de ar por quilo de peso corporal do que os adultos”, afirma.
O efeito da poluição do ar sobre a saúde das crianças
Um bebê que nasce hoje já sofre os impactos das mudanças climáticas pelo resto da vida. Entre os poluentes tóxicos mais prejudiciais à saúde estão os materiais particulados (conjunto de poluentes constituídos de poeira, fumaça e materiais sólidos e líquidos, que se mantêm suspensos na atmosfera), como ozônio e dióxido de nitrogênio. Ao todo, 93% das crianças no mundo estão expostas a níveis desses materiais superiores aos recomendados pela OMS. Além de prejudicar diretamente os pulmões, podendo causar complicações crônicas, esses poluentes atravessam o alvéolo pulmonar (onde há trocas gasosas), passando pela circulação sanguínea e, a partir daí, afetam vários sistemas do corpo humano.
“Na barriga da mãe, os materiais podem se alojar na placenta, provocando retardo do crescimento intrauterino, prematuridade e óbito fetal. Nas crianças, causam processos inflamatórios cerebrais que podem prejudicar as conexões neurais, impactando habilidades psicomotoras e desenvolvimento cognitivo, e podendo levar ao déficit de aprendizado, por exemplo”, relata Evangelina. A médica destaca ainda que os poluentes podem atuar no núcleo celular, gerando injúrias no DNA e, com isso, mutações cromossômicas, como a leucemia e o câncer nos ossos.
Em 2018, a Organização Pan-Americana da Saúde (Opas) revelou que os efeitos conjuntos da poluição atmosférica e no domicílio (especialmente na Ásia e África, pela queima de biomassa, na utilização de fogão à lenha) foram responsáveis por uma em cada oito mortes, em 2016 – um total de 7 milhões. Entre elas, cerca de 543 mil eram crianças com menos de 5 anos, e 52 mil com idade entre 5 e 15 anos. Dentro deste recorte, Evangelina atenta que existem grupos ainda mais suscetíveis, que apresentam níveis socioeconômicos mais baixos, menor assistência à saúde ou acesso a medicamentos e outros fatores agravantes que levam ao adoecimento.
No Brasil, o documento aponta que a poluição do ar causa 50 mil mortes ao ano: 35% das mortes atribuídas a doenças pulmonares; 15% a doenças cérebro-vasculares; 44% por doenças do coração; e 6% das mortes por câncer de pulmão.
Efeito dos incêndios florestais à saúde infantil
Assim como qualquer desastre ambiental, os grupos vulnerabilizados são os mais afetados pela poluição atmosférica. A Fiocruz, em parceria com o Instituto de Comunicação e Informação em Saúde (INCICT), mapeou os impactos das queimadas na Amazônia na saúde infantil, por áreas da região, comprovando que as internações por problemas respiratórios dobraram entre maio e junho de 2019, com 2,5 crianças a mais por mês nos hospitais. As taxas de mortalidade foram maiores em cinco dos nove estados que compõem a Amazônia Legal, entre eles Roraima, com 2.398 pessoas atingidas.
Emergência climática pode influenciar a saúde de uma geração
A saúde infantil já está na mira das mudanças climáticas, que podem influenciar o futuro de uma geração. De acordo com o relatório mais recente do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) – resultado do trabalho de mais de 230 cientistas de 66 países, que passaram os últimos anos sintetizando mais de 14 mil estudos mundiais relacionados à emergência climática – o mundo provavelmente vai atingir ou ultrapassar 1,5 °C de aquecimento nas próximas duas décadas. A previsão revela um senso de urgência mais dramático, pois é mais cedo do que em avaliações anteriores, e prevê o aumento de eventos extremos como inundações, furacões, recordes de temperatura e desertificação.
“Algumas dessas mudanças já estão ocorrendo e não têm volta, afetando a população especialmente em termos de alimentação e moradia. Para evitar consequências mais desastrosas, deveríamos limitar o aquecimento global abaixo de 2 °C”, afirma o advogado da Rede LACLIMA e consultor internacional para o combate a mudanças climáticas, Fabiano Andrade Correa. Ele ainda sugere que os piores efeitos serão sentidos pelas populações concentradas nas zonas tropicais e subtropicais, como o Brasil, que terão seu modo de vida profundamente alterado.
Essa também é a conclusão do relatório sobre saúde e mudanças climáticas do The Lancet Countdown, publicado em 2019. O estudo, que teve participação de 35 organizações mundiais – entre elas, OMS e Banco Mundial – mostra que as temperaturas crescentes contribuem para a fome e desnutrição no mundo. As secas e inundações geram queda na produção e, consequentemente, aumento do preço dos alimentos, privando populações de meios de subsistência e causando desnutrição, principalmente em países que dependem diretamente da agricultura. Com alimentos mais caros, os consumidores são pressionados a comprar produtos processados mais baratos que, por sua vez, levam à outra face da má alimentação, que é a obesidade.
A pesquisa também mostra que mais doenças infecciosas afetarão a primeira infância: aumento da temperatura e mudanças no nível dos oceanos e umidade facilitam a disseminação de bactérias causadoras da cólera, por exemplo, e criam condições para a proliferação de mosquitos transmissores de doenças como dengue e malária.
Além disso, se não forem freadas atividades crescentes como desmatamento das florestas, tráfico e confinamento de animais – assuntos que ganharam repercussão com a pandemia de covid-19 -, mais vírus, fungos e bactérias perderão seus habitats naturais de biodiversidade e regulação biológica, tendo que se adaptar a novos contextos, seja em contato com plantas, animais ou com os próprios seres humanos. Isso significa também o enfrentamento de novas epidemias.
Ainda que os impactos à saúde física sejam mais evidentes, os prejuízos causados pelas mudanças climáticas também atingem a saúde mental das crianças. O estresse após vivenciar um desastre ambiental ou as incertezas relacionadas ao futuro, que geram pressões psicológicas e emocionais, já não podem ser ignorados e levam especialistas da área da saúde a incluírem o conceito de “ansiedade climática” ou “ecoansiedade” no léxico da crise ambiental.
Ações conjuntas para a mitigação dos efeitos da emergência climática
Diante de dados consolidados relacionados ao impacto das mudanças climáticas, estudos e especialistas apostam em ações conjuntas para enfrentar o atual cenário, como investir em transformações estruturais e incentivar mudanças de hábitos. “As pessoas podem exercer influência a partir de seu poder de compra, pressionando as empresas a adotarem padrões de qualidade mais altos em relação ao meio ambiente”, diz Fabiano.
Contudo, mesmo que ampliemos significativamente a conscientização coletiva sobre mudanças de hábitos enquanto sociedade, ainda assim seria insuficiente.
“Precisamos de cooperação entre setores, que resultem em políticas públicas capazes de unir as agendas de clima e saúde”
Além disso, o advogado insiste que a população deve estar informada e disposta a eleger políticos capazes de orientar os governos para atuar sobre as crises climática e ambiental.
Hospitais saudáveis
Impactos ambientais e sanitários gerados pela assistência à saúde têm levado profissionais e instituições do setor a desenvolverem ações coordenadas para mitigação da crise climática, com foco na redução da pegada de carbono em hospitais. É o caso do Projeto Hospitais Saudáveis (PHS), que também busca preparar equipes de saúde para os efeitos do clima extremo e alterações na carga de doenças, bem como educar o público em geral para promover políticas de proteção à saúde pública frente às mudanças climáticas. O projeto integra a Rede Global Hospitais Verdes, que reúne e mobiliza organizações de saúde do mundo inteiro para a descarbonização do setor, redução de resíduos, além da promoção de compras mais sustentáveis.
Para a médica Evangelina Vormittag, as políticas públicas devem priorizar a redução das emissões oriundas do transporte, da indústria e da queima de biomassa – principais fontes de poluentes atmosféricos no país -, utilizando o conhecimento legal já existente, sistematizado no estudo “O estado da qualidade do ar no Brasil”, lançado pelo WRI Brasil, em janeiro de 2021.
Como demonstra o documento, nos grandes centros urbanos, 90% das emissões de gases poluentes e de dióxido de carbono vêm da queima de combustíveis de veículos do modal rodoviário, principal meio de deslocamento nas cidades, além de ser amplamente utilizado para a movimentação de carga no país. Entre as medidas direcionadas a esse setor e que resultam em benefícios para a saúde estão a promoção de tecnologias veiculares mais eficientes e de menos impacto, bem como o uso de combustíveis mais limpos.
As prioridades destacadas para o avanço das políticas de melhoria da qualidade do ar no Brasil também incluem a criação de uma política nacional sistêmica, fortalecendo a ciência como fonte de produção de dados e incluindo, de forma mais equitativa, representantes da sociedade civil e do setor de saúde na governança da qualidade do ar.
Nesse sentido, segundo a médica, priorizar as necessidades das crianças e de populações mais expostas não deve ser apenas uma escolha, mas uma estratégia prioritária para qualquer diagnóstico ou plano relevante de mitigação.
“As crianças não têm capacidade de decisão hoje, mas elas serão diretamente afetadas em um futuro de consequências incertas e por isso devem ser incluídas no debate sobre mudanças climáticas, o que chamamos de equidade intergeracional”
Leia mais
Estimativas publicadas este ano pela Global Burden of Diseases mostram que a poluição ambiental é o quinto principal fator de risco de mortes no mundo, correspondendo a 4,2 milhões de óbitos.