“Um mundo feito de pessoas diferentes”. Para que essa frase seja uma simples constatação e não mais pertença à listinha de desejos ou fique restrita ao plano dos sonhos, é preciso luta. Ela está no texto criado por Catarina Fleming Rodrigues, de sete anos, que pediu ajuda à mãe Evelyn para manifestar sua desilusão ao descobrir que uma colega que tem síndrome de Down talvez não estude mais na mesma escola que ela.
Compartilhar um abaixo-assinado foi a forma que a dupla encontrou de expressar o seu posicionamento contra o decreto 10.502/2020, que institui a Política Nacional de Educação Especial (PNEE). O “decreto da exclusão” incentiva a segregação de estudantes com deficiência em classes ou escolas especiais e ameaça retroceder anos de conquistas em educação inclusiva.
Catarina sabe que todo mundo perde se isso acontecer. “Perdem as crianças especiais que deixam de ter seu potencial desenvolvido e não convivem com outras crianças em igualdade. Perdem todas as crianças que deixam de conviver com a diversidade, […], com habilidades diferentes em que todos podem aprender sempre”, diz o manifesto.
“São muitos passos atrás no que diz respeito ao horizonte ético que deveria garantir a todo e qualquer estudante uma educação pública e de qualidade como direito inegociável”
A afirmação é da comunicadora e ativista Mariana Rosa, também colunista do Lunetas. “O decreto retira dos estudantes com deficiência o direito de acessar um currículo comum para a sua formação, uma vez que as instituições segregadas atuam numa perspectiva de treinamento para tornar as pessoas funcionais, úteis. A educação inclusiva é um direito humano”, reforça ela. “Como tal, só nos resta trabalhar pela sua garantia, entendendo que é condição para uma vida digna de cada indivíduo que compõe a nossa sociedade e de toda a comunidade.”
O direito de estar entre todos
No manifesto, Catarina e Evelyn reconhecem o respeito à diversidade quando as escolas incluem alunos especiais e lembram que segregação nunca foi a resposta. “Todas as vezes que a humanidade segregou os resultados foram trágicos. Qual a resposta? Investir em educação inclusiva na escola, capacitação e aumento dos profissionais dedicados a promover a diversidade.”
Para a professora Rubia Cristina dos Santos, mãe do Lucca, que tem autismo, a sala de aula é o melhor lugar para se aprender a respeitar o outro, pois é “uma minissociedade, com pessoas de várias cores, modos de criação diferentes, crenças diferentes, com habilidades e dificuldades diversas”. Assim, é nos dada a oportunidade de “aprendermos uns com os outros – uma criança que tenha qualquer uma das deficiências em sala de aula aprende muito com seus colegas e eles também aprendem com essa criança, além de o educador ser estimulado a pensar maneiras de fazer com que o aprendizado chegue até ela”, reflete, aprimorando fatores como as práticas pedagógicas, a acessibilidade, a gestão.
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Liege Margo Schmitt, também professora e mãe da Laura, que tem síndrome de Down, defende a importância da formação continuada a partir de uma experiência que permita errar e acertar: “Só se aprende a trabalhar com alunos e suas especificidades convivendo com eles, buscando alternativas, conhecendo o trabalho de outros colegas e, principalmente, respeitando cada um”, diz.
Mariana Rosa chama a atenção para o fato de que incluir não é “colocar para dentro”. “Se assim fosse, teríamos que considerar que existe um grupo ‘naturalmente’ preestabelecido de pessoas e a elas caberia a decisão sobre quem entra, quem fica de fora. Isso é tão ilegal quanto imoral.”
“Incluir significa conceber o quanto afetamos e somos afetados na convivência cotidiana, vivenciar uma experiência educativa que dê sentido não somente a uma presença, mas a uma existência comum”
“O desafio é incluir não apenas aqueles até agora silenciados e discriminados, mas construir espaços de liberdade e de igualdade onde se possa ir em direção ao outro, valorizando uma ideia do que seja comunidade”, finaliza Mariana.
A seguir compartilhamos os depoimentos das quatro crianças ouvidas pelo Lunetas com a ajuda de suas respectivas mães que conduziram as entrevistas.
O que crianças pensam sobre o projeto de lei que proíbe a educação inclusiva?
- Catarina, 7 anos – autora do manifesto
Catarina acha legal uma escola incluir crianças com e sem deficiência na mesma sala de aula, “porque eles podem aprender com a gente e a gente pode aprender com eles coisas novas”. Ela também antecipa que, se isso não acontecer, “quando a gente crescer, a gente não vai saber como conviver, porque a gente não vai ter nunca estudado com elas”.
Catarina acredita que elas sejam diferentes, “porque têm mais dificuldade para entender as coisas, demoram mais para aprender a ler ou a falar”. Por isso, ela já aprendeu que “cada criança tem seu tempo”, diz.
Se houvesse espaço para cada um ser como é, Catarina afirma que as crianças com deficiência teriam “mais liberdade para fazer as coisas sem ninguém criticar, sem falar ‘ah, você não pode fazer tal coisa, porque você tem essa tal deficiência’”. O mundo ficaria melhor, sentencia, porque ganharia respeito. “Imagina se fosse todo mundo igual?”, questiona. “Aí aquela sua amiga ia ter a cara de todo mundo e você não ia ficar com saudade. Se a gente convive mais com pessoas com deficiência, percebe que querem dizer alguma coisa, só que a gente não consegue entender às vezes. E aí, se a gente convive mais com elas, um dia a gente consegue entender o que elas estão dizendo.”
[Alice tem paralisia cerebral e conversou com a gente por meio de pranchas de comunicação alternativa, apontando com a cabeça o que gostaria de dizer] Alice acha bom estudar em sua escola, “porque gosto dos meus amigos e dos bichos que tem lá”. Sobre a convivência com os colegas, ela diz gostar “de farra e de fazer bagunça com eles no pátio. Tenho colegas muito divertidos”, revela. Sobre o aprendizado, fica claro que é um processo mútuo: “Aprendemos a brincar e a conversar juntos”, diz ela. “Você gosta de ser quem é? O que você pensa de si mesma?”, questiona a mãe Mariana, e a menina responde: “Eu gosto muito de ser quem sou e me acho muito inteligente, valente e amada”.
Laura responde “sim” para a maioria das perguntas que a mãe Liege lhe faz para entender a relação da menina, que tem síndrome de Down, com a sua escola e seus colegas. Ela diz gostar das professoras, dos “amiguinhos da Laura”, gosta de ir na escola. Quando está na escola, ela e os colegas vão juntos no parquinho e na piscina, por exemplo. “Eu gosto de nadar”, conta. Laura também gosta muito de slime e aí que nos mostra a importância de dividir. “Você divide o slime com os seus amigos? Sim. E os seus amigos dividem com você? Sim. É importante dividir? Sim.”
Lucca acha legal estudar com amiguinhos diferentes dele porque “se alguns não soubessem como jogar, eu podia ensinar pra eles”. Ele conta que aprendeu a desenhar com os amigos e também “ensinava eles a fazer dobradura”. “Eu gosto de estudar na minha escola porque meus amigos me apoiam, eles nem sabem que eu tenho autismo”, sussurra. A mãe então pergunta sobre estudar numa escola com todo mundo junto ou se ele gostaria de estudar numa escola só com crianças que têm autismo, andam em cadeiras de rodas, são cegas e têm síndrome de Down, e ele responde: “Eu ia querer estudar na escola misturada para eles aprenderem a valorizar as crianças que têm deficiência, porque quase todo mundo fica falando assim ‘não, não, não… as crianças deficientes são umas chatas’”. “Faz de conta que tu fosse obrigado a ir pra uma escola só com crianças que têm deficiência”, convida a mãe Rubia à reflexão. “Eu ia achar meio estranho. Todo mundo com deficiência, eu não ia estar acostumado com isso.” Sobre um mundo com pessoas diferentes podendo conviver nos mesmos espaços, Lucca acha que “seria legal, porque uma podia respeitar as outras”. Além disso, “não iam bater em pessoas que têm deficiência, porque já aconteceu isso muitas vezes de bater só porque a pessoa tem autismo e é bem triste.”
As diferenças pela ótica das famílias
As mães das crianças entrevistadas para esta reportagem alertaram que o decreto erra ao não considerar as diferenças dentro da diferença. “Sem fazer essas distinções, a lei coloca todos no mesmo patamar e gera discordâncias entre as diversas comunidades”, comenta Liege, mãe da Laura.
Segundo ela, a filha ainda nem se deu conta que tem uma deficiência, mas “não é uma deficiência que nos faz diferentes. Há uma gama imensa que nos faz todos diferentes sem que coloquemos a deficiência em primeiro plano. Até mesmo dentro da mesma deficiência, não podemos dizer que são iguais”.
Rubia, mãe do Lucca, também esclarece sobre as diferenças entre pessoas que têm autismo, se comparadas umas às outras. “Quem tem autismo costuma ter a audição mais sensível e se irrita com o barulho; a língua deles é mais mole, por isso têm mais dificuldades de falar; e as conexões no cérebro são diferentes, por isso a dificuldade nas comunicações”, explica, mas existem outros espectros do autismo com características distintas.
Foi na década de 1990 que a situação começou a mudar para as pessoas com deficiência após pressão dos movimentos sociais e também pela atuação de seus familiares. “Nós vínhamos caminhando lentamente, avançando muito vagarosamente. Mas, estávamos em movimento para frente. De repente, com uma ‘canetada’, recuamos em velocidade supersônica”, comenta Liege.
Em 2007, a Convenção dos Direitos da Pessoa com Deficiência foi assinada por 160 países. No Brasil, este documento tem status de emenda constitucional (Lei nº 6.949) desde 2009. A partir de 2008, alunos com deficiência passaram a ter direito a estudar em escolas e classes comuns.
“Já há relatos de escolas particulares colocando em suas cláusulas contratuais que se a criança com deficiência não se adaptar, a família deverá procurar outra instituição. Aqui em Foz do Iguaçu (PR), mesmo antes do decreto, a prefeitura via secretaria municipal de educação avaliou que as crianças não estavam aptas a frequentar sala de aula regular e sugeria que fossem transferidas para escolas especiais. Como as famílias compreendem o direito de seus filhos estudarem em escolas regulares, foram coagidas a assinar um termo em que se tornam responsáveis pelos prejuízos que a criança teria pela falta de atendimento especializado. Que atendimento especializado é esse? Pois, as pessoas com síndrome de Down que conheço e que frequentaram escolas especiais não estão alfabetizadas nem inseridas no mercado de trabalho”, denuncia Liege.
Para honrar o patrimônio comum do qual todos somos herdeiros e naturalizar o convívio com a diversidade – fator decisivo para o nosso aprendizado diário, como destacaram as crianças entrevistadas – é importante debater uma Política Nacional de Educação Especial na perspectiva da inclusão e a partir de uma “construção democrática, que considere as aspirações de cada comunidade e que jamais exclua esse ou aquele grupo”, defende.
Rubia faz o alerta de que é só o convívio com a diferença que nos ensinará “a criar oportunidades para essas pessoas terem uma vida mais digna, com mais sensibilidade e empatia para pensar o mundo também para um cadeirante, alguém cego ou uma criança que tenha alguma síndrome”.
A pesquisa “O que a população brasileira pensa sobre educação inclusiva” (2019), realizada com o Datafolha, reforça o valor da educação inclusiva ao apontar que 76% dos brasileiros entrevistados acreditam que crianças com e sem deficiência aprendem melhor juntas e 86% afirmam que as escolas ficam melhores quando incluem alunos com deficiência.
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O decreto da nova educação para alunos com deficiência foi suspenso pelo ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Dias Toffoli, mas a decisão definitiva ainda está pendente. “Verifico que o Decreto nº 10.502/2020 pode vir a fundamentar políticas públicas que fragilizam o imperativo da inclusão de alunos com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades ou superdotação na rede regular de ensino”, justificou.