“No café da manhã, antes de ir para a escola, eu amo comer chipa. Minha vó faz chipa e pão de queijo, ela diz que o gosto é parecido, mas eu prefiro chipa”, conta Francieli, 7, que mora em Ponta Porã, cidade fronteiriça com o Paraguai, separada do país vizinho por apenas uma avenida. Por conta da divisa entre os países, “a gente convive com os paraguaios todos os dias. Na minha escola tem muitos e minha melhor amiga da sala mora lá. Ela me ensina algumas palavras e eu ensino para ela as palavras daqui”, relata.
Ainda na culinária, Mato Grosso do Sul tem em comum com o Paraguai a sopa paraguaia, uma torta feita de queijo, fubá e milho verde, e a cultura de tereré, uma bebida ancestral que mistura erva mate tereré, água gelada, limão e hortelã, servida tradicionalmente em chifre de boi durante as “rodas de tereré”, que são comuns no Estado todo.
“A família tem esse costume e a minha filha aprendeu a tomar tereré desde pequenina – ela já sabe que em casa não pode faltar gelo no preparo”, ressalta a mãe de Franciele, Aline da Silva Cruz. Aos fins de semana, mãe e filha costumam ficar sentadas em frente de casa vendo o movimento da rua e tomando a bebida gelada para amenizar o calor.
Uma mistura de línguas: brasiguaio e portunhol
Com mais de 800 quilômetros de extensão que faz divisa entre o estado de Mato Grosso do Sul e o Paraguai, a interação é facilitada. A essa mistura dá-se o nome “brasiguaio”, criado para denominar os brasileiros e seus descendentes que migraram para a região da fronteira com o Paraguai a partir da década de 1950, explica o historiador e professor de História, Mário Julian Fonseca da Silva. Atualmente, o termo é utilizado para nomear os que vivem em cidades fronteiriças e dividem os costumes dos dois países, pontua.
“Há um intercâmbio cultural, econômico, social e político entre Brasil e Paraguai. A proximidade impacta até na formação de muitas famílias. Quem nasce em Mato Grosso do Sul passa a conviver diariamente com a cultura paraguaia. A cultura é tão enraizada que as crianças às vezes não sabem diferenciar o que é de origem brasileira ou paraguaia”, observa.
Quando questionada sobre o que gosta de fazer nos momentos de lazer, Francieli tem a resposta na ponta da língua: “Eu gosto mesmo é de dançar chamamé. Adoro colocar as roupas típicas e dançar com os meus amigos. Sei que a dança é de origem paraguaia, mas eu sinto que é muito brasileira. Aprendi a dançar com minha mãe desde os três anos e nunca mais parei”. Além desse gênero musical, a polca e a guarânia são outros exemplos presentes no território.
Nascida em São Paulo, Aline mora em Ponta Porã desde pequena e não consegue se lembrar de quando conheceu a cultura paraguaia, porque na cidade tudo se mistura. “Eu trabalho como caixa de um supermercado e todos os dias tenho contato com os paraguaios. A gente consegue se entender perfeitamente. Mesmo enrolando no ‘portunhol’, eu nunca tive problema para atendê-los. Amo essa mistura de cultura e falo para a Francieli que ela precisa aproveitar essa convivência e aprender um pouco mais sobre os costumes do país aqui do lado”, defende.
Sobre o “portunhol”, que é a mistura entre português e espanhol, o historiador comenta que “surgiu por conta da necessidade de comunicação entre os moradores dos dois países. É uma língua de contato para uma comunicação mais direta e quase sempre funciona: as pessoas conseguem se entender, principalmente as crianças. Para fazer amizades, elas iniciam uma conversa com esse dialeto e depois não param mais, vira um vício porque a comunicação consegue existir sem precisar de um tradutor”, resume Mário Julian.
Francieli usa muito o “portunhol” e destaca a necessidade de adaptar algumas palavras bastante diferentes. “De vez em quando, eu estou conversando com minha amiga e ela fala uma palavra que eu nunca ouvi. Daí tenho que ficar perguntando o que é. Se for fácil, ela aponta o que é ou faz mímica. Se for difícil, a gente chama minha mãe que tenta entender e me explica”, conta.
O que aproxima Brasil e Bolívia
Corumbá, no Mato Grosso do Sul, e Puerto Quijarro, na Bolívia, são duas cidades de países diferentes, mas é como se fossem uma só. Os moradores dividem costumes que vão de músicas, comidas típicas, festas à vestimenta.
Por ser mais estruturada, a cidade de Corumbá recebe gestantes para realizarem o pré-natal e muitos bolivianos acabam nascendo na cidade brasileira, dando mais ênfase à identidade compartilhada. Essas pessoas possuem documentos brasileiros, estudam em escolas brasileiras e até prestam o serviço militar obrigatório.
Outras são filhos de brasileiros com bolivianos e aprendem a lidar com as duas culturas, como é o caso de Matheus Henrique, 9, filho da brasileira Maria Aparecida Costa Pereira e do boliviano Ronny Caldas Rojas. “Eu aprendi coisas das duas culturas dentro de casa. Minha mãe coloca músicas brasileiras e bolivianas para ouvirmos, meu pai me ensina as brincadeiras que ele brincava quando era criança e eu gosto de aprender sobre a vida na Bolívia”, enfatiza.
Na rotina da família está a visita semanal aos avós paternos de Matheus, que moram na cidade boliviana. Ali, eles comem saltenha e curtem a música local ao som do charango, que é um instrumento similar ao bandolim, e as danças típicas. “Meus colegas me ensinaram a gostar de música boliviana e eu acho bem legal quando as meninas se vestem com aqueles vestidos ou saias grandonas, coloridas e cheias de bolsos. Elas dançam e são muito alegres”, conta o garoto.
Matheus estuda no CAIC (Centro de Atendimento Integrado à Criança) Padre Ernesto Sassida, localizado no início da rodovia que dá acesso à fronteira. Seus pais optaram por essa escola em razão do número alto de estudantes bolivianos. De acordo com dados da Secretaria Municipal de Educação de Corumbá, cerca de 900 bolivianos estudam nas escolas da Rede Municipal de Ensino (Reme).
“Eu prefiro que ele estude nesta escola, porque ele convive com as crianças bolivianas e mantém alguns costumes que são de lá. As professoras utilizam datas comemorativas da Bolívia para fazer festas e falam português e espanhol para melhor auxiliar os alunos”, explica Maria Aparecida.
Outro atrativo do país vizinho é a feira chamada “shopping chão”, onde são vendidos produtos importados com preços mais acessíveis do que nos centros comerciais de Corumbá – normalmente não são vendidos em dólar, mas em moeda boliviana. Também há produtos artesanais, como casacos, chapéus, luvas, cobertas, meias, cachecóis e os ponchos, produzidos com a lã de alpaca e ovelha. O historiador Mário Julian Fonseca da Silva comenta como isso proporcionou interação entre moradores dos dois países e fortaleceu a mistura de cultura. “Como consequência desse processo, houve um aumento do número de população urbana de Corumbá que passou a escolher Puerto Quijarro como centro consumidor e mais brasileiros migraram para a cidade em busca de oportunidades de trabalho”, afirma.
Parte da vida das crianças que moram em cidades fronteiriças, a mistura das culturas paraguaia, boliviana e brasileira é uma forma de aprenderem a conviver e respeitar as diferenças. Essa interação estimula a criatividade, desperta a curiosidade e melhora a aprendizagem, aponta a psicóloga Ariane Priscila Fonseca Azevedo. Além disso, “a partir desta convivência, é possível desenvolver mais tolerância, mais compreensão das diversidades e também ajuda a desmistificar preconceitos”. Isso porque, “quando conhecemos novas culturas, percebemos que nossa opinião e visão de mundo não são as únicas possíveis, e ampliamos o olhar para nós mesmos”, pontua. “Ao respeitar as singularidades alheias, com mais empatia, a construção de nossa sociedade é beneficiada diretamente, pois isso também possibilita compreender melhor nossa história, presente e passado, e possibilidades para o futuro”, finaliza.
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