Casa com criança é casa com brinquedo espalhado por aí. O brinquedo pode ser uma solução, na brincadeira autônoma enquanto o jantar é preparado; ou um problema, no escândalo no meio da loja por querer e não ter. Entre ocupar o papel de agente da fruição da imaginação das crianças e ser pivô de um momento de sofrimento e choro, o brinquedo passou pela revolução industrial e deixou de ser um item de transmissão afetiva entre gerações – o pai marceneiro que presenteia seu filho com uma escultura de madeira – para se tornar, também, um produto a ser desejado e consumido pelo público infantil.
Somente em 2016, o mercado brasileiro contou com mais de nove mil modelos de brinquedos para crianças.
“A invenção de um mundo infantil retirou as crianças do mundo. O mundo dito infantil, na verdade, é o mundo do mercado, do comércio, do conforto, da praticidade e da rapidez”, afirma Gandhy Piorski, pesquisador da cultura da infância. Ele ressalta que, historicamente, as próprias crianças sempre criaram muitos brinquedos. “Brinquedos nascidos de seus próprios corpos, de suas onomatopeias, de coisas da natureza, dos artefatos dos pais.”
Se o ‘universo infantil’ oferecido pelo mercado retirou as crianças do mundo, será que uma criança precisa realmente de brinquedos para brincar?
“O livre brincar, simples, de pés descalços, de contato com matérias não industrializadas, de encontro com as árvores, os animais, os rios… Tudo isso trabalha aspectos ainda mais profundos na alma de uma criança. Desperta sensos de vida integrada, eixo corporal, acuidade sensorial, acorda energias internas, simbólicas, oníricas.”
Josca Baroukh, psicóloga e especialista em Educação Infantil, explica que todo objeto – inclusive um brinquedo pronto e industrializado – tem potencial brincante para a criança. Ou seja, o brincar não exige sempre a presença do brinquedo. “O mais importante são o ambiente e os materiais oferecidos à criança. Que eles sejam desafiantes, que despertem a sua curiosidade. Precisamos permitir que a criança explore o mundo”, explica.
A exploração do mundo e o constante aprendizado e significação de seus elementos, emoções, sensações e transformações dão forma a um dos grandes motores do desenvolvimento da criança. Para a psicóloga, “você empobrece a inteligência da criança quando ela não pode experimentar”.
Estimular a imaginação das crianças ou brincar com brinquedos?
O que acontece quando a experimentação no brincar dá lugar ao cumprimento de procedimentos colocados por brinquedos prontos?
A publicidade de brinquedos e produtos voltados ao público infantil são vilãs contra a brincadeira livre, a criatividade e a imaginação das crianças: induzida pelo desejo de possuir um objeto, a criança se perde e a naturalidade da brincadeira acaba sendo substituída por um desejo de adquirir o brinquedo que lhe é ofertado e de realizar a brincadeira da forma como lhe é apresentada.
Raquel Franzim, coordenadora de educação do Instituto Alana, pondera. “A criança sempre encontra uma forma de interagir com o brinquedo que tem à frente, mesmo quando ele se propõe a representar fielmente a realidade como brinquedos que falam, andam e mexem.”
“Não acredito que os brinquedos atrapalham, mas não fortalecem algo que a criança tem de precioso e transformador: o impulso da criação”
Como as crianças brincam?
Para os bebês de zero a três anos, a brincadeira está na descoberta do próprio corpo, e o mundo através dele. “Pegar panela embaixo da pia é brincar. Colocar canudo na garrafa é brincar. As crianças amam, por exemplo, os ‘cestos de tesouro’, objetos de diferentes texturas e materiais, que elas possam explorar a percepção e a motricidade. Eu penso que nessa fase não há necessidade de brinquedos”, defende Josca.
Entre os dois e três anos, atrelado ao amadurecimento cognitivo e neurológico infantil e à possibilidade da fala, a criança passa a brincar de “faz de conta”, a representar. Nessa etapa do desenvolvimento, a psicóloga recomenda os objetos em miniatura como bons companheiros de brincadeira.
“As crianças querem, por exemplo, objetos existentes em casa ou confeccionados. Não precisam ser comprados. Eles se tornam brinquedos porque entram no faz de conta.”
Brinquedos educativos substituem a brincadeira livre?
Vendidos em lojas especializadas e bastante utilizados nas escolas, será que os brinquedos educativos – cuja concepção data do início do século passado, com a médica italiana Maria Montessori e a Casa das Crianças, espaço onde se podia aprender com materiais sensoriais – substituem o brincar livre?
“São brinquedos que possuem uma finalidade atrelada ao desenvolvimento ou aprendizagem de habilidades cognitivas. Ou seja, são recursos educacionais. O brincar é uma linguagem, uma expressão da criança que pulsa sem finalidade de aprendizagem. Está aí o valor do brincar: quanto mais livre, sem a obrigação de se aprender algo, mais criativo e criador ele é”, explica Raquel Franzim.
A psicóloga Josca Baroukh alerta para a importância de se diferenciar o brincar pedagógico e a brincadeira livre no contexto da escola.
“Todo brincar é educativo em si. O brincar é uma atividade livre e espontânea”
“O que as pessoas chamam de brincar pedagógico na escola, pra mim, não é brincar. É uma atividade dirigida que usa a brincadeira”, explica.
O brincar e a experiência criativa da criança
Dentro da complexa tarefa que é cuidar de uma criança e instrumentalizá-la para estar plena no mundo, o brincar muitas vezes se torna uma fonte de insegurança para os pais – “meu filho não sabe brincar” – , ou então uma fonte de culpa – o que fazer quando se chega cansado de um dia de trabalho e a criança pede para brincar junto? Apesar disso, é preciso entender o valor e a importância dessa atividade para o desenvolvimento da criança e encontrar espaço no dia a dia para que ele aconteça.
“Brinquedos prontos, geralmente os industrializados, representam a descrença dos adultos, fortemente apoiada pela indústria de brinquedos, de que crianças não são capazes de imaginar, criar, reinventar por conta própria. Precisamos aprender a olhar para a experiência criativa da criança. Só assim, pais e educadores irão entender que materiais mais abertos possibilitam às crianças a invenção de seus próprios brinquedos ou ainda a reconstrução de novos. Quer força criativa maior do que essa?”, conclui Raquel.
Tempo, espaço, tédio, ócio são convites à imaginação que despertam a força criadora da criança. Gandy Piorski acrescenta.
“A palavra criança é do verbo latim creare (criar), que também provém da raiz credere (crer)”
“O criador, o artista, assim como o místico (aquele que crê) são estudiosos do conhecimento intuitivo, ou seja, daquilo que não é mental, mas aflora da alma. Pela faculdade imaginadora, a criança tem intimidade com esse saber e o explora em silêncio nas suas fabulações e pesquisas.”
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