“Desde que me entendo por gente, moro embaixo de um viaduto na 23 de maio. Minha mãe me rejeitou por algum motivo e minha avó me criou. Eu pedia num farol e ela ficava com o dinheiro”, conta Beatriz Oliveira, 29. Junto do companheiro Alê, fazem de uma barraca sua casa improvisada numa calçada, na Vila Mariana, em São Paulo. As filhas dela, Whitney, 9, e Rihanna, 5, vivem com a avó. “Quando vêm visitar, não deixo elas paradas, a gente vai passear, para que não se acostumem nesse ciclo vicioso. Não quero que elas pensem ‘minha mãe é uma mendiga’”.
“Não seria certo minhas filhas passarem pelo o que eu passei e acabarem achando que a rua é um lar.”
A situação narrada por Bia se repete Brasil afora, sobretudo nos grandes centros urbanos das regiões Sudeste, Nordeste e Sul. O casal se soma às 31.884 pessoas vivendo nas ruas ou em centros de acolhimento na capital paulista, em mais um reflexo da crise sanitária, econômica e social do país em meio à pandemia, nos últimos dois anos. Em pequenos trajetos, é possível perceber o aumento dessa população: 31% em relação a 2019 e de mais de 50% em quatro anos, segundo o primeiro Censo da População em Situação de Rua, divulgado em fevereiro de 2020.
Quando a rua é o único recurso, crianças ficam sujeitas a múltiplos abandonos e privações, que tendem a aprofundar condições de vida já adversas e se perpetuar através das gerações. Nesses espaços, a luta pela sobrevivência é imperativa. Além de incidentes frequentes de violências de todas as ordens (física, psíquica, emocional e simbólica), essas crianças são expostas desde cedo à falta de saneamento básico e higiene; à difícil manutenção de hábitos de alimentação saudáveis e ao aumento da fome; ao uso de drogas e à prática sexual como estratégia de sobrevivência; à imposição do trabalho infantil ou mendicância; e à evasão escolar, por exemplo.
“As histórias são as mesmas, só mudam os personagens.”
“Quando eu tinha 12 anos, minha mãe me pegou de volta. Fui estuprada pelo meu padrasto e a minha mãe ajudou ele a fugir. Daí saí de casa, cada dia estava num canto, passei a traficar drogas… Conheci um cara e fiquei com ele porque ele tinha casa, essa que é a verdade, mas ele abusava de mim. ‘Eu quero ir pra rua’, falava. Eu bebia tanto que o pessoal até me roubava”, relata Bia.
“A rua vicia. É pior do que droga.”
Quando conheceu Alê, ele era viciado em craque. Bia o ajudou a abandonar as drogas. Por sua vez, o companheiro a ajuda a enfrentar a bipolaridade. “Aprendi a lidar com seus momentos de crise”, diz. Hoje, o casal aceita doações de livros para vender.
Ainda que muitas destas questões sejam comuns para quem vive nas ruas, não é possível homogeneizar essa população. “Trata-se de um grupo heterogêneo, atravessado por dimensões de gênero, orientação sexual, diversidade étnico-racial, entre outras, o que torna essa questão ainda mais complexa”, lembra Irene Rizzini, professora do departamento de Serviço Social da PUC-Rio e diretora do Centro Internacional de Estudos e Pesquisas sobre Infância (CIESPI).
“No Brasil, o denominador comum que une as histórias de vida dessa população é a pobreza. Entre os motivos de ida para as ruas, são muito comuns episódios de rupturas, negligências, conflitos familiares e falta de acesso a políticas públicas, fazendo com que muitas vezes precisem partir para as ruas para a sua própria sobrevivência e apoio à família”, diz Irene. A rua também pode denotar um significado de liberdade e acesso a bens indisponíveis nas periferias onde grande parte dessas famílias vivem, ou ainda oferecer fatores de proteção frente ambientes familiares extremamente pobres e violentos.
Enquanto montava uma barraca numa praça próxima a um supermercado junto de três dos oito filhos (Júlia, 17, Iasmin, 13, e Miguel, 2), Vanessa, 45, contou que vêm para a rua na intenção de conseguir alimentos e voltar para casa. Júlia comenta que já passou um período de quatro meses vivendo nas ruas, mas não se sente à vontade para dividir mais detalhes sobre essa experiência.
Esse movimento de voltar para casa diariamente é o mais comum, sendo a minoria que dorme de forma sistemática na rua, conforme indica o relatório do projeto “Conhecer para cuidar”, orientado por Irene, com mais de 700 participantes nas 17 cidades brasileiras com mais de 1 milhão de habitantes. Entre os entrevistados, 64% afirmaram já ter dormido nas ruas; 78% daqueles que se encontravam em acolhimento socioinstitucional disseram o mesmo. Sobre o tempo de permanência na rua, entre aqueles que ainda estavam nas ruas, grande parte deles se encontrava nessa condição por um longo período, mais de 2 anos (32%); no acolhimento, a maior parte deles esteve na rua por até 1 mês (31%).
Desiludida com os governos e sem esperança para as próximas eleições, Júlia se conforma com a espera em receber ajuda:
“Se tiver calma, chega. É que são muitas pessoas, né?”
A rua como catalisadora de vulnerabilidades
Entre as 35,5 milhões de crianças com até 12 anos de idade no Brasil (PNAD Contínua 2018), há algumas para as quais a atenção permanece em segundo plano. Entre elas, crianças em situação de rua.
Por definição, uma criança em situação de rua é toda pessoa ainda em desenvolvimento que, diante da vulnerabilidade, do rompimento de vínculos familiares e comunitários, e da violação de direitos, recorre a “logradouros públicos, áreas degradadas como espaço de moradia ou sobrevivência, de forma permanente e/ou intermitente”.
Fonte: Conanda (Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente)
A ida para as ruas amplia a vulnerabilidade de crianças e adolescentes que já se encontram muitas vezes bastante vulnerabilizadas por vivências de relações conflituosas e exposição à violência, geralmente associadas a casos de doença mental ou doenças crônicas por parte dos pais, morte de um dos responsáveis, prisão, envolvimento com tráfico de droga, detalha a pesquisadora Irene.
“São muitas as possibilidades de tornar a família pouco funcional e em situação de precisar de ajuda.”
Neste contexto, as instituições de acolhimento acabam sendo um espaço de proteção e precisam ser um local de acolhida positivo, para que não sintam vontade de voltar para a rua. No entanto, embora seja uma medida provisória e deva ser respeitada como tal, Irene alerta que muitas vezes essa volta para casa não vai acontecer, prolongando muito a “situação de limbo” e, aos poucos, vão tendo menos chances de reinserção social. Daí a importância de agir com rapidez no sentido de articular as várias políticas que possam dar suporte aos pais e à família de extensão.
Para a psicóloga Juliana Prates, uma das autoras da pesquisa “É fácil tirar a criança da rua, o difícil é tirar a rua da criança”, “não existiriam crianças em situação de rua se não houvesse pobreza, desigualdade social e o não funcionamento do sistema de garantia de direitos que permita que as famílias sejam capazes de proporcionar o cuidado material e emocional que as crianças precisam.”
“As crianças só chegam às ruas quando as políticas de proteção fracassam, com a omissão dos agentes sociais, inclusive todos nós.”
Irene reforça a importância de uma cobertura integrada de políticas sociais capaz de oferecer suporte e orientação para geração de renda e maior autonomia financeira da família, para que as crianças possam ir à escola, recebam atendimento de saúde adequado, inclusive apoio psicossocial e emocional, e tenham acesso a serviços de assistência focados em esporte, cultura, lazer. Ou seja, “os benefícios devem garantir que os filhos possam permanecer no seu contexto familiar e que essa família tenha condições de cuidar deles”.
Vidas ignoradas pela estatística
Um estudo realizado pelo Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), divulgado em março de 2020, projeta que havia aproximadamente 222 mil brasileiros nas ruas naquele ano. Em 2019, 664 eram crianças ou adolescentes. Apesar do alto contingente de pessoas morando nas ruas, não há uma contagem oficial dessa população pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), o que dificulta sua caracterização e a identificação de demandas específicas. Além disso, levantamentos não trazem dados sobre crianças pequenas, grupo mais vulnerável que deveria ter prioridade na elaboração de políticas públicas.
A cada dez anos, o Censo Demográfico levanta dados sobre a população do país e os domicílios habitados por ela. Adiado por causa da pandemia, o Censo deve ser feito agora em 2022. Ainda que haja a intenção de melhorar a caracterização da população em situação de precariedade ou exclusão habitacional no país, ainda não é possível ter uma real dimensão nacional das especificidades relativas às populações em situação de rua.
Apesar do desafio de saber quem são e quantos são, Juliana aponta que “investigar, mapear e contabilizar é o ponto de partida para a elaboração de ações e políticas mais eficazes, de modo a garantir que essas famílias recebam atendimento e sejam inseridas em programas de transferência de renda (que devem envolver as condicionalidades da matrícula e permanência na escola), acesso à moradia adequada, emprego etc.”. Ela também destaca a importância de “ações preventivas, no sentido de evitar que novas crianças e famílias venham para a rua, que sejam parte de um sistema de proteção social que dê suporte às famílias mais vulneráveis, fornecendo subsídios para lidar com as dificuldades e intervenções para as situações de violência e negligência.”
Proteção integral e em rede
Ainda que crianças devam ser tratadas com prioridade absoluta, com força de lei pelo artigo 227 da Constituição Federal, o descaso sistemático e a falta de assistência às suas necessidades básicas parecem fazer parte de um projeto de país para o qual o futuro está à espreita, mas nunca chega.
Histórico de proteção
“As famílias […] que se encontrem em situação de vulnerabilidade e de risco ou com direitos violados para exercer seu papel protetivo de cuidado e educação da criança na primeira infância, bem como as que têm crianças com indicadores de risco ou deficiência, terão prioridade nas políticas sociais públicas”, diz o art. 14, do Marco Legal da Primeira Infância. A prioridade é reafirmada pelo ECA, em seu art. 4, que prevê “preferência na formulação e na execução das políticas sociais públicas” e a “destinação privilegiada de recursos públicos nas áreas relacionadas com a proteção à infância e à juventude”. Contudo, foi só a partir do Decreto Federal n. 7053/2009, que instituiu a Política Nacional para a População em Situação de Rua, que esse grupo teve suas demandas específicas formalmente reconhecidas, sobretudo no campo da assistência social e da saúde. A população infantil e adolescente passou a ser contemplada pelo Conanda, com destaque para a campanha “Criança não é de rua” e a publicação do documento Diretrizes nacionais para o atendimento a crianças e adolescentes em situação de rua, lançado em outubro de 2017, para orientar o trabalho de proteção social e promoção de direitos junto a este segmento.
A advogada Mariana Albuquerque Zan, do Instituto Alana, que estudou possibilidades de implementar um projeto voltado a crianças e adolescentes em situação de rua de Ribeirão Preto, no interior de São Paulo, pontua que há “um crescente e progressivo desmantelamento das políticas públicas relacionadas com a proteção à infância e à juventude, na contramão da absoluta prioridade na destinação de recursos públicos para esse público”. Quando Executivo e Legislativo falham em solucionar a situação de quem vive nas ruas, ou faltam redes de proteção, a judicialização de políticas públicas é, para ela, uma alternativa viável, de forma a garantir o respeito aos direitos básicos dessa população. “O cuidado deve ser não simplificar questões complexas, o que pode até acentuar desigualdades”, pondera.
Em 2020, foram R$ 298,1 milhões a menos de recursos destinados para a subfunção “Assistência à criança e ao adolescente” em comparação com 2019 e R$ 45,7 milhões a menos executados. Além disso, considerando-se apenas as despesas de 2020, restou ser executado 19,5% do valor disponível no orçamento público brasileiro.
Fonte: Relatório “Um país sufocado: Balanço Geral da União 2020”
Para ela, “a despeito de seus direitos fundamentais serem constante e sistematicamente violados, essas crianças e adolescentes possuem demandas específicas e organizam-se em torno de seus interesses, traçando suas próprias trajetórias e seus futuros”.
A importância de políticas públicas para assegurar a proteção integral de crianças e adolescentes em contextos de extrema pobreza e vulnerabilidade é reforçada por Irene Rizzini, que defende uma articulação em rede (intersetorial e interdisciplinar) em seu artigo “População infantil e adolescente nas ruas: principais temas de pesquisa no Brasil”: “Embora a responsabilidade do Estado sobre esta população esteja prevista em uma série de instrumentos legais e planos governamentais, os direitos de crianças e adolescentes em situação de rua ainda carecem de priorização, efetivação e monitoramento para que façam alguma diferença em suas vidas”, alerta. Nesse processo, Irene pontua a importância do cuidado e da escuta para que crianças e adolescentes possam participar ativamente das decisões que lhes dizem respeito, podendo expressar suas demandas e se tornar agentes na construção e execução de propostas referentes ao seu atendimento.
Votar pela criança é votar por todos
Em tempos eleitorais, evidencia-se a urgência de se investir em políticas públicas direcionadas a essas crianças “abandonadas”, sobretudo na primeira infância, fase que demanda cuidados específicos por estarem em pleno desenvolvimento. Essas famílias precisam ter acesso amplo, integral, simplificado e seguro a serviços e programas que integram as políticas públicas de saúde, educação, previdência, assistência social, moradia, segurança. Enquanto as crianças não constarem dos planos de governo e não receberem a assistência devida dos poderes públicos, seguirão sendo negligenciadas como a promessa incapaz de vir a ser, pois não lhes é garantido o básico de que necessitam para crescer de forma saudável e segura.
“Não é possível falar de um país mais justo e igualitário se as infâncias não estiverem no centro dos debates e projetos políticos.”
Para a advogada Mariana, “o Estado, ao descumprir sua obrigação de sistematizar dados sobre a população infantojuvenil em situação de rua, em uma articulação perversa, escusa-se do planejamento e execução de uma política pública específica. Assim, a inexistência de informações caracteriza-se como um dado em si: desvela a invisibilidade de crianças e adolescentes em situação de rua nas agendas políticas.”
Sobre o paradoxo da invisibilidade perante o Estado enquanto essas pessoas são cada vez mais visíveis para todos, Juliana Prates considera que “o extermínio dessa população, em muitos casos, não é fruto do acaso, mas sim de um projeto que sistematicamente compreende que algumas vidas valem e outras não. Só aceitamos a existência dessas crianças e adolescentes nas ruas, pois aceitamos o acordo tácito que compreende que crianças pretas, pobres, periféricas valem menos. Porque nos afeta muito mais sua incômoda presença nos espaços públicos que circulamos do que as suas mortes em regiões periféricas e distantes”, reflete.
Para Juliana, “não queremos ver as crianças nas ruas, mas também não queremos abrir mão dos privilégios e comodidades de um sistema capitalista brutal. Elas são um subproduto do sistema neoliberal, de um racismo estrutural e de uma sociedade que acredita na meritocracia sem sistemas de reparação”, diz. “Muitos até dão esmolas e contribuem com projetos que atuam junto a essa população (o que ameniza a culpa e dá a falsa sensação de que cada um está fazendo a sua parte), mas poucos apoiam as efetivas mudanças políticas, sociais e econômicas que ajudariam a enfrentar verdadeiramente essa questão”, arremata.
“As crianças em situação de rua não me parecem abandonadas pelo Estado. Há uma perseguição ativa, disfarçada de abandono.”
Enquanto as populações em situação de rua seguem na sua condição de invisibilidade na agenda política nacional, resultado de uma história de violações de direitos, tem quem vislumbre o caminho da participação para operar transformações de real impacto. Bia estudou até o sexto ano e tem vontade de retomar os estudos, para ser assistente social e, quem sabe, melhorar as condições para quem vive nas ruas. Dos serviços disponíveis, ela destaca os consultórios de saúde e o banho que toma na Sé, mas sente falta de tratamento psicológico para os moradores de rua. Pessoas que foram criadas no mesmo viaduto que ela ainda estão lá com os filhos, conta, mas Bia sonha em ter um quartinho, alugar um canto, para estar com as filhas, e que elas estudem, façam faculdade.
“A vida é difícil, mas é porque eu não tive opção. Estou na rua porque não tenho mais para onde ir.”
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O Censo de Crianças e Adolescentes em situação de rua, realizado pela Prefeitura de São Paulo após um hiato de 15 anos, acaba de apontar a existência de 3.759 crianças e adolescentes, entre 0 e 17 anos e 11 meses, em situação de vulnerabilidade social. Deste total, 10,7% pernoitam nas ruas; 16,2% estão acolhidos em serviços da rede socioassistencial; e a maior parcela (73,1%) utiliza as ruas como forma de sobrevivência, ainda que por um breve período do dia. A maior parte dessa população é de meninos, que representam quase 60% do grupo. A faixa etária de 12 a 17 anos é a que concentra o maior número (42%). Pardos e pretos representam mais de 70% dos casos.