Fincado no coração da Praça 14 de Janeiro, em Manaus, está o Quilombo Urbano do Barranco de São Benedito. Pode parecer, a princípio, um espaço periférico comum. Mas trata-se do segundo quilombo urbano do Brasil, certificado pela Fundação Cultural Palmares, em 2014, e Patrimônio Cultural Imaterial do Estado do Amazonas.
Com o objetivo de preservar a memória coletiva da comunidade a partir do resgate da cultura negra no Amazonas, principalmente repassando às crianças saberes, um grupo de mulheres (professoras, pedagogas e filósofas) fundou a Associação Crioulas do Quilombo de São Benedito. Lá, são realizadas “Rodas de conversa”, com cerca de 50 crianças, que nasceram e vivem na comunidade, para debater sobre a questão da negritude a partir da contação de histórias com bonecos.
Por meio dessas encenações pensadas especialmente para elas, as crianças são convidadas a responderem questões sobre o que foi ensinado, de modo a fixar o aprendizado, e também aprendem a produzir seus próprios fantoches e bonecas de pano, “uma forma de reproduzir a história de nossa gente às crianças a partir de bonecos, que se transformam também em orixás e figuras históricas pretas”, conta Jamily Souza, uma das coordenadoras das ações do Quilombo.
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De acordo com ela, a ideia é não deixar a memória das pessoas que construíram o quilombo e sua cultura morrerem. “As atividades são uma forma de garantir que a nossa história não se perca futuramente. Queremos que as próximas gerações saibam tudo que nossos antepassados fizeram e a importância de preservar a cultura que deixaram, por isso o trabalho direcionado aos pequenos”, comenta.
“Reconstruímos uma história de resistência e luta para a manutenção das nossas tradições e para reafirmar nossas identidades étnicas”
Os griôs também desempenham papel importante ao auxiliarem na tarefa de repassar conhecimentos às crianças do quilombo manauara, nas “Rodas de conversa”. “Esse é o momento dos mais velhos contarem suas experiências de vida e compartilharem suas memórias”, explica Jamily.
A pedagoga Rafaela Fortes, moradora do quilombo e uma das responsáveis pela realização das oficinas, explicou que a ideia é fazer com que as crianças tenham orgulho da história de seu povo. “Observamos que utilizar métodos mais criativos dá mais resultados, porque atrai as crianças a participarem e dá a oportunidade de serem inseridas”, avalia. Para ela, essa nova geração pode fincar a tradição com esses aprendizados.
“Encontramos nossa forma de contar nossas histórias e defender nossos costumes. Para nós, é essencial que as crianças daqui tenham uma educação antirracista, para saberem se posicionar. Entendemos que o negro tem que estudar em dobro para ser respeitado”, avalia.
A memória dos antepassados visitada pelas crianças
Participante ativa do Quilombo, Evelyn, 11, considera as atividades que envolvem a criação dos bonecos e narração das histórias uma “forma legal” de incentivar a conhecer a ancestralidade da população local.
“A gente fica feliz de conhecer sobre nossas origens e saber de onde viemos. Tudo que a gente aprende aqui, com certeza vamos levar para sempre. Fazer bonecas é divertido, mas é sério!”
Para June, 9, a confecção de bonecos ajuda a “não esquecer de quem somos e de onde viemos. É importante participar de tudo. Eu gosto de fazer as bonecas e conhecer histórias”, resume.
Para o filósofo Vinícius Alves da Rosa, que pesquisa o quilombo e sua importância cultural para a história do Amazonas, trata-se de “um território cuja forma de vida cabe ser abordada, seja na resistência da manutenção de terras, seja no processo de luta por reconhecimento social”. Sobre a participação das crianças nas ações desenvolvidas no dia a dia e por meio da educação quilombola repassada via oralidade, ao produzirem artesanato ou escreverem livros infantis com personagens negros e negras, por exemplo, “as crianças desenvolvem aos poucos consciência e identidade étnicas, à medida em que vão conhecendo as histórias e vivências junto à comunidade”.
Viva São Benedito. Viva!
Os remanescentes quilombolas mantêm a tradição ao redor de São Benedito. É uma das formas de inserção e participação das crianças, pois o festejo é apontado como o responsável pela preservação da tradição dos fundadores da comunidade do Barranco que, há mais de um século, realiza as festividades em honra ao padroeiro da vila.
“As crianças adoram adornar o mastro com as frutas. Elas se sentem parte integrante de tudo”, diz Jamily. Para ela, esta é uma importante ocasião quando as crianças percebem a importância de morar no quilombo, no meio da cidade.
A pequena June adora participar da festa do santo e enfatiza que a parte legal é enfeitar o mastro e também quando ele cai. “A gente participa todo ano e sabe que é importante para nossa cultura, que isso faz parte da nossa vida”, diz.
Durante a festa de São Benedito, quando as pessoas visitam a comunidade, Jamily percebe o quanto a tradição e a comunidade se tornaram importantes para a cidade. “Isso também é por causa do que repassamos às novas gerações”, analisa.
“Essas atividades vão gerar nas crianças novas fontes de memórias”, analisa a historiadora Irian Butel. Para ela, é uma forma de garantir a manutenção da identidade cultural dos povos afrodescendentes de Manaus. “Não é apenas um espaço de vivências. São famílias inteiras que se reconhecem em laços de parentesco e laços culturais, e promovem a sua memória por meio do repasse de conhecimentos e tradições.”
“Contar a história é um mecanismo de tradição de saberes”
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O espaço quilombola foi ocupado por descendentes de escravos desde a chegada da Dona Maria Severa Nascimento Fonseca e sua família, há 128 anos, como escrava alforriada do município de Alcântara, no Maranhão. Dona Severa trouxe consigo costumes e tradições de seus antepassados, que hoje permanecem vivos na memória e nas narrativas de seus descendentes.