“Bem-vindo de volta”, costumam dizer com naturalidade os pais quando as crianças retornam de suas primeiras tarefas fora de casa. Embora possam ter ficado apreensivos durante a espera. Acompanhar meninos e meninas em pequenas missões cotidianas, como ir ao supermercado ou levar roupas até a lavanderia, sem a ajuda de adultos, é a ideia por trás do reality show japonês “Crescidinhos”.
Um retrato da autonomia infantil
Muito popular no Japão nos anos 1990, a série chegou ao catálogo de todos os países atendidos pela Netflix, inclusive o Brasil, e se tornou um fenômeno mundial. Em 20 episódios com menos de 15 minutos cada, “Crescidinhos” nos convida ao debate sobre a autonomia infantil e como contribuir para a formação de seres responsáveis e confiantes.
“A autonomia deve ser incentivada de forma gradual, a partir de atividades que as crianças consigam realizar, de acordo com a sua idade. E isso começa dentro de casa”, recomenda Fernanda Mishima, doutora em Ciências, na área de Psicologia Clínica. Como algumas funções pedidas pelos adultos no programa implicam habilidades que elas ainda estão desenvolvendo, “algumas crianças vão desempenhá-las com facilidade, mas outras não”, pontua a especialista.
Habilidades desenvolvidas ao longo do tempo
Assim, ainda que as tarefas sejam apresentadas de forma leve e bem-humorada, há momentos sensíveis, que mostram a dificuldade e o esforço das crianças, acredita Ana Laura, mãe de Cadu, 4, e Iami, de 5 meses, “Dei bastante risada e depois chorei”, confessa. Fernanda aproveita para esclarecer que, “se um adulto vai ao mercado, ele escolhe o que é importante, o que o dinheiro consegue comprar. Mas, em um dos episódios, o pequeno protagonista, que precisa cumprir sua tarefa, se distrai com o miado de um gato. Ele ainda não está focado e concentrado em realizar seu objetivo”, explica a psicóloga.
Ana Laura também celebra a coragem das mães em participar dessa experiência. Permitir que a criança vá conquistando, aos poucos, independência tem a ver com o processo de desenvolvimento tanto maturacional quanto afetivo, comenta Fernanda. “No início da vida, a criança tem uma dependência muito grande de uma figura que cuida. Para que as habilidades possam ser desenvolvidas pelas crianças, elas precisam ser cuidadas por alguém. Por isso, é importante que esse adulto ofereça suporte para o pequeno se sentir cada vez mais seguro para fazer tarefas sozinho”.
“Nós, em alguns momentos, vamos estar sozinhos. Precisamos estar sozinhos”
As tarefas e o brincar andam de mãos dadas
No reality show “Crescidinhos”, a maior parte dos protagonistas aceita com empolgação suas primeiras tarefas. Eles se mostram felizes pela confiança dos pais e por poderem contribuir com a família. Contudo, essa fase é conhecida por aqui como a “crise dos dois anos”, lembra Fernanda, em que as crianças começam a demonstrar vontades e a fazer suas próprias escolhas. Passando, muitas vezes, a não aceitar tudo que os cuidadores oferecem e a se opor a eles de forma mais constante.
“Geralmente nessa fase elas já andam, brincam e conseguem se comunicar verbalmente”, sugere a doutora em Ciências. “Ao começar a aprender o significado da palavra ‘não’, o ‘não’ se torna imperativo. Então, com muita paciência, pais e cuidadores vão mostrando que é importante dizer ‘não’, mas que existem limites e situações apropriadas”, reforça.
“Nem sempre as crianças respondem ao que os adultos têm a dizer. Não é no nosso ritmo, é no ritmo da criança”
Um estímulo ao senso de responsabilidade
Pequenas tarefas em casa e na escola podem ser aliadas nesse processo de estimular a cooperação e atribuir o senso de responsabilidade às crianças. Vale praticar como tomar banho, escovar os dentes, buscar algum objeto que os pais peçam, separar livros ou ajudar a professora, detalha a especialista. Às vezes, basta o exemplo.
Depois de assistir um dos episódios de “Crescidinhos”, Moana, 4, levou os pratos para a cozinha sozinha, mesmo com um pouco de medo do escuro. “Muitas vezes, a gente prende as crianças, em especial as meninas, e não as deixa fazer algumas tarefas com medo de quebrarem algo ou de se cansarem”, comenta a mãe, Letícia. “Mas sei que, com atenção e carinho, é possível que elas se sintam capazes de se cuidar e de ajudar a família”. Se a menina pudesse escolher uma tarefa para fazer, ela gostaria de “ir ao banheiro sem ajuda”, revela Moana.
O papel das brincadeiras
Para auxiliar no processo de desenvolvimento de seu filho Cadu, 4, Ana Laura aposta nas brincadeiras como forma de incluí-lo nas tarefas de casa. “Enquanto eu troco a fralda da minha filha caçula, ele também faz todo o processo com um boneco – higienização, troca e carinho”, conta. “Aqui em casa a gente acorda, dá ‘bom dia’, troca fralda, faz ‘mama’ com água, leite e esquenta. Eu ajudo a mamãe usando a água e o rodo”, diz Cadu, que tem uma minivassoura e um rodinho de brinquedo para participar à sua maneira.
Para Fernanda, as crianças podem brincar enquanto aprendem uma tarefa, como forma de desenvolver responsabilidade e ampliar suas capacidades. “Quando uma criança pequena ajuda a professora a fazer a chamada, mesmo sem saber ler, ela pode ver as fotos dos amiguinhos e assim identificar quem está presente e quem faltou. De certa forma, ela está brincando e aprendendo uma habilidade”, exemplifica.
Tarefas feitas como crianças
Ainda que a série “Crescidinhos” mostre crianças realizando algumas funções normalmente desempenhadas por adultos, elas fazem essas tarefas enquanto crianças, e não como “miniadultos”. “As crianças utilizam suas próprias aquisições e habilidades para realizar as tarefas de uma maneira que faça sentido para elas. De modo que possam perceber o valor de suas ações, tanto para ela quanto para a comunidade em que ela vive. Um desenvolvimento emocional saudável passa por cuidar de si próprio e também conseguir cuidar dos outros“, sugere a doutora em Ciências.
“A intersecção entre brincar e aprender a autonomia é fundamental para que as crianças vejam sentido naquilo que estão fazendo”
Cuidar da criança é responsabilidade de todos
Há em “Crescidinhos” uma diferença cultural importante e um paralelo entre independência e interdependência, pontua Bruna Navarone Santos. Ela é cientista social que pesquisa animes, mangás e sci-fi no grupo de estudos AMSEC-POP, da Fiocruz-RJ. “Na cultura ocidental, muitas vezes, se valoriza mais a independência das pessoas na realização dos trabalhos diários. Enquanto que, na cultura japonesa, a concepção de ser humano (人間 – Ningen) significa ‘entre pessoas’. E remete ao fato de cada um se desenvolver na convivência com outras pessoas. A interdependência ao realizar trabalhos que são importantes para a manutenção do bem-estar de todos é valorizada”, diz.
Dessa forma, a série mostra uma preocupação das famílias japonesas para que as crianças entendam e compartilhem, desde cedo, a responsabilidade dos processos de bem-estar em suas casas e de sua comunidade. Valorizando que todos devem trabalhar arduamente, serem honestos e obedientes. Ocupados com outras tarefas, os cuidadores sinalizam que precisam que as crianças se esforcem para contribuir com algum produto que será consumido por todos, como as refeições.
Reflexões a partir do cotidiano
Segundo Bruna, acredita-se que os padrões comportamentais podem ser compreendidos a partir de algumas concepções, como por exemplo, a “piedade filial (親孝行 – oya-koko)”, em que os filhos são ensinados a serem recíprocos e mutuamente dependentes em relação aos pais como forma de retribuir pelos cuidados que recebem.
“Você consegue, é capaz e é corajosa”
– Mensagem da mamãe no amuleto (“Crescidinhos”, episódio 15)
Camila Mai Nobusawa cresceu no Japão assistindo à série. “O programa fazia parte do dia a dia de muitas famílias e trazia bons momentos de diversão e reflexão”. Ela conta ainda que, com seis anos, as crianças já iam para a escola sozinhas e caminhavam pequenas distâncias, com ajuda do treinamento que faziam na escola e sob a supervisão de alguns pais voluntários.
Rito de passagem ou desigualdade?
Enquanto no Japão o momento em que meninos e meninas são endereçados às suas primeiras responsabilidades é considerado uma espécie de rito de passagem na infância; no Brasil, devido às desigualdades sociais e outras marcas culturais, pode haver espanto quando se vê crianças tão pequenas percorrendo grandes distâncias a pé e sozinhas em centros urbanos. Ana Laura relembra sua infância e reforça que, nas periferias, os pequenos precisam “ganhar autonomia” mais cedo. “Muitas vezes, eles precisam cuidar da casa, do irmão e até começar a trabalhar precocemente”, comenta.
Ao longo dos episódios de “Crescidinhos”, além da intervenção da equipe de filmagem em alguns momentos decisivos, vizinhos, parentes e funcionários dos estabelecimentos acompanham o percurso das crianças e aguardam suas visitas. Meninos e meninas utilizam bandeiras, e algumas ruas estão preparadas com cones e avisos para que os automóveis fiquem atentos à sua passagem. “Essas cenas são interessantes por mostrarem que o bem-estar e a segurança das crianças são responsabilidade da comunidade, para além das famílias“, comenta Bruna.
O mesmo vale para o nosso país, que endereça prioridade absoluta a familiares, comunidade e Estado no cuidado com crianças. Ao mesmo tempo em que vibramos a cada nova missão realizada pelos pequenos, somos provocados a refletir sobre uma sociedade que inclua de forma amigável as crianças no seu dia a dia, e percebemos a urgência em avançar no combate às desigualdades e na promoção de direitos para meninos e meninas brasileiros.
Outros conteúdos na mesma temática
Conheça também os documentários infantis produzidos por uma TV pública holandesa, em que crianças em idade pré-escolar superam desafios cotidianos, como preparar alimentos, passear com o cachorro ou dar seu primeiro mergulho. Os programas fazem parte de um movimento que busca inspirar pequenos espectadores a encontrarem soluções e se sentirem capazes de realizar atividades próprias para a faixa etária.
Leia mais