Nosso Natal não tem neve, mas tem manga, praia, rio cheio e sol estalando. Apesar disso, quando essa época do ano chega, o que costuma aparecer são pinheiros cobertos de gelo, personagens brancos e presépios europeus saídos de um inverno que nunca pisou aqui.
O recado fica subentendido: o que é mágico, bonito e especial quase nunca se parece com a gente, nem com as nossas crianças. Esse imaginário estreito não é apenas uma escolha estética, mas o modo como ensinamos quem protagoniza nossas histórias.
“O Brasil é um país de maioria negra, indígena e miscigenada, mas as imagens que embalam as crianças são quase sempre importadas de uma realidade que não é nossa, de corpos que não nos representam”, afirma Tatiane Santos, pedagoga e especialista em educação racial infantil. “Quando proporcionamos um repertório para além do Natal europeu, ganhamos verdade e justiça.”
Ampliar o imaginário infantil e superar as referências europeias “é um ganho em humanidade”, diz o professor e escritor indígena Daniel Munduruku. “Há culturas e crenças diferentes e outras formas de celebrar. Os povos indígenas se entendem como parte de um ciclo de tempo que os tornam parte da natureza. Por isso, a partilha não é só com troca de presentes, mas com atos de cuidado com todos os seres vivos.”
E se mudarmos o cenário? Se as festas celebrarem a floresta e os rios que nos atravessam, os terreiros e quilombos que sustentam nossa história, as múltiplas infâncias indígenas que existem no país? Ao Lunetas, Tatiane Santos e Daniel Munduruku sugerem um fim de ano com a cara do Brasil.
Resgatando a ancestralidade negra
Um fim de ano afrocentrado não é só “mudar a decoração, é resgatar o que foi perdido na história do povo preto e recriar rituais que façam sentido para cada família”, indica Tatiane.
Para ela, quando criamos possibilidades para além do Natal europeu:
- Combatemos o racismo estrutural que coloca o branco como padrão de beleza, bondade e pureza;
- Reconhecemos a contribuição dos povos africanos e afro-brasileiros na cultura, na religiosidade, na culinária, na música;
- Formamos crianças que entendem diversidade como algo natural, não como “tema do dia 20 de novembro” (data que marca a morte de Zumbi dos Palmares, em 1695, e se tornou o Dia da Consciência Negra).
“Uma educação antirracista não é um projeto pontual, é prática cotidiana – inclusive nas festas.”
Onde o Natal encontra nossas raízes
Para ressignificar o Natal, precisamos “trocar o imaginário importado por referências que tenham o cheiro de casa de vó, de terreiro, de quilombo, de roda de samba”, sugere Tatiane. “Temos que colocar nossas famílias em destaque: em quadros, ilustrações e fotos que mostram crianças negras rindo, correndo e ocupando o centro da cena.”
A seguir, ela indica caminhos para celebrar com axé, verdade e pertencimento:
- Montar uma árvore de Natal com tecidos afro-brasileiros, símbolos adinkra (imagens do povo Ashanti, de Gana, usadas em tecidos, logotipos, cerâmica e arquitetura), bolas ou pendentes com palavras como “axé”, “ubuntu”, “quilombo”, “afeto”;
- Usar um presépio com Maria, José e Jesus negros — “Afinal, se queremos aproximar a cena da nossa realidade e recuperar a ancestralidade perdida, precisamos também renegociar as imagens sagradas”, afirma;
- Procurar enfeites de Papai Noel com a pele retinta. Se não achar, adaptar os que já tem em casa, por exemplo, enfeitando a imagem com turbante ou gorro feito de tecido africano;
- Preparar a mesa com tecidos como chita, algodão cru, renda e estampas afro. As cores podem ir além do dourado, vermelho e verde: tons de marrom, terra, âmbar e laranja lembram pele, barro, sol e fogo;
- Decorar a casa com materiais naturais, como sementes, conchas, folhas secas, galhos, pedras, aproximando as crianças da natureza e da ideia de ancestralidade vinculada à terra;
- Usar madeira, sisal, palha, barro remete aos artesanatos de comunidades quilombolas e de matriz africana.
As histórias que circulam nas tradições indígenas
O Natal não era uma tradição indígena até a chegada dos missionários jesuítas em 1549, que introduziram a celebração cristã e seus rituais no Brasil. Com a conversão dos povos ao catolicismo, as comunidades passaram a incorporar a prática, que hoje faz parte do cotidiano de muitos deles.
Foi assim com o escritor Daniel Munduruku que, desde criança, conviveu com o Natal como prática religiosa. Ele conta que nunca viu nenhuma adaptação dos rituais, porque sempre foi católico e viveu com as mesmas simbologias cristãs. Porém, ressalta uma visão de mundo diferente que proporciona que a data seja menos ligada ao consumo e mais ao afeto.
“Trocar presentes não faz parte do cotidiano indígena, por conta da nossa noção cíclica do tempo”, explica. “O que as comunidades fazem é trocar histórias. Incentivamos as crianças a acumularem vivências — delas e de outras pessoas —para compartilharem no dia da passagem do ano.”
Natureza, encantados e novos sentidos
Para Daniel, incluir referências indígenas no Natal significa dar novos sentidos à festa a partir da relação profunda dos povos originários com a natureza e com o tempo. “Cada símbolo deve ser apresentado às crianças de forma contextualizada, para que ampliem seu repertório com cuidado e respeito”, afirma.
A seguir, o escritor dá algumas ideias para celebrar a floresta, os encantados e a passagem do tempo:
- Montar uma árvore de Natal com tecidos afro-brasileiros, símbolos adinkra (imagens do povo Ashanti, de Gana, usadas em tecidos, logotipos, cerâmica e arquitetura), bolas ou pendentes com palavras como “axé”, “ubuntu”, “quilombo”, “afeto”;
- Usar um presépio com Maria, José e Jesus negros — “Afinal, se queremos aproximar a cena da nossa realidade e recuperar a ancestralidade perdida, precisamos também renegociar as imagens sagradas”, afirma;
- Procurar enfeites de Papai Noel com a pele retinta. Se não achar, adaptar os que já têm em casa, por exemplo, enfeitando a imagem com turbante ou gorro feito de tecido africano;
- Preparar a mesa com tecidos como chita, algodão cru, renda e estampas afro. As cores podem ir além do dourado, vermelho e verde: tons de marrom, terra, âmbar e laranja lembram pele, barro, sol e fogo;
- Decorar a casa com materiais naturais, como sementes, conchas, folhas secas, galhos, pedras, aproximando as crianças da natureza e da ideia de ancestralidade vinculada à terra;
- Usar madeira, sisal, palha, barro remete aos artesanatos de comunidades quilombolas e de matriz africana.
“Quando incorporamos elementos indígenas com respeito, o Natal deixa de ser uma repetição automática e passa a ser uma oportunidade de reencontrar sentidos — para nós e para as crianças.”
