Liniers acaba de lançar seu primeiro livro infantil, “Os sábados são como um grande balão vermelho”. Quem conhece o quadrinista argentino Ricardo Liniers Siri, fenômeno mundial com as tirinhas “Macanudo”, pode pensar que se trata de algum equívoco jornalístico. Como assim, “primeiro”? E todos os outros?
O trabalho de Liniers é todo marcado por uma forte aproximação com a infância. Seus filosóficos personagens – a menina Enriqueta, o gato Fellini, monstrengo/amigo imaginário Olga e os Pinguins simbolizam elementos fundamentais do que é ser criança: a imaginação, a fantasia, a curiosidade, a fabulação, o nonsense. Feito um menino que não está interessado em crescer, o artista se apropria tanto da linguagem das crianças que todas as suas criações parecem ter sido feito para elas.
No mês da criança, conversamos com diversos artistas para conhecer de perto sobre sua visão sobre infância, a criança, o brincar. Depois de Tom Zé e da dupla Palavra Cantada, agora é a vez de Liniers compartilhar o seu olhar sobre o que é ser criança e habitar essa infância que nunca acaba.
Seu livro “Os sábados são como um grande balão vermelho” acaba de ser lançado no Brasil, pela editora V&R, com tradução do escritor e editor Fabrício Valério – autor de “A menina que parou o trânsito com sua bicicleta”. Sua edição original foi indicada ao prestigiado Eisner Awards, na categoria melhor publicação para primeiros leitores.
Uma infância contada em tiras
Com quase uma década de vida, a série Macanudo é publicada diariamente desde 2011. Por aqui, ela circulou entre 2009 e 2011, na Folha de São Paulo, onde saía todos os dias, conquistando crianças de todos os tamanhos, com suas poéticas cheias de humor e lirismo sobre as simplicidades e descobertas do cotidiano. Com mais de 20 livros publicados, a obra de Liniers já chegou a países como Canadá, Espanha, Esstados Unidos, França, Itália, México e República Tcheca. Pai de três meninas – Matilda, Celementina e Ema, ele vive hoje em Vermont, nos Estados Unidos, onde é artista-residente no Center For Cartoon Studies.
“A tirinha Macanudo nunca foi feita pensando no público infantil. Ou mesmo em um público. Eu desenho para mim, observando aquelas coisas que me parecem interessantes, absurdas, divertidas, graciosas, complexas”, conta.
Leitor de clássicos infantis como Roald Dahl (autor de “Matilda”, que deu nome a uma de suas filhas), Maurice Sendak, ele defensor ferrenho de que são se deve subestimar as crianças. Quando questionado se existe afinal uma separação entre o mundo adulto e o mundo infantil, em relação à sua obra, ele explica que desenha para fazer as pessoas sentirem.
“Os livros que faço para crianças têm uma tangente diferente. Eu quero que a criança sinta algo, e que sinta com intensidade suficiente para poder pensar: “Gostei de ler esse livro, quero ler outro”.
A criança e a reinvenção do mundo
Em “Os sábados são como um grande balão vermelho”, Liniers conta um dia comum na vida de qualquer criança a quem foi dado o direito e a possibilidade de ser criança. Ou seja, um dia feito de invenções e descobertas.
A história foi inspirada em suas filhas, que, num sábado chuvoso, transformaram um contratempo em matéria-prima para brincar. Tudo começa quando Clemi, a mais velha, acorda a pequena Matilda cheia de empolgação, planejando um piquenique, colher flores e correr ao ar livre. “Acorda, Clemi, hoje é sábado o dia inteiro”. Para a sua surpresa, chove muito lá fora. “Não se preocupe”, ela diz, “A chuva é divertida”. E lá se vão as duas, descobrir juntas com quantas imaginações se faz uma dia inesquecível.
“Em um dia chuvoso de verão, vi minhas filhas saírem para brincar embaixo da água. E senti que não só havia uma semente para uma história, mas também queria guardar esse dia de alguma forma. Então, feito um feiticeiro estranho, eu a coloquei em um livro, e agora tenho esse dia para sempre. Na história, o tópico mais interessante para mim é a relação entre as irmãs. Eu acho que é muito universal e rico para jogar nas páginas de um livro”, conta o desenhista.
Repleto de simbologias sobre a cultura de infância, o livro faz uma defesa pelo brincar livre, e fala sobre a capacidade das crianças de ressignificar o real para um mundo de fantasia e invenção. Afinal, se o que a gente espera da vida é um dia ensolarado, mas as nuvens cinzentas e carregadas aparecem no lugar, é preciso saber lidar com elas. Como as meninas do livro, talvez seja hora de vestir as botas mais confortáveis, brincar enquanto a tempestade não passa e esperar pelo arco-íris.
A infância é uma pátria
Mas o que é infância para quem está já se acostumou a desenhá-la em tiras?
“Rilke dizia que a infância é nossa pátria. É a base da arquitetura que poderemos erguer ao longo de toda a nossa vida. Uma boa infância é uma grande vantagem na vida de uma pessoa. Nesse sentido, tive muita sorte, e faço o que posso para que minhas três filhas possam sentir o mesmo quando crescerem”, diz.
Para Liniers, permanece criança quem não esquece que brincar é uma linguagem, e não precisa ser esquecida conforme crescemos. Cabe ao adulto, então, não só proporcionar o tempo e o espaço para que isso aconteça com os filhos, mas também com ele próprio.
“Brincar é a melhor versão da liberdade.
“Todas as emoções podem fazer parte de uma brincadeira. A alegria, a angústia, a incerteza, o medo, o humor. Tudo. Com um pouco de sorte, não se esquece disso e continua brincando para sempre. A vida sem brincadeira é cinza. Eu continuo, de vez em quando, desafiando-me a alcançar a esquina do quarteirão sem pisar nas listras dos azulejos. Às vezes, consigo.”, brinca.
Quem quiser mergulhar nesse jeito “macanudo” de ver o mundo, clique aqui e conheça de perto o trabalho de Liniers, ou assista ao documentário sobre seu universo de criação, “O Traço Simples das Coisas”: