Durante três noites, ao som de toadas, danças, rituais e lendas da Amazônia, acontece uma festa cheia de cores, luzes e batuques. Nela, os protagonistas são dois bois-bumbá, que disputam a vitória: o Garantido (que defende as cores vermelha e branca) e o Caprichoso (cores azul e branca). Ambos são feitos de pano, com movimentos que imitam um boi real, sendo reconhecidos como patrimônio cultural pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan).
No último final de semana de junho, a cidade é tomada por milhares de turistas que vêm prestigiar o Festival Folclórico de Parintins (AM), considerado um dos maiores festivais folclóricos do país – por conta da pandemia de covid-19, o evento não é realizado desde 2019. A festa representa um enorme mosaico de expressões culturais dos povos da Amazônia, com referências aos costumes e tradições das populações negras, indígenas e caboclas. O acontecimento movimenta a economia da cidade, de pouco mais de 120 mil habitantes, com suas alegorias gigantescas que impressionam pelo realismo.
Mas, dentro desse gigantismo que é o festival, há outra brincadeira em Parintins, que conta com a participação de crianças e jovens munidos com seus minibois: o Festival dos Bois em Miniatura, uma iniciativa independente que existe há mais de duas décadas. Nesse evento, que geralmente ocorre após o festival folclórico, os pequenos representam alguns personagens do auto do boi como o levantador (cantor), o amo do boi (assim como a sinhazinha, é o representante branco da brincadeira) e o apresentador. As crianças são também responsáveis pela marujada e batucada (percussão). Os outros personagens são bonecos, com engrenagens que se mexem, por meio de manipulação. O espetáculo é apresentado em cima de mesas, com disputa entre os dois boizinhos e sua melhor performance, com direito à premiação e trófeu.
Uma história que começou pelas mãos – e mentes criativas – de duas crianças, no quintal de sua casa, usando os materiais que tinham à sua disposição, lá em meados dos anos de 1990…
Bois em miniatura: da brincadeira de quintal ao festival
A brincadeira começou no quintal da casa de dois irmãos, Francijaner e Francijuner Matos, que, na época, tinham 5 e 7 anos respectivamente. Como não podiam ir ao bumbódromo, resolveram brincar com caixas de fósforos, folhas, flores e penas de aves, representando os “itens”, ou seja, os personagens do folguedo. Na época, eles moravam no reduto do Garantido.
Francijuner, que hoje tem 36 anos, recorda o surgimento da brincadeira naquela Parintins dos anos de 1990. “O evento sempre foi muito esperado, pois era quando a cidade ficava mais animada. Antes de chegar o mês de junho, brincávamos de festival no fundo do quintal, com folhas, flores e galhos imitando os itens que disputam o tradicional festival folclórico”. Para que tudo ficasse “mais real”, eles chamavam os primos e os colegas para brincar.
Em 1993, a família foi morar na capital Manaus e tiveram de dar uma pausa na brincadeira. “Em 1996, o Festival Folclórico de Parintins começou a ganhar grande proporção, ficamos orgulhosos e a saudade da ilha bateu mais forte”, diz. Ao voltarem, o festival tinha se tornado muito além do Amazonas. “Fomos morar em outro bairro, numa região onde o material dos bois era descartado. Pegamos todo aquele isopor, cola e tecidos, e começamos a esculpir do nosso jeito”, conta.
Em 2000, quando já eram adolescentes, decidiram ampliar a brincadeira e criar um “mini bumbódromo”, colocando os itens em cima de uma mesa. “Produzimos um bumbódromo de um metro e chamamos algumas pessoas para fazer o julgamento. Lembro que apareceu um grupo de jovens com a mesma faixa etária que nós, contando que faziam a mesma brincadeira e queriam propor uma disputa. Gostamos da sugestão! Teve duelo de ideias mas, no final, surgiu também o Caprichoso em miniatura”, lembra. Começava então a “disputa” dos bois em miniatura, com direito a jurados e com técnicas de manipulação cada vez mais complexas, que foram se aperfeiçoando de maneira totalmente empírica com o passar dos anos, pelas mãos e talentos de crianças e jovens de Parintins. Como costuma dizer Francijuner:
“Afinal, em Parintins, derrama artista”
De lá pra cá, a brincadeira cresceu e agregou mais gente. Os minibois do Garantido e Caprichoso hoje contam com sua própria associação e associados, com direito à presidência, diretoria e outros setores que administram todos os processos para realizar o festival. As associações dos “minis” usam um espaço (que chamam de galpão) para elaboração das alegorias e discussão de temas, porém tudo ainda é feito com o mínimo apoio financeiro e de maneira totalmente colaborativa e coletiva.
Os bois em miniatura inauguraram uma nova técnica de manipulação de bonecos, de maneira horizontal, diferente dos fantoches e bonecos de corda, na vertical. Os bonecos são manipulados por baixo da mesa com pessoas fazendo seus movimentos por meio de barbantes e ferros.
O presidente da associação do “mini” Garantido, Francivaldo Matos, esclarece que há envolvimento de aproximadamente 20 crianças no projeto, e que elas acompanham os adultos no processo criativo. “As crianças participam principalmente nas apresentação e em algumas etapas da criação, exceto naquelas que envolvem cola de contato e soldagem”, detalha.
O pequeno Pietro, 10, conta com entusiasmo ser amo do auto dos boizinhos. “É muito importante fazer parte da cultura parintinense”, afirma. Da mesma maneira, o apresentador do miniboi azul, Pierre, 12, avalia que é um orgulho contribuir com o folclore de Parintins. “Eu fico muito feliz em brincar no boi em miniatura, assim vou me preparando para ser item do boi maior.”
O pai dos meninos, Patrick Cardoso, explica que brincar com o boi em miniatura é uma arte que envolve toda a família. Eles gostam da brincadeira e podem no futuro participar dos bois Garantido e Caprichoso, se tiverem oportunidade, que é o sonho de muitas crianças parintinenses”, disse.
Falta de incentivo
Apesar da beleza e da importância desta tradição, Francijuner enfatiza que a brincadeira precisa de apoio, pois é um projeto que envolve crianças, algumas delas em situação de vulnerabilidade social. “Muitos artistas dos minibois hoje estão no festival do boizão. As pessoas se empolgam no dia da apresentação com tudo que veem, mas depois a disputa dos boizinhos é esquecida”, lastima.
A professora e arte-educadora Irian Butel também lamenta a falta de incentivo, apesar do formato já ter revelado artistas no segmento de figurino e alegorias que trabalham nas agremiações principais [Garantido e Caprichoso]”, diz.
“A arte e a cultura têm a força de inspirar as crianças e, mesmo que emotivamente ou simbolicamente, os bois em miniatura são uma forma de conduzi-las por este caminho”
A arte-educadora Djane Sena avalia que o Festival dos Bois em Miniatura é de suma importância não apenas para o município de Parintins, mas como contribuição para a arte de uma forma geral. “Em Parintins, a iniciativa fortalece o laço do processo criativo e artístico de onde brotam talentos diversos que cantam e encantam com a manutenção de saberes, que passa pelos bois em miniatura e eclode no bumbódromo com os grandes bumbás”, analisa.
A importância da brincadeira
Para o mestre em Artes Visuais, Ericky Nakanome, presidente do Conselho de Artes do Boi Caprichoso, a experiência das crianças no boi em miniatura é importante para o desenvolvimento infantil. “O fato de crianças serem protagonistas desse processo faz com que a manutenção de tradições de Parintins seja potencializada, além de aprenderem a trabalhar em coletivo”, analisa.
Nakanome entende que os boizinhos rompem o campo da brincadeira, a partir da experiência que as crianças têm dentro do projeto. “Os curumins e cunhatãs desenvolvem habilidades do fazer artístico que podem levá-las ao festival, pois aqui é um grande laboratório lúdico”, resume.
Dos bois às alegorias
O Norte brasileiro passou a ser o destino de milhares de nordestinos que trouxeram a cultura dos folguedos juninos. Em Parintins, essas misturas resultaram num exótico universo que une o auto do boi – com Pai Francisco, Mãe Catirina, o Negro Gazumbá, a Lenda do Boto, Cobra Grande, Mapinguari, Matinta Perêra – e outras expressões do folclore popular que formam este grande mosaico dos povos amazônicos.
Apesar de rica, a festa parintinense começou a ganhar ares de grande espetáculo quando, na década de 1970, o artista plástico Jair Mendes assistiu ao carnaval carioca no sambódromo. Do Rio, trouxe a ideia dos carros alegóricos, que em Parintins passaram a se chamar “alegorias”. Com o passar dos anos, as alegorias ganharam tamanho, grandeza e forma. Em meados de 1990, a genialidade parintinense fez com que os módulos e grandes esculturas passassem a ter movimentos robóticos. Tal evolução levou as grandes escolas de São Paulo e Rio de Janeiro a contratarem os talentos de Parintins.
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O Festival Folclórico de Parintins começou em 1965, como forma de organizar e controlar duas grandes torcidas que se confrontavam nas ruas da ilha de Parintins, em episódios marcados pela violência. A Juventude Alegre Católica (JAC), braço da igreja católica na Amazônia, decidiu então criar uma brincadeira para tentar administrar esta rivalidade. Mas, mesmo após a intervenção da igreja em uma festa pagã, os confrontos aconteciam logo após o resultado do vencedor de cada edição do evento. No final da década de 1980, a prefeitura entrou para pôr fim às hostilidades. Nesse período, foi inaugurado, no Rio de Janeiro, o sambódromo. Não tardou para que surgisse sua versão para o complexo em formato de arena que até hoje abriga a festa: o bumbódromo. Desde então, a cidade se divide ao meio: Zona Sul, com o Caprichoso, e Zona Norte, com o Garantido. Como regra, nenhuma das duas torcidas em passeata pode cruzar tais limites.