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Avós e nós: as relações afetivas que permanecem além da infância

Imagem de uma criança sentada ao lado da avó enquanto ela usa a máquina de costura. Ambos usam óculos e sorriem.

Guardados pela sombra de uma mangueira, os bolos de areia da minha infância eram preparados no apoio das raízes da árvore grande demais para o meu tamanho e recebiam decoração de flores. Ao permitir que seus vasos tão bem cuidados fossem ameaçados por um capricho, a avó construía uma das memórias mais bonitas que ainda carrego, já adulta. “A relação entre avós e netos tem esse chamamento para a memória muito forte”, pontua o psicólogo Alexandre Coimbra Amaral, colunista do Lunetas.

Mesmo quando deixam de existir, as histórias compartilhadas na infância costumam acompanhar quem tem a sorte dessa relação afetuosa com os avós. Como representam “a proximidade da experiência da morte, pelo menos em potencial”, comenta Alexandre, “essa questão da finitude é percebida pelas crianças, mesmo que de modo inconsciente, ao se conectarem com as lembranças desde muito cedo”.

Experiências entre avós e netos

É por isso que, mesmo quando deixam de existir, as experiências compartilhadas com os avós durante a infância vão nos habitar por tempo indeterminado. Para Henriette Tognetti Penha Morato, professora doutora do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, “os idosos em geral são os guardadores de experiências vividas. Isto é, brincadeiras, cantigas, costumes – que marcam a tradição pela memória”.

“Avós são expressão dessa afirmação da humanidade que não se extingue com a morte. Preservam histórias que serão levadas adiante através das experiências vividas pelos netos”

É a ponte entre passado e presente que contribui para a construção e a manutenção dessa relação, “transcendendo valores ao longo das gerações e sendo o testemunho oral de uma história familiar”, comenta Alexandre. “Ao contarem sobre a infância do pai e da mãe, os avós fazem com que os netos se sintam mais próximos da experiência vivida por aquele adulto que é o farol de suas vidas, porque entendem que o pai ou a mãe viveram angústias, dramas, cenas divertidas, leves, como as que eles vivem agora”. E fazem isso no seu próprio tempo.

“Os avós contam histórias com sabor, com calma, com detalhes, no tempo da delicadeza”

A reinvenção das relações

Ao se tornarem avós e avôs, esses adultos têm a oportunidade também de reinventarem sua capacidade de cuidar. “Trata-se de uma experiência muito bonita de reparação quando tentam desconstruir o que eles consideram falhas vividas na educação dos filhos e passam a cuidar dos netos de uma forma diferente, transformando as relações familiares”, comenta Alexandre.

É comum visualizarmos essas relações a partir de uma noção de mais ou menos permissividade, porque se permite que a liberdade assuma certo protagonismo, dissociada da tarefa de cuidar e educar com o peso da responsabilidade. “A proximidade com avós pode facilitar o caminho de uma justa medida em atitudes de vida aos netos. Isso não é ausência de limite”, aponta Henriette, “mas uma relação mais própria de como cada um pode agir na direção de quem é e de como se percebe junto com outros, cabendo aos adultos compreenderem os limites dessa relação.”

Além disso, segundo Alexandre, novas tecnologias de cuidado disponíveis para as famílias incluem todos como aprendizes e coautores dos processos educativos das crianças. “As avós e os avós têm sido grandes companheiros das mães e dos pais na criação e na sustentação dos filhos. Aliás, uma das grandes ausências que as famílias têm sentido durante a quarentena é a possibilidade de compartilhar esse cuidado”.

Quando ficar longe dos avós é sinal de amor

Enquanto escrevo esse texto, muitas crianças – as crianças de hoje – estão longe de seus avós há mais de 120 dias. Há uma proibição temporária imposta: visitas não são aconselháveis até que a pandemia arrefeça, afinal idosos são o principal grupo de risco. Afinal, evitar beijos e abraços é a nova configuração de proteção.

“O coronavírus nos convida a apoiar as crianças para dizerem voluntariamente aos avós o quanto eles são amados e como sentem saudades. Isso contribui muito com a saúde deles que estão quarentenando em outras casas, sem o toque, um abraço, o cheiro – sensações ligadas a um vínculo sinestésico tão presente nessa relação”, diz Alexandre.

“Quando o abraço falta, o amor se concretiza através da palavra e do olhar mediados por uma tela”

Circulou nas redes sociais a história do André, que encontrou um jeito de acessar essa relação a distância. Para manter contato, ele preparou um tutorial ensinando sua avó a usar o celular para receber e realizar ligações por vídeo, com um passo a passo bem didático.

Reprodução/Twitter

Tutorial de videochamada feito por André para sua avó

A seguir, trazemos mais histórias inspiradoras dessa relação entre avós e netos, em diferentes configurações. São verdadeiros testemunhos dessa força que especula-se ser hereditária ou questão de sangue. Independente de como o mundo anda, “as crianças são um sopro de vida”, lembra Alexandre. “Quando a gente olha pra uma criança, a gente sente esperança, porque essa criança nos conecta à capacidade da vida renascer todos os dias. Quando essa criança faz parte da nossa linhagem familiar, quando é filho de uma filha ou de um filho, isso vem ainda mais forte, naturalmente”.

Com açúcar, com afeto
“Tornar-me avô foi o evento mais insólito da minha vida afetiva”, conta José Fernando Martins, de São Paulo. “Depois de ter dois filhos, experimentei um sentimento inédito com o nascimento dos meus dois netos – Antonio, de 8 anos, e Francisco, de um ano e meio. A relação entre eu e meus filhos teve um salto de qualidade enorme com o nascimento dos netos. Isso porque a relação pai/filho implica em acrescentar ao afeto a obrigação de criá-los e educá-los. Como avô, eu posso me dedicar integralmente à relação afetiva e desfrutá-la, sem os entraves das formalidades e o compromisso quase burocrático que a educação implica, como os limites, por exemplo. Sentimento por neto é diferente de tudo o que já experimentei na vida. Então, o que mais gosto dessa relação é a liberdade que a irresponsabilidade proporciona”, entrega. “Minha relação com os netos é basicamente atender às demandas afetivas deles, o que faço com muito prazer e cuidado. Costumo visitá-los e, na medida do possível, brincar e conversar com eles. Com a pandemia, essas duas criaturas são, de longe, as que mais sinto falta no meu isolamento. Quando acabar esse pandemônio, quero poder lamber, beijar, pegar no colo, brincar com os meus netos. Eles têm um espaço tão especial entre meus afetos que está duro aguentar essas duas ausências”, confessa.
A nova saudade
A pernambucana Lúcia Cristina Soares Rigueira é avó de quatro crianças: Pedro (3), Luiza (8), João (12) e Gabriel (14). “Somos tão amigos. Eu os ensino muitas coisas e aprendo também com eles sobre amor, carinho e respeito”, comenta. “Tornar-me avó foi um experiência maravilhosa, vendo a barriga da minha nora crescer, esperando junto com eles. Depois, curti tudo o que podia, ficamos ainda mais próximos, mas não me intrometo na educação deles”, pondera. Nessa quarentena, Lúcia está “apanhando das emoções”. “Dá uma saudade deles, de ficar junto e fazer carinho. Nos vemos por videochamada, mas agora estamos nos organizando para nos ver pessoalmente, com todo cuidado, todos de máscaras e respeitando o distanciamento físico”, adianta.
Mãe² = avó + mãe
Evangelina Caitano dos Santos Marques, conhecida por todos como Vandinha, é avó de cinco netos. Desses, dois – Higor (13) e Vitória (7) – estão com a avó dia e noite, são também como filhos desde que a mãe deles, filha de Vandinha, faleceu. “Perdi minha filha há dois anos. Além de avó, tive que me tornar também mãe deles. No começo foi complicado. Um baque. Eu ficava pensando muito neles por terem perdido a mãe, ficava com pena das crianças. Queria chorar lembrando da minha filha, mas tinha que ser forte”, relata. “Sempre vinha mais forte cuidar deles como avó, fazer tudo para eles como as avós costumam fazer. Avós querem desconstruir o que os pais constroem”, brinca. Mas agora há uma carga de responsabilidade, então “pensei que seria bom começar a podar um pouquinho, segurar um pouco. Afinal, sou eu que tenho que ensinar tudo bonitinho daqui pra frente: educar, criar, conduzir”, diz. “A menina ia começar a ser alfabetizada esse ano e, com a quarentena, tenho que tentar ensinar as lições do meu jeitinho de baiana danada. Está sendo até divertido, no fim”. Se é muito bom ser avó, “ser mãe e avó, você já viu, né?”, reforça Vanda. “Eles são uma bênção na minha vida”.

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