“Essa bomba caiu na minha mão”, dispara Roberta Bomfim, mãe da Ísis, 8, e moradora de Parelheiros, no extremo sul de São Paulo. Após mais de seis meses de isolamento domiciliar, ela relata que continua sendo muito difícil lidar com a gestão do tempo durante a pandemia e acompanhar com qualidade todas as atividades das aulas remotas. Se antes a rotina da filha era acordar às nove, tomar banho, comer e estar pronta ao meio-dia para pegar o transporte escolar, hoje, a mãe tenta justificar a presença do despertador.
“No início, nós duas ficamos muito sobrecarregadas e tivemos crise de ansiedade. Ela chorou muito pela pressão dos estudos”
Desde abril, a comunicação com a escola tem acontecido por aplicativos, programas on-line de ensino remoto ou aulas gravadas. No início, a única expectativa de Roberta era o cumprimento do conteúdo escolar anual relacionado à alfabetização, especialmente aquele voltado às disciplinas de português e matemática. Mas, depois, ela começou a perceber que o ensino a distância trazia outros impactos para a filha, principalmente a ausência de convívio com os colegas da escola, único espaço em que ela se relacionava com outras crianças. “Ela é filha única e agora está se sentindo um peixe fora d’água”.
Saúde mental na pandemia
Alterações no sono, agressividade, desânimo, acessos de raiva e sintomas de ansiedade e depressão. Estes são alguns dos sinais que mostram que o isolamento domiciliar tem sido um fator de risco para a saúde mental de crianças e adolescentes, de acordo com a pesquisa de monitoramento “Jovens na Pandemia”, desenvolvida pelo Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo (USP).
O psiquiatra e coordenador do estudo, Guilherme Vanoni Polanczyk, explica que o estresse emocional que atinge as crianças está associado às consequências do confinamento, sendo motivado pela qualidade da saúde mental dos pais, pela mudança nos hábitos e rotinas familiares, além dos próprios medos e inseguranças causadas pela pandemia. Entre as alterações significativas está a adaptação de escolas e famílias às aulas remotas.
“A adaptação ao ensino remoto gerou estresse para todas as crianças, mas tem sido um canal importante de interação e discussão sobre a pandemia”
Os resultados preliminares da pesquisa “Jovens na Pandemia”, realizada até o momento com 9 mil participantes, apontam que 11% das crianças se sentem tristes e desanimadas, 26% têm acessos de raiva frequente e 18% dos participantes declararam ter muitas preocupações.
Do ponto de vista do acesso à internet e da tecnologia em geral, a função que se dá ao uso dos aparelhos parece ter dois pesos distintos. O mesmo estudo já identificou alterações significativas no uso de eletrônicos durante a pandemia: aproximadamente nove horas diárias, excluindo o tempo de aula. “Essa rotina certamente trará impactos físicos, como sedentarismo, obesidade e outros problemas oftalmológicos e motores”. Apesar disso, ainda não se pode estabelecer uma relação direta entre número de horas conectados e saúde mental.
As consequências negativas do excesso de exposição às telas ficam em evidência, mas também é verdade que a tecnologia tem servido para aproximar as pessoas e garantir a manutenção dos vínculos com familiares, amigos e professores. “Existe uma diferença entre estar quatro horas envolvido em uma atividade escolar e quatro horas no YouTube, jogando ou em contato com conteúdos que incitam a intolerância e a agressividade”, afirma o psiquiatra.
Na sua opinião, mesmo que existam problemas de adaptação e entrega dos conteúdos, esse formato de acesso à educação deve trazer ganhos ao desenvolvimento das crianças. O problema, portanto, não são as aulas remotas, mas a dificuldade de construir com qualidade um modelo de ensino voltado à realidade virtual, considerando que não é possível simplesmente transpor o volume de atividades e horas curriculares realizados presencialmente. Para Guilherme Polanczyk, pais e professores devem entender os limites:
“Escolas e famílias precisam assumir a perda e entender que não vão dar conta de tudo”
Precarização do ensino e exclusão digital
Para a professora da Secretaria de Educação do Distrito Federal, Natália de Oliveira Silva, a principal pressão psicológica decorrente da quarentena vem da precarização da vida e da falta de políticas públicas capazes de atender as famílias mais vulneráveis em tempos de pandemia. “Estamos lidando com uma geração que tem contato com tecnologia de ponta, mas não tem acesso”, diz.
Natália é professora regente das 18 turmas da Escola Classe Comunidade de Aprendizagem do Paranoá (CAP), em Brasília, e teve que arcar com as demandas do ensino remoto, já que o processo de alfabetização digital oferecido pelo governo do Distrito Federal aos professores foi insuficiente. “Paguei cursos com meu próprio salário para aprender edição de vídeos e elaboração de material didático”, conta.
No início da pandemia, a CAP realizou um levantamento com a comunidade escolar e descobriu que menos da metade das famílias tinha acesso ao ensino remoto. A professora conta que a arrecadação de computadores e celulares foi o primeiro passo para garantir educação a distância, mas que muitas famílias não tinham equipamento suficiente disponível para todos os filhos, dinheiro para pagar internet ou não conseguiam supervisionar as aulas remotas, em plataformas on-line, por demandas prioritárias como garantir alimentação e renda básica. Segundo Natália, mesmo com limitações, os professores da CAP têm se dedicado a olhar as necessidades das crianças durante este período, priorizando atividades de acolhimento, desenvolvimento de vínculos, identidade e pertencimento.
“As crianças se sentem carentes, com saudade dos amigos, da convivência e do espaço de expressão que a escola oferece”
A renda familiar tem efeito sobre a vida emocional de crianças e adolescentes. De acordo com o monitoramento de pesquisadores da USP, a incidência de ansiedade e depressão é quase duas vezes maior em famílias com menor nível socioeconômico em relação às de maior renda. (Fonte: Jovens na Pandemia)
O distanciamento social e as aulas remotas
É no ambiente escolar que as crianças aprendem, mas também brincam e convivem com outras crianças, em relações que envolvem tentativas, derrotas, vitórias e riscos. Na escola, o que importa é ser alguém diferente daquilo que se é em casa, uma espécie de espaço de experimentação sem a tutela permanente dos pais. Quem explica a importância dessa troca entre pares para o desenvolvimento infantil é o psicólogo do Hospital Pequeno Príncipe e doutorando em Educação pela Universidade Federal do Paraná, Bruno Jardini Mäder.
“Sem os vínculos da escola, crianças e adolescentes podem se sentir confusos, pois a inserção no grupo é fundamental na elaboração de identidades e vontades”
Mäder também chama atenção para a sobrecarga de trabalho das famílias, tarefas domésticas e demandas educacionais, sem que haja, em grande parte dos casos, espaços para distração ou descompressão do estresse. O tempo é de incerteza e inseguranças: nem os pais, nem as escolas têm clareza sobre quanto tempo vai durar esse período de distanciamento social, o que se transforma em barreira para um planejamento mais consistente dos dois lados. As crianças, como explica o psicólogo, sentem falta das referências cotidianas de costume e precisam de auxílio dos adultos para lidar com as situações que as pressionam e geram sofrimento emocional.
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A internet não alcança 20 milhões de casas no Brasil, de acordo a pesquisa TIC Domicílios 2019. Dados preliminares de um levantamento mais recente apontam que quase 5 milhões de crianças e adolescentes, entre 9 e 17 anos, vivem em domicílios sem acesso à internet. A exclusão é maior para quem reside em áreas rurais, nas regiões Norte e Nordeste, ou pertence às classes D e E.