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Alunos bolsistas sofrem pressões e medos que a escola não vê

Imagem mostra uma mulher negra vestindo blusa preta em uma biblioteca.

João*, 16 anos, foi hostilizado pelos colegas de turma que apontaram uma imagem de macaco para ele. Mariana*, 14, teve o caderno riscado com ofensas racistas por meninas brancas. Ana*, 11, ouviu de um professor que precisava se comportar senão perderia a bolsa de estudos. Pedro, 17, estava em depressão profunda quando tirou a própria vida após dias sofrendo ofensas e piadas em uma das escolas mais caras de São Paulo. Embora os nomes sejam fictícios, os casos são reais e aconteceram com estudantes bolsistas no Brasil.

Racismo, bullying, isolamento e o medo constante de errar são algumas das pressões que esses alunos enfrentam diariamente. Apesar disso, escolas e faculdades insistem em não enxergar mesmo já existindo leis como a 14.811/2024, que criminaliza o bullying e a 13.185/2015, que institui o Programa de Combate à Intimidação Sistemática. Na luta pela democratização da educação, a ONG Ponteduca reforça em seu manifesto:

“Alunos bolsistas merecem ser tratados com dignidade e respeito e devem ter as mesmas oportunidades que seus colegas pagantes.”

Da mesma forma, existe um projeto de lei que altera a LDB (Lei de Diretrizes e Bases da Educação) sobre políticas para alunos bolsistas. Aprovado no fim de agosto pelo Senado, o PL 3.611/2024 obriga instituições privadas de ensino a oferecerem bolsas de estudo e a adotarem práticas inclusivas que garantam “igualdade de condições entre os estudantes pagantes e não pagantes”. Escolas e universidades que fizerem separação ou distinção entre alunos bolsistas e não bolsistas sofrerão penalidades como, por exemplo, multas, suspensão de benefícios fiscais e podem até perder a certificação. O PL está em revisão na Câmara dos Deputados para a sanção do presidente.

Apesar de não existir um sistema integrado de dados sobre a quantidade de estudantes bolsistas na educação básica, o Instituto Semesp estima que 66,9% dos estudantes do ensino médio em escolas particulares possuem renda de até dois salários mínimos, conforme pesquisa de 2021. No ensino superior, o Ministério da Educação aponta que 632.503 estudantes estão matriculados em 1.851 instituições de ensino superior a partir do Programa Universidade para Todos (Prouni), em 2025.

Como foi a vida escolar de quem teve bolsa?

Para reforçar a importância de acabar com a segregação no contexto escolar, Lunetas conversou com duas ex-alunas bolsistas. Elas, então, responderam à pergunta: quais as pressões que enfrentaram por não pagarem para estudar?

Beatriz Monocchi, pedagoga

Beatriz foi bolsista em uma escola particular em Santo André (SP) durante todo o ensino fundamental e o ensino médio. Sua mãe era professora na escola. O medo de falhar e não tirar notas boas era constante.

“Sentia vários tipos de medo: de errar ou de que minha mãe sofresse retaliações, por exemplo. Achava que, a qualquer momento, eu seria punida por fazer alguma coisa errada. Então, eu não podia tirar nota baixa nem aprontar igual a uma criança normal. Havia uma cobrança direta de me chamarem na ‘salinha’ e tudo mais. A gente não podia reclamar na direção. Por mais que fosse um direito da minha mãe como funcionária ter bolsa para as filhas, era uma questão delicada. A direção da escola tratava como um favor.

Era complicado manter o vínculo com os colegas porque eu tinha vergonha de chamá-los para ir na minha casa e falar que eu morava no fundo do quintal da minha avó. A dificuldade na socialização era por conta da questão da classe social mesmo, porque eu não tinha os brinquedos do momento, a roupa de marca, esse tipo de coisa. Não sofri racismo porque sou uma mulher branca. Mas, quanto ao rendimento escolar, percebia que as crianças negras sofriam muito mais.”

Vitória Reis, terapeuta ocupacional 

A bolsa de estudo chegou para Vitória pelo Prouni ao cursar a faculdade de terapia ocupacional em uma instituição privada de São Paulo. Além dos olhares tortos de colegas e professores, ela afirma que ser uma jovem negra tornou a discriminação ainda mais pesada.

“Uma das maiores pressões era recuperar a matéria e não poder perder o rendimento. Eu sabia que, para manter minha bolsa, precisava estar sempre um nível acima dos outros. Além disso, tem o peso de que a esperança da família estava no meu estudo. Eu pensei muitas vezes em sair da faculdade. As pessoas olhavam diferente, falavam em códigos, e alguns professores questionavam se eu tinha condições de estar naquela aula. Precisava explicar que eu também tenho dislexia e que não era burrice. O tempo todo eu tinha que me justificar. Foi uma das maiores discriminações e violências que senti.

Nunca tive uma professora negra, não tinha iguais a mim lá. Quem mais me apoiava eram as moças da limpeza quando eu ia chorar no banheiro. Diziam para eu não desistir.Por fim, só reclamei na universidade quando comecei a adoecer, lá pelo terceiro ano, e recorri então ao apoio psicológico da instituição. Na época, não tinha o entendimento de que eu podia dizer que aquele lugar precisava me acolher e me incluir. Não era um favor. O bolsista não está lá só porque não paga, mas para mudar aquele ambiente.”

O que falta para uma inclusão de verdade?

Desde 2021, o Governo Federal concede isenções fiscais às instituições de ensino que ofertam bolsas de estudos a alunos de baixa renda a partir da Lei CEBAS (Certificação das Entidades Beneficentes de Assistência Social na área da Educação), como é conhecida. No entanto, é necessário cumprir com a inclusão e respeito a esses alunos.

Para o frei David Santos, diretor da Educafro Brasil, associação civil para a igualdade racial no país, a Lei CEBAS é questionável quando as instituições não cumprem o papel de acolher e incluir os estudantes bolsistas. Nesse sentido, ele apoia programas de diversidade nas escolas e a aprovação do PL 3.611/2024, para acabar com a discriminação dentro das escolas e universidades.

“Adotar a diversidade é algo muito positivo para a aprendizagem. É necessário também um letramento sociorracial para que a comunidade escolar faça os estudantes bolsistas se sentirem parte daquele lugar.”

Mais caminhos

Quem já foi bolsista também aponta caminhos para a inclusão, como Beatriz, que defende uma educação permanente para toda a comunidade escolar. “A gente tem que entender e explicar como funcionam as políticas de cotas, por exemplo. É tratar de forma aberta o que significam as bolsas. Trabalhar a equidade dentro da sala de aula para mostrar porque o Brasil tem tantas desigualdades sociais, que precisam ser combatidas.”

Por fim, Vitória sugere “pensar em educação continuada para os profissionais”. Além disso, seria preciso “orientar que os alunos bolsistas saibam seus direitos e que isso seja discutido em todas as escolas”. Outro ponto fundamental, segundo ela, é o envolvimento de colegas e familiares pagantes, além de criar mais espaços para que alunos bolsistas se conheçam nas instituições e se apoiem ao longo da formação. Isso porque é importante ter alguém para dividir o lanche, ter companhia no transporte público e nos corredores.”

Ou seja, “não adianta ter inclusão no papel se, na prática, o ambiente adota uma prática excludente”, conclui frei David Santos.

O que fazer na prática?

Escolas e faculdades:

  • Não juntar todos os alunos bolsistas na mesma sala;
    • Garantir que eles tenham acesso igual a todos os eventos, espaços e materiais, como por exemplo, laboratórios, bibliotecas e uniforme sem marcação de bolsista;
    • Promover uma educação crítica sobre raça, classe e inclusão com a aplicação da lei  de ensino de história e cultura africana e indigena, e da lei do Programa de Combate à Intimidação Sistemática (bullying), assim como campanhas e formações de educadores;
    • Preparar professores e todos os funcionários para lidar com situações de bullying e racismo;
    • Oferecer formações para educadores e famílias;
    • Acompanhar alunos bolsistas na adaptação e oferecer uma escuta ativa ao longo de sua jornada;
    • Fiscalizar e agir em situações de discriminação e violências denunciando para a direção da instituição, Ministério Público e outras instituições competentes.

    Famílias de alunos bolsistas e pagantes: 

    • Fiscalizar e denunciar as instituições que têm práticas de segregação;
    • Procurar direção da escola, Ministério Público e organizações de apoio, como Ponteduca e Educafro Brasil, por exemplo;
    • Observar o comportamento dos filhos não bolsistas e educar para a boa convivência e o respeito;
    • Conversar antes da mudança de escola e durante a adaptação para saber como a criança ou o adolescente está se sentido.

    Onde procurar ajuda?

    Além de recorrer à direção das instituições, é importante solicitar apoio psicológico aos estudantes bolsistas. No caso de crianças e adolescentes, a comunidade escolar deve estar atenta às mudanças de comportamento e então acionar ajuda profissional de psicólogos da instituição, encaminhamento aos CAPs (Centros de Atenção Psicossocial) ou através do CVV (Centro de Valorização da Vida), pelo telefone 188.

    * Nomes fictícios para preservar as identidades das vítimas.

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