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Xerimbabos: animais da floresta como companheiros das crianças

Uma menina indígena segura um bicho-preguiça que é seu xerimbabo

Certa manhã, as irmãs Yzuahy, 6, e Ywàna, 3, tomaram um susto: um bicho-preguiça estava dentro de casa. O visitante inesperado entrou de mansinho pela janela e logo chegou ao colo das irmãs Tenetehar sem provocar medo. Pelo contrário, o que havia era encanto.

Moradoras da terra indígena do Alto Rio Guamá, no Pará, Yzuahy e Ywàna aprenderam com os pais e avós que bichos da floresta não fazem mal nem precisam ser afugentados. A relação com eles é ancestral e baseada no cuidado mútuo. “Elas sempre foram ensinadas que, sem natureza e animais, nada progride”, conta Josiane Tenetehar, mãe das meninas.

“Se nós vivemos na natureza, todos os bichinhos que moram nela precisam viver também”

Além do bicho-preguiça, elas cuidaram por um tempo de um filhote de capivara. “Não temos animais de estimação. A preguiça vem às vezes, chega em casa e depois volta. A capivara ficava com as meninas porque os guerreiros da aldeia acharam ela na mata sem a mãe e trouxeram para ser cuidada. Quando cresceu, ficou livre e acabou indo com o seu bando”, explica Josiane. 

Nos territórios indígenas não há pets do jeito como vemos nas cidades. Os animais vivem soltos na floresta. E mesmo os que recebem cuidados de crianças ou adultos nas aldeias podem voltar para a mata. A relação com eles é de cuidado e de respeito, equilibrando a subsistência e o bem-viver. Em vez de cachorros e gatinhos, são araras, papagaios, jabutis, macacos e capivaras os companheiros de brincadeiras e afagos dos pequenos.

Arquivo pessoal

As irmãs Yzuahy (6) e Ywàna (3) Tenetehar com a mãe Josiane

Arquivo pessoal

Ywàna Tenetehar segura uma capivara

Arquivo pessoal

Yzuahy Tenetehar com o bicho-preguiça

Para esses bichinhos, se dá o nome de xerimbabos, que em tupi significa “coisa muito querida”. A palavra aparece em vários registros históricos quando há a descrição da relação entre os povos originários e os animais da mata, sendo o termo cunhado pelos próprios indígenas. Nas aldeias, faz parte da cultura cuidar e proteger tudo o que tem vida na floresta.

“Xerimbabo é como os indígenas chamam seus bichos de estimação”

Quem lembra dos filmes “Tainá – Uma aventura na Amazônia” e “Tainá 2”, sucessos nos anos 2000, com certeza se recorda da menina guerreira e seu inseparável macaquinho a tiracolo chamado Catú. Ele era o xerimbabo de Tainá, interpretado por Eunice Baía, que lembra com carinho das cenas. “Eram três macacos para o personagem do Catú. Eles adoravam ficar na nossa cabeça e queriam comer e bagunçar o tempo todo. Era muito divertido”, diz Eunice. 

Hoje, a atriz que interpretava a menina Tainá é mãe de Antônio, 9, e de Aruã, 5 meses. Eunice, que é nascida em Abaetetuba (PA) e descendente dos Baré, vive agora em São Paulo. Ela ensina aos meninos o que aprendeu quando criança em sua terra natal. “Explico que os animais precisam de cuidados urgentes como preservar as florestas e rios, pois só assim conseguirão sobreviver, e que existem muitas maneiras de não acabar com o habitat natural deles”, diz. 

Em casa, eles escolhem seus animais preferidos e, sempre que podem, buscam o contato com a natureza. “Sou fascinada pela onça pintada. O Aruã está começando esse contato, mas já esteve com tartaruga, coelho, calopsita, gato e cachorro. Já Antônio quer todos os bichos para ele e disse que vai ser veterinário. Eu apoio”, conta. 

Divulgação

Eunice Baía há 20 anos, quando interpretou Tainá nos cinemas

Arquivo pessoal

Eunice Baía com os filhos Antônio (9) e Aruã (5 meses)

Xerimbabo: conexão que vai além do natural

Há muitos significados na relação dos indígenas com os animais. Alguns povos ensinam que tudo aquilo que carrega vida tem a proteção de encantados, seres místicos que povoam o imaginário e as histórias de adultos e crianças. Um deles é o Curupira, que conhecemos das lendas, com os pés virados e os cabelos de fogo. Esse ser mítico é o protetor dos animais da floresta. Com seu assobio e as pegadas deixadas ao contrário, ele confunde o caçador. Essa conexão entre floresta, rios e ser humano equilibra o natural e o sagrado formando uma cosmologia própria de cada povo.

Para os Kambeba, da região do Alto Solimões, no Amazonas, alguns animais são sagrados, por isso a caça para a alimentação requer um ritual. O bicho-preguiça, por exemplo, representa a sabedoria e não se pode matar. A onça representa força. Os pássaros são mensageiros – cada tipo de canto anuncia algum evento da natureza. “Quando um indígena vai caçar e mata um animal para se alimentar, ele se purifica durante uma semana porque matou um irmão”, diz Márcia Kambeba, geógrafa, professora e escritora.

“Para nós, os animais têm espírito e tudo está ligado na nossa casa comum”

Márcia mora em Belém e recorda os ensinamentos que teve quando criança na aldeia. “Desde que a gente nasce, aprende a conversar com os animais e a entender a linguagem da natureza. Lá nas aldeias, eles não são presos. Quando querem se alimentar ou se comunicar, aparecem, e, quando querem ir para a mata, vão”, conta. Em um de seus livros, ela revela que sempre ouviu dizer que é neta de boto e explica que os Kambeba são conhecidos como o povo das águas. “O rio é espírito para nós e tudo o que vive nele também é irmão”, diz. 

Seu filho Carlinhos, 13, mantém um afeto por tudo o que vem da natureza. Ele tem um jeito particular de observar e conversar com os animais e as plantas. “Carlinhos é autista e a relação que tem com o cachorro da família, por exemplo, é de carinho mútuo. Eles conversam e isso o ajuda muito. Quando vamos ao mangue ele fala com a natureza e com os caranguejos. Já vai entendendo que tudo é ser vivo”, conta Márcia.  

A ligação com os animais começou desde muito pequeno, quando Carlinhos acompanhava a mãe nas idas à aldeia. “Tinha macaquinhos, sagui, araras, cotias, antas. Isso tudo foi ensinando meu filho a respeitar”. Márcia explica que o menino tem o hiperfoco na questão ambiental e adora conversar com a natureza. “Para ele, a natureza responde, da maneira que se entendem. Eu aprendo com ele a conversar com ela em voz alta ou baixa. Acredito que ela responde e fico feliz com essa conexão”, diz.

Arquivo pessoal

Os pássaros que Carlinhos segura inspiraram um poema

Arquivo pessoal

Márcia Kambeba e Carlinhos acompanhados pelo cachorro, o xerimbabo da família

Foi com a imagem de filhotes de passarinhos recém-saídos do ninho repousando nas mãos de Carlinhos que Márcia se inspirou para fazer o poema “Ninho na mão”, que fala sobre a mais pura conexão entre criança e animal. 

“Quando a mão parece um ninho
Acolhendo o passarinho
Não tem porque se espantar
Tem aconchego, segurança
O passarinho sente
Que pode confiar.

Não tem pedra, nem baladeira
A mão nessa hora é parceira
Vai cuidar, proteger
O espírito reconhece o outro espírito
Na certeza que o amor vai prevalecer.
Isso é bem-viver.”

Convivência com animais ajuda a entender o mundo

Para as crianças, a convivência com os animais aflora o sentimento de cuidado, responsabilidade e respeito. No livro “Xerimbabo”, da escritora cearense Rachel de Queiroz, as crianças reconhecem nos animais a companhia para brincadeiras e também o despertar para a responsabilidade ambiental de cada ser humano.  

Os benefícios dessa troca se dão no desenvolvimento social e também na saúde. Sobre a importância do contato das crianças com os animais, o pediatra Daniel Becker diz que, quando os pequenos mantêm essa relação, reconhecem que não estão sozinhos no mundo. Além disso, os animais favorecem o desenvolvimento motor, físico e emocional, proporcionando momentos de conforto para crianças mais ansiosas ou tímidas. 

Entre os afagos e as brincadeiras, as crianças vão aprendendo o quanto os animais são parte de um universo natural onde toda vida importa. Dentro ou fora da floresta, a relação com os xerimbabos ajuda a entender que somos todos natureza. E que cuidar dessa casa comum é essencial. 

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