Estamos vivendo um momento único na história da educação e temos refletido a todo momento sobre o papel da escola na sociedade e na vida das crianças. Vivenciamos, especialmente, a fragilidade da Educação Infantil no modelo de ensino remoto e sabemos que essa vulnerabilidade advém exatamente de singularidades e princípios que norteiam nosso trabalho, como a importância do corpo nas interações.
Apesar disso, estamos conseguindo nos adaptar e atribuir sentidos às propostas, reafirmando nossa potência criativa e refletindo junto às famílias e à comunidade sobre as concepções de infância e educação que tanto nos são caras.
Em compensação, temos identificado muitos posicionamentos que desvalorizam o papel da Educação Infantil. Os exemplos são os mais variados, desde famílias que se organizam somente para acompanhar as atividades dos filhos mais velhos e exigem que enviemos sugestões de “passatempos” para os pequenos, até a defesa da reabertura das escolas somente para que as famílias voltem aos seus respectivos ambientes de trabalho.
Sabemos que não podemos ser simplistas e que a participação das crianças nesse momento é atravessada pelas particularidades de cada família e suas dificuldades em administrar tantas e diversas demandas (casa, escola, trabalho). Sabemos também que as crianças pequenas dependem mais da presença de um adulto para participar da escola remota e isso não deve ser desconsiderado. Tudo está interligado, é inegável.
Entretanto, muitas das críticas e questionamentos que chegam até o nosso segmento desconsideram nosso papel de especialistas no assunto e o que aprendemos e estamos aprendendo em nossas formações desde a graduação. Fica o questionamento: isso acontece com tanto peso em outros ciclos educativos?
Pensamos que essa desvalorização dos profissionais que trabalham com esse segmento está diretamente relacionada com a história da Educação Infantil, que tem como um de seus pilares a dimensão do cuidado. No senso comum, ainda é muito presente a ideia de que basta ser mulher para ser professora de crianças pequenas, já que essa condição supõe a “maternagem”, que também está intimamente ligada ao cuidar. No entanto, apesar de se relacionarem, a maternagem e os cuidados na Educação Infantil estão em lugares diferentes, já que o último pressupõe a profissionalização e a relação com o coletivo/público.
A ideia de que os saberes e as competências do profissional da Educação Infantil são inatos, resulta em salários menores na maioria esmagadora das escolas no Brasil, ainda que precisem de graduação universitária como outros colegas. Outro exemplo que reafirma isso é o fato de que professoras que optam por não serem mães, também sofrem com falas preconceituosas sobre suas capacidades como profissionais.
Constituído nessas bases, esse trabalho foi delegado majoritariamente a mulheres – em uma sociedade patriarcal e machista, isso é um prato cheio para a desvalorização. A Pedagogia não parece ser uma especialidade frente às matérias dos outros ciclos; as professoras polivalentes são vistas como profissionais sem profundidade no exercício de sua função.
Quando um pedagogo é convidado e escutado nos debates e momentos decisivos do país? Sabemos da importância de agregar saberes e contar com os de nossos colegas, mas excluir a Pedagogia dos debates fundamentais para a sociedade nos espanta. Na pandemia isso ficou ainda mais evidente, pois pudemos contar nos dedos os pedagogos que foram convidados para lives, debates, podcasts e outros fóruns, até mesmo (pasmem!) nas discussões da volta presencial das aulas. Escutamos majoritariamente psicólogos e profissionais da área da saúde.
Outra situação que salta aos olhos acontece quando se agrupam professoras e professores de vários ciclos da escola para as reuniões rotineiras ou outras situações de debate. Não é raro que potentes professoras de Educação Infantil se sintam intimidadas em falar publicamente frente a professores e professoras do Fundamental 2 ou Ensino Médio. Nesse cenário, as educadoras da primeira infância, que tentam enfrentar essas ideias construídas historicamente, se veem frente a frente com mais uma responsabilidade: desconstruir esses estereótipos.
Colocar todas as professoras de educação infantil em um mesmo “balaio” e não reconhecer suas diferentes subjetividades favorecem o preconceito e a desvalorização que sofremos.
Parece-nos que professoras e professores de outros ciclos têm essa liberdade: de se dizer no individual, sem medo de reforçar estereótipos.
Diante dessas fragilidades históricas, nos sentimos convocadas a refletir sobre o que pensamos de nós mesmas. Até que ponto as professoras de Educação Infantil ainda se veem carregadas desses preconceitos em seu foro íntimo e subjetivo?
É tempo de rever, ampliar e fortalecer princípios que norteiam nossa prática, bem como compreender a complexidade de nossa escolha profissional. Precisamos reafirmar nossos saberes e reconhecê-los como potentes para pensar a sociedade e a educação como um todo.
Além de termos conhecimento sobre o desenvolvimento integral das crianças (cognitivo, corporal, social, artístico e outros), sabemos da importância das diferentes linguagens na constituição do humano e atuamos a partir dessa perspectiva. Temos consciência do papel que o espaço tem na aprendizagem e consideramos esse aspecto nos planejamentos.
Sabemos que as cotidianidades exercem um papel importante no aprendizado e incluímos esses aspectos da vida como práticas sociais ao currículo. Compreendemos a importância que o lúdico tem na construção do sujeito. Trabalhamos em grupos heterogêneos, colocando os diferentes saberes em relação e usando isso a favor da aprendizagem de todos e cada um.
Sabemos formar grupos a partir da observação das subjetividades de cada criança e mediamos conflitos de todas as ordens, atuando como ouvintes atentas às questões complexas das relações. Acolhemos famílias e entendemos a importância delas na educação dos alunos. E o que mais sabemos?
Esses e outros saberes construídos por meio de muito estudo, reflexão e experiência prática são importantes tanto para nós como para todos os segmentos da Educação!
Que as professoras da infância tenham voz, vez e força e que seus saberes sejam reconhecidos como fundamentais na construção de um ensino de qualidade e de uma sociedade mais justa e saudável.
* Paula Godoy é pedagoga formada pela PUC-SP, atua como professora de Educação Infantil há 28 anos, em escolas públicas e privadas de forma concomitante. Foi coordenadora da rede municipal e assessora de alfabetização em escolas particulares.
Regina Fusco é pedagoga, atua como professora de Educação Infantil e como formadora de educadores. É especialista em Gestão e Formação em Educação Infantil. Além de trabalhar em sala de aula, participa de coletivos que acreditam que a educação e as infâncias podem e devem ocupar e transformar a cidade: o Amora, grupo de investigações nos espaços urbanos e o Trilhares, coletivo que se propõe a criar ações a partir de caminhadas no território urbano.
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Segundo a BNCC, “nas últimas décadas, vem se consolidando, na Educação Infantil, a concepção que vincula educar e cuidar, entendendo o cuidado como algo indissociável do processo educativo”.