Mães imunizadas contra infecções virais (como sarampo, catapora, hepatite, por exemplo), podem transmitir anticorpos ao bebê de duas formas: por meio da placenta, no final da gestação, quando anticorpos da classe IgG conseguem passar a barreira e circular em seu corpo, e através do leite materno, devido aos anticorpos da classe IgA, de modo geral, presente em secreções. Agora, estudos investigam se o mesmo processo vale também para os anticorpos contra a covid-19 em gestantes e lactantes imunizadas via doença ou pela vacina.
Resultados preliminares de uma pesquisa da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) mostram que mães que se infectaram pela covid-19 durante a gestação, independente de terem apresentado sintomas da doença ou não, e que não haviam sido vacinadas, transferiram anticorpos para os bebês via placenta. Foram 68 bebês que receberam anticorpos maternos. Até o momento, foram testadas 506 mães e bebês durante a gravidez; o objetivo é chegar a 4 mil mães testadas.
Os casos de recém-nascidos soropositivos serão acompanhados por dois anos, para que se observe se a infecção durante a gestação trouxe consequências para o desenvolvimento das crianças. Um grupo de controle, com mães e bebês com resultados negativos, também será acompanhado para que se avalie a duração da imunidade adquirida pelo feto durante a gestação.
Já o estudo do Instituto da Criança e do Adolescente do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP) identificou a presença de anticorpos contra a covid-19 no leite materno de lactantes imunizadas contra a doença.
Foi realizado um ciclo de nove coletas de cerca de 10 ml de leite materno, com 20 mães de idade média de 25 anos e cerca de 11 meses de aleitamento. Foram notados picos da presença dos anticorpos um mês após tomarem a primeira dose da vacina e na quinta e sexta semanas após a segunda dose. Metade das voluntárias mantiveram a presença elevada de anticorpos mesmo após quatro meses da imunização completa pela CoronaVac.
Para tentar esclarecer as principais dúvidas em relação à transmissão de imunidade da covid-19 para bebês, conversamos com o infectologista pediátrico Márcio Moreira, do Hospital Israelita Albert Einstein.
De modo geral, o especialista lembra que as infecções podem ser congênitas (adquiridas pelo bebê intraútero, através da placenta) ou perinatais (adquiridas durante o parto ou através do contato com a mãe, pelo aleitamento materno, por exemplo). As infecções congênitas adquiridas no primeiro trimestre da gestação tendem a ser potencialmente mais graves, porque o feto é mais suscetível. À medida que a gestação passa, a perspectiva é de quadros menos graves, porque o feto está em forma mais madura. A passagem de anticorpos via placenta, mais efetiva geralmente a partir da 34ª semana de gestação, é uma forma de proteger o bebê após o nascimento.
Lunetas – Mães transmitem anticorpos durante a gestação ao bebê, mas mães vacinadas contra a covid-19 também transferem seus anticorpos produzidos pelo estímulo da vacina? Ou depende de quais fatores?
Márcio Moreira – Como raciocínio intuitivo, sim. Ao se imunizar um organismo, independente do feitio das vacinas em sua forma de estimular o sistema imune, haverá produção de anticorpos. Contudo, as respostas à vacinação são individuais e a quantificação de anticorpos, como tem sido feita, não corresponde necessariamente à realidade. O conceito geral, aplicado a todas as vacinas, considera o organismo imunizado duas semanas depois de receber a segunda dose, quando se teria anticorpos suficientes para evitar ficar doente se exposto ao agente. Por definição, se a pessoa desenvolve anticorpos, ela pode passar ao feto via placenta, sim, com variações individuais. Na primeira dose, já existe uma quantidade de anticorpos. Se você está totalmente imunizada, sua resposta imune é maior, e haverá mais anticorpos para passar ao feto.
Lactantes podem passar anticorpos da covid-19 aos bebês via amamentação?
MM – O aleitamento materno é maravilhoso em todos os aspectos. Mas, em termos de proteção, a gestante passa muito mais anticorpos ao bebê durante a gestação, que é via sangue, ou seja, uma via mais direta. A mãe que toma a vacina como lactante terá menor capacidade de passar anticorpos, mas talvez seja em quantidade suficiente, considerando-se que bebês têm menos receptores.
Gestantes que pegaram covid e se curaram podem passar os anticorpos aos bebês, mesmo em casos assintomáticos? E as lactantes?
MM – Sim, e isso não é particularidade da covid. Não existe forma de seu organismo estar melhor preparado para enfrentar aquele agente infeccioso do que ter contraído a doença. A vacina simula a situação real, com fragmentos do vírus. Se você teve a gripe, o organismo vai lidar melhor com a doença, porque reconheceria cada pedacinho do vírus. A doença é sempre uma forma mais efetiva de estimular o sistema imune do que a vacina. Ainda assim, é melhor tomar a vacina do que contrair a doença sem saber como o seu organismo vai reagir.
Existe algum estudo demonstrando quanto os anticorpos da covid durariam no organismo dos bebês? E se eles realmente protegem?
MM – O cenário teoricamente é favorável. Estamos falando de uma faixa etária com quadros mais leves. Contudo, o sistema imune dos bebês ainda é muito precário; o que os protege é o que a mãe lhe transfere, via placenta e via amamentação. Ainda não se sabe se essas transferências seriam suficientes para protegê-lo. Sobre a duração dos anticorpos passados da mãe para o bebê via estímulo da vacina, isso pode depender do imunizante utilizado. De modo geral, a imunidade dura entre 6 e 12 meses.
Mesmo que o bebê tenha nascido bem, sem sintomas da doença, pode haver comprometimentos em outras fases de seu desenvolvimento? Quais são as repercussões esperadas pelo Sars-Cov-2 durante a infância?
MM – Ainda não se sabe. Seria preciso investigar bebês com ou sem sintomas, acompanhá-los pelos primeiros meses, e relacionar com as possibilidades de terem se contaminado pelo Sars-CoV-2 através da mãe no periparto, durante a amamentação, se a mãe teve a doença, se foi vacinada e em que momento, ou se não tomou a vacina. Temos aprendido que a via de ascensão do vírus vem pela parte anterior das vias aéreas, comprometendo o olfato e o paladar, e atingindo a parte pulmonar e também o sistema nervoso central. Além dos fatores de risco, há questões individuais e genéticas que impactarão a resposta do hospedeiro em relação ao vírus.
O que a confirmação da passagem de anticorpos da mãe para o bebê durante a gravidez pode antecipar sobre a vacinação de bebês?
MM – Não conheço nenhum estudo da vacina em crianças abaixo de 5 anos de idade, e é preciso teste para poder vacinar. O número de casos graves é significativamente pequeno nesta faixa etária, então outros grupos foram priorizados. O estudo do recém-nascido poderá ajudar no raciocínio sobre como as crianças vão responder a uma eventual vacinação. Em outras infecções, já se sabe que anticorpos maternos ainda circulantes no bebê podem reduzir a eficácia da vacina, como é o caso do sarampo, por exemplo, que passou a ser aplicada mais tardiamente. Outras vacinas são aplicadas somente após 1 ano de idade, pois os anticorpos transmitidos pelas mães na gravidez podem interferir na resposta à vacinação.
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Como a testagem dos bebês aproveita a mesma gota de sangue coletada na primeira semana após o parto, durante a triagem neonatal, conhecida popularmente como teste do pezinho, a imunidade observada necessariamente foi adquirida durante a gestação, já que o IgG demora pelo menos 15 dias após a infecção para testar positivo.