Ícone do sitePortal Lunetas

Trabalho infantil: crianças impedidas em nome da sobrevivência

Trabalho infantil: na imagem, um menino de costas segura um balde em meio aos escombros de uma construção. A foto está em preto e branco e possui intervenções de rabiscos e colagens coloridas.

Marielma saiu da casa da mãe, no interior do Pará, e foi morar em Belém para trabalhar como babá. Ela também fazia os trabalhos domésticos da casa dos patrões e dormia no local. Em troca, teria comida, estudo e uma cesta básica todo o mês para a família que ficou no interior. Nada disso se cumpriu. Foram três meses trabalhando todos os dias até perder a vida violentamente. Marielma tinha 11 anos. 

Ela foi torturada, espancada e violentada sexualmente. O caso, ocorrido em 2005, foi um dos primeiros a ser condenado como trabalho infantil doméstico no Brasil. O dia 12 de novembro, data da morte da menina, virou Dia Municipal do Combate à Exploração da Mão de Obra Infantil, em Belém.

A história de Marielma se junta a de milhões de crianças vítimas de trabalho infantil no mundo. Uma mazela social que expõe a desigualdade e a negligência ao direito de ser criança. “O trabalho infantil impede que crianças desenvolvam em toda potência suas habilidades e capacidades em um contexto saudável. Consiste na violação à regra constitucional de prioridade absoluta à garantia dos direitos às crianças e aos adolescentes. As consequências geram efeitos para toda a vida, alimentando o ciclo de pobreza e exclusão social”, ressalta Mariana Zan, advogada do Instituto Alana.

Reprodução BBC

Marielma virou símbolo da luta contra o trabalho infantil no Pará. Ela tinha 11 anos quando morreu vítima dos abusos dos patrões.

De acordo com o último relatório da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), 160 milhões de crianças e adolescentes vivem atualmente em situação de trabalho infantil no mundo. Mais da metade tem entre 5 a 11 anos. É a primeira vez que se registra um aumento em duas décadas. No Brasil, o número de crianças e adolescentes nessa situação chega a 1,7 milhão. Desse total, 66% são crianças pretas ou pardas e 71% estão na área urbana. Os dados são da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD Contínua), de 2019.

Após analisar os quatro primeiros meses da pandemia de covid-19 (abril a julho de 2020), a partir de dados coletados no estado de São Paulo, outro levantamento do Unicef indicou um crescimento de 26% de crianças em situação de trabalho infantil, um dos reflexos da sobreposição das crises sanitária, econômica e social.

Os números revelam uma realidade histórica e reforçam a cultura de que é normal crianças trabalharem para sobreviver. Na feira de Bragança, interior do Pará, não é raro encontrar histórias de quem precisou trabalhar desde cedo. É o caso de Vilciney Silva. “Com nove anos, eu ia para a feira vender coxinha de manhã e pamonha à tarde. Nos fins de semana, eu vendia amendoim nas festas. Morava com meus avós e não dava tempo para brincar. A gente tinha que existir e se alimentar”, conta.

Pai de três meninos, faz questão de brincar quando estão juntos. Para ele, é um momento de alegria que descobriu já adulto. O trabalho durante a infância não era uma opção. Tinha que fazer. “Eu me questionava se estava certo. Se ia conseguir as coisas sem a escola. Mas entre estudar e ter comida, a fome falava mais alto”, diz. Prestes a terminar o curso de licenciatura em Educação do Campo, ele quer seguir os estudos e fazer mestrado. Os sonhos do menino que trabalhava na feira foram adiados por muito tempo, mas, hoje, Vilciney entende os motivos dessa demora: “Percebi a necessidade de estudar. Entendi que, para o pobre, as dificuldades acontecem, porque as oportunidades são negadas pelo Estado. Mas a gente não tem que desistir”, conclui.  

O Estado, bem como a família e a comunidade, têm o dever de assegurar os direitos das crianças, conforme o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). A responsabilidade compartilhada deveria ser prioridade, mas a exploração infantil aparece em várias formas de trabalho. O mito de que trabalhar é algo positivo para as crianças expõe como essa problemática está incorporada aos hábitos de uma sociedade acostumada com a escravidão. “Ainda existe a crença de que o trabalho infantil poder trazer benefícios para as crianças. É importante informar a sociedade dos prejuízos dessa prática, questionar os preconceitos que buscam justificá-la e reforçar a necessidade de fortalecer a educação. A luta pela erradicação do trabalho infantil exige políticas públicas e ações de enfrentamento em nível global”, explica Mariana Zan.

Arquivo pessoal

Vilciney Silva passou a infância vendendo lanches na feira de Bragança (PA). Concluir os estudos virou prioridade depois de adulto.

Célia Fernanda

Feira do município de Bragança (PA) carrega histórias de pessoas que tiveram que trabalhar quando crianças.

Nas grandes cidades é comum encontrar meninos e meninas pelas ruas vendendo doces nos sinais de trânsito. No Rio de Janeiro, por exemplo, um levantamento da Secretaria de Assistência Social e Direitos Humanos, em 2015, revelou que havia 531 crianças e adolescentes trabalhando nas ruas do centro. Mais de 250 eram menores de 11 anos. A secretaria constatou que, no geral, as crianças eram exploradas por adultos que deveriam garantir sua proteção. 

Em áreas rurais, é comum encontrar crianças na lavoura contribuindo com o sustento da família, como foi a infância da enfermeira Kelli Weise na cidade de Agudo, interior do Rio Grande do Sul, que acompanhava os pais na plantação de fumo. “Meu pai sempre nos fortaleceu na questão dos estudos. Porém, a gente ia para a roça para contribuir como família. Lembro que aos 6 ou 7 anos ia para brincar, mas quando via a mãe e o pai trabalhando eu queria ajudar atando o fumo seco, folha por folha. Não tinha medo porque íamos em mais pessoas além dos meus pais e havia outras crianças”, recorda. Até hoje, 85% das crianças de 5 a 9 anos em situação de trabalho estão vinculadas a atividades agrícolas, principalmente na criação de gado, aves, plantio de milho, mandioca e hortaliças, segundo relatório da Fundação Abrinq.

As piores formas de trabalho infantil 

Segundo a OIT, o trabalho infantil prejudica o desenvolvimento físico e mental das crianças. Elas são privadas de viverem suas infâncias e de terem dignidade. A organização propõe a Lista das Piores Formas de Trabalho Infantil (TIP), que classifica mais de 90 atividades divididas em três categorias de risco: contra a saúde, a segurança e a moral das crianças. O Brasil adotou a lista por meio do Decreto 6481, de 2008. O texto aponta que os trabalhos referentes à agricultura, pesca e extrativismo são considerados os mais perigosos. Os principais danos são a exposição a substâncias químicas, queimaduras, afogamento, cortes, quedas e acidentes com animais. Na área urbana, o comércio ambulante, a coleta de lixo e a construção civil são as atividades de maior risco. As consequências vão desde acidentes graves, sequelas na saúde física e psicológica. 

Trabalho infantil doméstico ainda é invisível aos olhos do país

Na região amazônica, meninas que vivem em situação de trabalho infantil doméstico disfarçado de adoção são culturalmente chamadas de “filhas de criação”. Essa prática, apesar de inconstitucional, ainda é comum. As histórias são quase sempre as mesmas: a menina é tirada de seu lar e vai morar na casa de famílias de classe média para desempenhar tarefas domésticas, muitas vezes sem receber remuneração e sem acesso à educação.

Em 2015, um jornal no Pará publicou um anúncio de um casal de empresários à procura de uma jovem de 12 a 18 anos para “adoção”. O texto explicava que a menina deveria cuidar de um bebê de um ano. O caso gerou revolta nas redes sociais e as denúncias chegaram ao Ministério Público do Trabalho. 

“Por ser dentro de casa, o trabalho doméstico de meninas é difícil de ser fiscalizado e erradicado. Considero que esta é uma das piores formas de trabalho infantil e de escravidão da modernidade”, aponta Zuíla Dutra, desembargadora do 8º Tribunal Regional do Trabalho. 

Esse tipo de exploração está na lista TIP como uma das mais perigosas. Os riscos para as crianças vão desde sobrecarga muscular, quedas, exposição ao fogo, abusos físico, psicológico e sexual. “Muitas pessoas que exploram a mão de obra infantil dentro de suas casas, na Amazônia, proclamam estar ajudando uma família de baixa renda, oferecendo alternativas para combater a pobreza. Na verdade, a menina não é tratada como um ser em desenvolvimento, mas como uma força de trabalho, explorada de forma desumana. Ela fica sujeita a todo tipo de violência e até a morte, como aconteceu com a menina Marielma”, diz Zuíla. 

A propriedade ao falar do assunto vem das experiências dentro da carreira jurídica somada às memórias de sua infância. Quando criança, Zuíla teve que trabalhar com a mãe na venda de lanches em duas fábricas na cidade de Santarém, oeste do Pará. Também trabalhou em uma pedreira e só conseguiu sair dessa situação quando foi aprovada em concurso público. “Minha mãe teve a sabedoria de colocar os filhos na escola. Eu estudava pela manhã e trabalhava o restante do dia. O estudo era um momento de prazer e descobri que este era o único caminho que eu tinha para mudar de vida. A partir do conhecimento, me convenci que não é o pobre que deve ter vergonha da sua condição, mas sim aqueles que vivem bem e nada fazem para mudar a realidade”, conta. 

Infelizmente, nem todas as crianças dentro e fora das estatísticas conseguem ter a mesma orientação e cuidado. A vulnerabilidade socioeconômica das famílias influencia diretamente na presença de crianças trabalhando ao longo da história. Desprotegidas, são as maiores vítimas do sistema que mantém a cultura da exploração infantil, e elimina as infâncias e suas potências.  

Pelo direito de ser criança
Nesta animação, a Fundação Abrinq reforça que, no Brasil, o trabalho é proibido para menores de 16 anos, e expõe as consequências da prática durante a infância:


Denuncie casos de trabalho infantil

O principal canal para denunciar situações  de trabalho infantil é o Disque 100. O número atende em todo o país e o denunciante pode permanecer em sigilo. Há também o aplicativo Proteja Brasil, que recebe denúncias, localiza os órgãos de proteção nas principais capitais e contém informações sobre as diferentes violações. Outros meios para denunciar e pedir ajuda é via Conselhos Tutelares, Centros de Referência de Assistência Social (CRAS), Delegacias de Combate à Exploração da Criança e do Adolescente, Delegacias de Combate à Exploração da Mulher, Núcleos especializados em infância e juventude da Defensoria Pública, do Ministério Público Estadual ou do Ministério Público do Trabalho.

Leia mais

Sair da versão mobile