Se a busca por um tipo de sucesso generalizante conduziu muitos de nós até agora, a animação “Soul” apresenta a uma nova geração de crianças que a vida pode ser mais do que ter um propósito. Ao invés disso, nos convida a olhar para a vida apenas por olhar para a vida, com a possibilidade de nos surpreendermos com pequenas alegrias no caminho. Embora simples e até um pouco óbvia, essa mensagem guarda a potência de revolucionar os nossos sentidos, ou pelo menos nos fazer questioná-los.
Com poesia e humor, acompanhamos a trajetória do professor de música Joe Gardner que sonha em ser um pianista de jazz. Um dia, sua grande chance aparece, mas de repente já será tarde demais.
A narrativa é uma oportunidade de extrapolar os conceitos de sucesso e fracasso, responsáveis por, muitas vezes, gerar ansiedades e cobranças, substituindo-os por um espaço de experimentação, como sugere o psicólogo Thiago Barbosa, criador do projeto social Terapia Fora da Caixa, que atende pessoas ao ar livre ao invés do consultório tradicional e busca disseminar o autocuidado em saúde mental a partir de filmes.
“A aptidão de simplesmente estar presente vem sendo destruída a pinceladas desde a infância”, comenta Thiago. “Nosso método de ensino contribui diretamente para isto por seu foco mais conteudista em detrimento da avaliação do pensamento crítico, do incentivo à tomada de decisão e resolução de problemas com base no relacionamento interpessoal. A criança está sendo ensinada a se desconectar do momento presente e da própria infância e se preocupar com conceitos para os quais ainda não está preparada”, observa.
“A sociedade e o mercado de trabalho também saem prejudicados: crianças incapazes de se conectar ao momento presente tornam-se adultos ansiosos, inseguros ou apáticos demais para lidar com outras pessoas”, complementa. “Quando lhe é permitido aproveitar o presente, a criança tem sua imaginação estimulada e pode criar experiências mais autorais.”
“O ganho maior para uma criança é aprender que ela pode ser a criadora da sua própria felicidade”
Por outro lado, desde que não se torne um crivo para autojulgamentos, existe serventia em se ter um propósito. “Significa trazer à tona os sentimentos mais íntimos e as motivações às vezes engavetadas que podem nutrir o autoconhecimento e nosso consequente amadurecimento. É o ‘por que’ que ajuda a enfrentar qualquer ‘como’”, lembra Thiago a definição para propósito de Carla Furtado, diretora do Instituto Feliciência.
Recuperar a beleza dos dias
Enquanto seguimos obstinados nessa direção de perseguir um ideal, ocupados e com pressa, são altas as chances de, distraídos, perdermos os detalhes, as pequenas coisinhas capazes de atrair de volta o foco para a vida, o maior objetivo comum de todos nós. Ao nos livrarmos desses padrões engessados e engessantes que podem nem corresponder às nossas vontades mais particulares, podemos nos dedicar com mais liberdade às experimentações.
Na ânsia por encontrar o sucesso ou simplesmente descobrir por que estamos aqui, sem espaço para a manifestação genuína de emoções, porque aprendemos desde cedo a sufocar incômodos e angústias, nos aproximamos de “ser ou nos tornar um adulto alienado da capacidade de aproveitar a vida, como que uma ‘alma perdida’”, pontua o psicólogo em referência ao filme, “ao invés de aproveitarmos a oportunidade de conduzir nossas histórias particulares com mais autoridade, autenticidade, segurança e significado possíveis”.
É o que acontece com Joe. “Ao se ver obrigado a experimentar e criar novas situações, o protagonista nos entrega uma simbologia muito clara: seu modo de vida anterior literalmente morreu para que um novo Joe pudesse nascer: alguém mais dedicado ao momento presente e às pessoas ao redor.”
A valorização das missões de vida são passadas de geração a geração, seguindo uma narrativa anterior a nós que modela parte de quem somos. Para quebrar essa lógica, Thiago alerta os adultos:
“A criança que fomos não pode ser molde para a criança à nossa frente”
Segundo o psicólogo, os pais também podem aprender com Libba, a mãe de Joe no filme. “O relacionamento deles é inicialmente marcado por exigências de ambas as partes e eles não conseguiam chegar a um meio-termo de tão imersos em seus próprios desejos. Quando mãe e filho conseguem escutar um ao outro, a narrativa muda e vemos um filho mais decidido e seguro de si.”
É assim que opera o mecanismo da cobrança autoritária de certos pais pelo sucesso de seus filhos, tão comum entre nós: “Muito do que cobramos diz respeito à dificuldade de lidar com as nossas próprias questões e acabamos exigindo do outro um posicionamento que deveria partir de nós”, explica Thiago.
O que as crianças acharam do filme ‘Soul’?
“Soul” parece se endereçar ao público adulto ao escolher tratar de temas profundos e complexos como vida e morte. Mas engana-se quem subestima como o filme é recebido pelas crianças – algumascompartilharam com o Lunetas o que mais as encantou. As cenas da alminha no corpo do homem por engano que não consegue andar direito ou a demonstração de que em outra dimensão além da vida inexistem sentidos como o tato, reafirmando a descoberta com uma sequência de tapas no interlocutor, renderam boas risadas entre os entrevistados.
“É a história de um moço que cai num poço, num lugar onde tem várias coisas azuis. Quando ele vai lá numa plateia, encontra outra coisa azul [a alminha conhecida como 22]. Aí vem um cara, que é só uma linha, que vê se todas as pequenas almas estão lá. Ele confere, confere – vai demorar até amanhã para ele conferir todas as gavetas – e descobrir porque a conta não fecha.”
“A parte do filme que eu mais penso é aquela quando o Joe volta para o mundo das alminhas. Um tempo depois, ele pede para um pirata abrir um círculo no chão para ele voltar à vida. Daí ele, sem querer levou a alminha 22 junto para a terra dele. A 22 tinha que ter algum corpo e entrou no corpo do Joe e o Joe entrou no corpo do gato que estava no hospital com ele. Fico pensando nessa parte em que o gatinho ficou correndo atrás da alminha querendo o corpo dele de volta.”
“O filme fala sobre a vida e a música”, diz Martim. Além disso, “‘Soul’ também me deixou o recado de sempre prestar atenção. Porque quando o cara [Joe] estava muito animado, ele caiu no bueiro, morreu e foi parar na outra vida. A cena que mais gostei foi quando o cara ficava tocando piano e viajando.”
“Joe queria muito voltar ao corpo dele, para tocar na banda. Mas aí ele quis mais ser amigo da amiga dele [a 22], que tava muito triste, do que realizar o sonho dele. O filme quer nos mostrar que a amizade vale mais do que certas coisas. O que eu mais gostei é quando ele entrega o selo pra ela, arriscando morrer e deixar o sonho dele pra trás. Daí ele ganha a oportunidade de voltar à vida. Ai, gente, eu me emocionei muito.”
Com seus olhos infantis, o que o psicólogo Thiago viu no filme de mais bonito foi “a simplicidade escancarada com que trata os temas da espiritualidade como um exercício de entrega, o carpe diem, a amizade”. Ele também chama atenção para a trilha sonora: “‘It’s alright’ fala justamente de viver o momento presente quando diz ‘está tudo bem ter um bom momento’ e ainda complementa que um pouco de alma torna a vida seu objetivo, casando toda a proposta com muito bom gosto”, avalia.