O brasiliense Sidarta Ribeiro, 48, é neurocientista, biólogo e professor. O que, se pensarmos bem, pode equivaler a dizer que ele pode explicar tanto o corpo quanto a mente – e, ainda por cima, fazer isso com muita didática. Há 18 anos, Sidarta escolheu mergulhar em um dos campos de estudo que mais mistérios traz para quem se debruça sobre ele: os sonhos. Em seu novo livro “O oráculo da noite”, editora Companhia das Letras, ele se aprofunda sobre o assunto.
Nossa redação ficou sabendo da obra, começou a ler, ficou fascinada pelo texto e logo pensou: o que essa discussão tem a ver com a infância? A resposta é: tudo! Entre suas principais defesas como pesquisador do assunto, está a de que o indivíduo contemporâneo precisa resgatar a importância de sonhar.
Desde a experiência familiar traumática que o levou a ter pesadelos frequentes aos cinco anos e por isso adquirir pavor de dormir, até o período em Nova York, já no pós doutorado, em que ele passou meses dormindo mais de 16 horas por dia, Sidarta ressignificou a sua relação com o que chama de “função social do sonho”. De um extremo ao outro, ele percorreu – acadêmica e pessoalmente – caminhos para entender mais de perto como o cérebro funciona.
Os sonhos em “O oráculo da noite”
No livro, o neurocientista mostra como os sonhos eram importantes às civilizações antigas, como no Egito e na Grécia, situando-os no cerne da ciência e da política, ou como as culturas ameríndias preservam alguns dos exemplos mais bem documentados de profecias oníricas capazes de guiar povos inteiros.
O Lunetas conversou com Sidarta para entender melhor as implicações do sonho na infância e, consequentemente, na vida adulta. Nesta entrevista, ele conta o que a crianças e suas dinâmicas de dormir e sonhar podem ter a ver com o futuro da humanidade. Por que sonhamos? Como os sonhos podem interferir e até mesmo determinar a nossa realidade? Para o professor, é essencial ensinar as crianças a não temer nem tampouco negligenciar seus sonhos.
Leia a entrevista com Sidarta Ribeiro
Lunetas – O que ensinamos às crianças quando dizemos “Não foi nada, foi só um sonho”? Como você definiria o valor dos sonhos?
Sidarta Ribeiro – Ensinamos que os acontecimentos oníricos seriam irrelevantes, desimportantes para a vida desperta, o que não é verdade. Os sonhos evoluíram em nossa linhagem como um poderoso oráculo probabilístico, um processo biológico capaz de simular futuros possíveis com base nas memórias do passado.
Lunetas – Podemos dizer que os pesadelos são uma construção histórica/cultural? Porque eles também são sonhos, não?
SR – Os pesadelos são quiçá o tipo mais antigo de sonho. Parecem ter evoluído entre os mamíferos como uma simulação de possíveis perigos futuros. Além disso, nos seres humanos essa função biológica primordial expressa conteúdos culturais próprios de cada tempo e lugar, fazendo do sonho um constructo histórico e social.
Lunetas – Qual a relação dos sonhos com os nossos medos e traumas mais profundos, e como podemos mudar essa dinâmica a partir de uma nova visão sobre os sonhos?
SR – Os sonhos são movidos a desejos e temores, sejam um medo trivial do cotidiano, seja um terror atávico ligados a traumas profundos. A recuperação da capacidade de lembrar e narrar os sonhos tem potencial para libertar a capacidade de sonhar lucidamente, isto é, de exercer controle onírico parcial ou total. A prática do sonho lúcido permite, entre outras coisas, ressignificar os pesadelos enquanto estão ocorrendo, transformando um enredo sombrio numa experiência deliciosa.
“Pesadelos repetitivos em crianças e adultos podem ser tratados pelo aprendizado do sonho lúcido”
Lunetas – Como podemos interpretar os sonhos recorrentes na infância? Considerando que a criança ainda não desenvolveu aprendizado suficiente para conectar as informações recebidas entre sono e vigília?
SR – Sonhos recorrentes são relativamente frequentes e podem significar muitas coisas diferentes. Podem indicar um problema específico na vida da criança, que ao ser resolvido elimina a recorrência onírica, mas também podem acontecer ao longo da vida sem que seja possível estabelecer sua causa. É importante ensinar as crianças a não temer nem tampouco negligenciar seus sonhos, estimulando sua reflexão onírica através de perguntas simples ao despertar: “Com que você sonhou? O que esse sonho tem a ver com sua vida agora, com o que aconteceu ontem ou pode acontecer hoje?”
“A função social do sonho é que ele pode prospectar o futuro com uma probabilidade maior que a do acaso”
Lunetas – Você defende no seu livro que a humanidade precisa recuperar a capacidade de sonhar. É possível fazermos isso a partir das crianças? Como estimular uma infância mais conectada com os sonhos?
SR – O hábito de compartilhar os sonhos a cada manhã, comum em diversas culturas, aumenta a capacidade introspectiva de quem sonha. A conexão entre sonho e vigília é um aprendizado que pode e deve começar na infância, através do hábito de despertar e narrar os sonhos para a família.
Dicas para nós, adultos, lembrarmos dos sonhos
- “Se sonhamos todas as noites, como fazer para preservar a memória dos sonhos? Antes de dormir, repita para si mesmo ‘vou sonhar, lembrar e registrar’. Ao acordar, não se levante imediatamente, mas fique alguns minutos deitado quieto, esperando a memória do sonho vir”.
- “Quando fazemos o sonhário e anotamos nossos sonhos, não estamos aprendendo uma atividade nova, e sim resgatando algo que é ancestral”.
Fonte: “Oráculo da noite” (Companhia das Letras, 2019)
Lunetas – Na sua pesquisa, você ouviu crianças, ou se deparou com alguma descoberta sobre os sonhos das crianças?
SR – Para escrever “O oráculo da noite” recorri a muitos relatos de sonhos já publicados, tanto de crianças quanto de adultos, tanto oriundos de pesquisas psicológicas quanto de narrativas históricas. Analisei também sonhos coletados por mim mesmo ao longo das últimas décadas, inclusive diversos sonhos de crianças, entre as quais meus filhos e sobrinhos.
Qual a importância do sono para o aprendizado, principalmente na primeira infância, e como as creches e escolas podem incorporar formas mais saudáveis de valorizar o sono?
SR – O sono é crucial para o aprendizado, tanto antes quanto depois da exposição a novos conteúdos. Quando dormimos nossos cérebros eliminam metabólitos tóxicos que são produzidos quando a pessoa está desperta e cujo acúmulo prejudica a aquisição de novas memórias. Para além dessa desintoxicação que facilita o aprendizado futuro, dormir também facilita o processamento e triagem das memórias já adquiridas, permitindo lembrar o que é relevante, esquecer o que não é relevante e sobretudo criar ideias novas, através da mescla de memórias pré-existentes.
É muito importante para a otimização da educação formal que crianças e adolescentes possam ter acesso a sono de qualidade na escola, seja antes das aulas quando chegam excessivamente sonolentas de casa, seja depois das aulas, para consolidar o aprendizado.
“O sono não é inimigo do professor, mas sim seu aliado”
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O livro “O oráculo da noite” foi eleito pela “Revista Quatro Cinco Um” como o melhor livro de 2019 na categoria divulgação científica.