Eu sei que você que me lê não está bem. Posso lhe dizer, como a única das minhas garantias pandêmicas: nem eu. Ando cheio de curvas novas nas minhas emoções. Para falar a verdade, minhas emoções andam mais parecidas com as curvas da estrada de Santos.
Não há lugar fácil para a quietude quando os assombros vão se acumulando ao longo das horas, sem dar-nos tempo para elaborar a chegada de cada um deles.
O risco disso é a indiferença, um dos males mais comuns de tempos de catástrofe. Como a vida vai me macerando como um moedor de alho, eu deixo de acreditar que a dor me doa tanto, num mecanismo de defesa sofisticado de desligar o botão do sentir para não me contaminar com tanta toxina para a alma. Eu super entendo quem está fazendo isso para se afastar da dor de sentir as dores de um tempo tão doído. Mas a indiferença é uma defesa pouco eficiente, porque em outro momento futuro ela explode numa panela de pressão que põe para fora tudo o que pretensamente tínhamos ocultado, e aí nos enchemos de sentires catárticos que saem como lava de vulcão.
Não é possível, portanto, deixar de sentir.
Os esconderijos que construímos são como os bebês que fecham os olhos e acham que, assim, passam a ser invisíveis para os adultos que estão justamente à sua frente.
Se é impossível fugir do sentir, o que fazer? Porque convenhamos, precisamos desesperadamente de momentos em que este caldeirão de más notícias se desafogue de dentro de nossos corações exaustos. Precisamos, por uma questão básica de sobrevivência emocional diante do descalabro, ter escapes para um tempo que só joga desesperança no olhar de quem quer ter o direito de sonhar algum futuro. Eu também me sinto assim. Este tempo é aquele em que nós, os psicólogos, se não tínhamos saído do armário da neutralidade, agora estamos escancarados do lado de fora. A dor é de todos. O meu corpo também está terremoteado como o seu. E é assim, cheio de humanidade, que quero conversar com você.
Na semana passada, eu estava vivendo um dia desta natureza. A respiração andava trôpega, ansiosa, numa querência de paz que teimava em não chegar. Eu queria abraçar quem estava do lado de fora, mas não podia. Eu queria dar apoio às pessoas que conheço que estão perdendo amigos e conhecidos para a covid-19, e todas as vezes que me lembro disso vêm à memória que a proximidade é risco e irresponsabilidade. Eu queria o colo de minha mãe e de meu pai, confinados a centenas de quilômetros de minha casa.
Tudo o que quero e pareço precisar está longe.
A princípio, chorei diante destas impossibilidades, mas depois percebi que sentia muita raiva. Muita raiva. E comecei a escutá-la, como Dalai Lama me ensinou.
Dalai Lama é um líder espiritual que pouco parece conectado a este sentimento, já que tendemos a ver a iluminação como o topo de uma montanha existencial em que as emoções se equilibram como água para chocolate. Mas não é o que ele diz no seu belíssimo livro chamado “Sinta raiva”, que eu recomendo para ler em uma sentada. Neste livro-carta-curtíssimo, ele nos ensina algo que já sabemos, mas a palavra bem dita é sempre um alento para um sentir que, até então, não tinha nome. Dalai Lama sente raiva, e convida os líderes espirituais do mundo a assumir as suas.
Ele afirma que a raiva que transforma o mundo é a raiva compassiva: uma manifestação de indignação pelas injustiças do mundo.
Quando sentimos este tipo de raiva que Dalai Lama menciona, algo se movimenta em nós e nos chama para a ação. Eu estava sentindo exatamente esta raiva compassiva. Eu me indigno, diuturnamente, com a gestão da pandemia, com a piora das desigualdades sociais que só os mais vulneráveis tanto sentem em suas peles e almas. Eu me indigno com a desesperança que se quer construir para aniquilar os sonhos de futuro de uma nação.
Eu me permito sentir muita, muita raiva. Para assim poder esperançar saídas possíveis.
Embora eu saiba que há um nível de invenção necessário para que este futuro aconteça, já que uma tragédia coletiva só se transmuta de forma coletiva.
A raiva compassiva é dos sentimentos que mais têm aflorado em mim. Deixei de vê-los como impureza e passei a sentir que ela me retira da inércia, que me levanta do sofá do desânimo e me puxa para o abraço possível de se dar: o diálogo entre pares, entre pessoas que sofrem da mesma condição que eu. Como eu imagino que seja você, neste momento.
Puxa, como eu queria te abraçar agora! E queria abraçar a sua raiva compassiva, o seu direito inalienável à indignação ampla, geral e irrestrita. Feche os olhos, um pouco, e sinta o meu abraço. Eu também vou me imaginar sendo amparado pelo seu amor, aqui.
É só com muita fraternidade humana que consigo imaginar algum amanhã diante de nossas lágrimas.
Até daqui a pouco, em alguma esquina da avenida dos Olhos Assombrados com a Travessa das Emoções Transbordadas…