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Pintar ovos de Páscoa: a tradição que conecta adultos e crianças

duas meninas estão sorrindo e segurando ovos de Páscoa coloridos nos olhos

Ao fechar os olhos, ainda é possível recordar o cheiro da chamada “barba-de-pau”, uma planta da família das bromélias que cresce sobre as árvores, comum na região sul do Brasil. As cestas de Páscoa geralmente ficavam na cozinha, próximas ao fogão à lenha. A barba-de-pau era buscada sempre às sextas-feiras santas, e servia como base da cesta. Sobre ela, ficavam os ovos pintados por toda a família. Esta recordação vivida numa infância de décadas atrás é cena comum ainda hoje entre muitas crianças.

Pintar ovos de Páscoa é um costume entre as famílias do Sul e também se espalha por outras regiões. Dias que antecedem a data, adultos e crianças se reúnem para uma atividade ritualística, reservando um momento especial para colorir ovos, sejam eles de galinhas ou patas. 

Paulo Augusto Wilhelm, de Agudo (RS), presidente do Instituto Cultural Brasileiro Alemão, que há muitos anos se dedica ao estudo da cultura germânica, ressalta que o costume local de pintar os ovos na Páscoa foi trazido pelos imigrantes alemães que chegaram à região por volta de 1824. “Simplesmente veio junto. Na Alemanha, existem técnicas de pintura de ovos que são, hoje, requintadas obras de arte.” O próprio ovo tem o significado para essa escolha, pois é símbolo da fertilidade, e carrega em sua origem o significado de outras culturas e povos, como romanos, gauleses, chineses e egípcios. Para os povos antigos, o ovo também representa a forma do universo. 

O pesquisador ainda salienta que o costume era uma maneira de preservar uma conexão com os povos que lá ficaram. “Até se pode imaginar que mantivessem a técnica para não deixar para trás o vínculo e a identidade de ser quem eram e de onde vinham. De geração em geração, chegou até hoje.”

Pintar os ovos gera um entusiasmo nas crianças porque elas são protagonistas de todo o processo, e o incentivo começa desde pequenas. Primeiro, é necessário escolher os ovos, lavá-los, esperar secar para depois pintá-los, geralmente com tinta guache. Quando novamente estão secos, são recheados com cri-cri, um tipo de amendoim torrado doce (feito com açúcar e água). 

Arquivo pessoal/Darciana Rockenbach

A barba-de-pau, também conhecida como barba-de-bode ou barba-de-velho, vegetação típica do Rio Grande do Sul e de Santa Catarina, imitam um “ninho” e servem como base para os cestos com os ovos de Páscoa

Arquivo pessoal/Jaqueline Furtado

Além da cesta de ovos pintados, é possível criar uma espécie de árvore de Páscoa, para simbolizar a fertilidade. Na Alemanha, a árvore de ovos é chamada de “Osterbaum”

‘Vou pintar bem lindo meus ovos e deixar na janela’

Em Santa Cruz do Sul, a 150 quilômetros de Porto Alegre, Rejane Fockink mantém o legado de pintar os ovos, um costume da infância. Mãe de dois filhos, um de 4 e outro de apenas 5 meses, ela conta que esse foi o segundo ano pintando os ovos com Derick, o filho mais velho. “Acho interessante passar para as crianças de hoje coisas que fazíamos antigamente. Era comum pintar os ovos ‘para o coelhinho’ e enchê-los de amendoim. Esperávamos ansiosos a chegada dele”, lembra.

Segundo ela, essa é uma oportunidade de resgatar o sentido da Páscoa: “Hoje, tudo gira em torno do comércio e o significado da data foi esquecido. Para mim, a Páscoa é união, reunir a família e comemorar todos juntos”, esclarece. 

Arquivo pessoal

‘Vou deixar os ovos na janela para o coelhinho buscar e colocar amendoim dentro para ele comer’ - Derick, 4 anos

Arquivo pessoal

A tradição de pintar os ovos de Páscoa reúne toda a família

Derick passou uma tarde inteirinha pintando os ovos. “Vou pintar bem lindo os meus ovos e deixar na janela pro coelhinho buscar e colocar amendoim dentro pra ele comer.  É uma delícia o amendoim do coelho!”, disse o menino, entusiasmado.

Não muito longe dali, Ana Cláudia Cunha, mãe da pequena Martina, 2, também mantém a prática herdada na infância, quando pintava os ovos com esmalte, ajudada por sua mãe. Este ano, compartilhou sua experiência com a filha e o marido. “Acho muito importante resgatar memórias e brincadeiras da infância com a minha filha”, afirma. “Para nossa família, a Páscoa é a celebração da vida com as pessoas que amamos.”

Arquivo pessoal

Acompanhe a Martina, de 2 anos, nesta seleção de fotos, onde ela participa de cada etapa do processo de pintar os ovos de Páscoa

Arquivo pessoal

Primeiro passo: concentração total na pintura dos ovinhos!

Arquivo pessoal

Vamos encher os ovinhos com cri-cri, vamos?

Arquivo pessoal

Depois, é hora de preparar o ‘cri-cri’, o amendoim doce feito com água e açúcar, que serve como recheio dos ovos

Arquivo pessoal

Tudo pronto, em família, à espera da Páscoa!

‘Como podemos amar o que não conhecemos?’

No Rincão de Pinhal, em Agudo (RS), Darciana Rockenbach, mãe de Andriéle, 7, considera esse período muito especial. “Pintamos os ovos desde a primeira Páscoa da Andriéle”. Para ela, a data representa amor e união, bem como um resgate da prática dos antepassados: “É algo que não deveria se perder no tempo”. Darciana comenta que esta é uma oportunidade de conexão entre mãe e filha. A família também mantém o hábito recorrente de buscar barba-de-pau nos campos para montar o “ninho” dos ovos, vegetação muito comum por lá. 

Arquivo pessoal

Andriéle, de 7 anos, com sua cesta de Páscoa pronta: ovos coloridos e barba-de-pau colhida no campo

Sobre esses momentos compartilhados com algum integrante da família, a psicopedagoga Ester Moraes defende que essa tradição, além de promover a alegria de brincar com tintas e cores, reflete um momento de descobertas. “Muitos saberes são adquiridos, pois os relatos da infância no passado se transformam em aprendizagem”, explica.

“Pais e avós contam suas histórias aos filhos e netos, construindo assim uma ponte com o presente e ativando essas memórias no futuro das crianças”

A psicopedagoga ainda ressalta que, nesse processo, o planejamento precisa ser construído junto das crianças: “Pintar os ovos, inserir os doces, escondê-los… Quando os pais chamam a criança para participar, eles estão estimulando a organização de tempo, o planejamento de uma situação, gerando a expectativa de algo construído juntos. Aprender por meio do lúdico, do brincar, é uma das formas mais prazerosas para a criança assimilar a aprendizagem.” Ester acrescenta que outras atividades relacionadas a esse momento em família contribuem para o desenvolvimento infantil, como a criatividade, a motricidade e a sensibilidade ao tato.

Sobre essa prática, o pesquisador Paulo Augusto Wilhelm acrescenta a importância de falar e vivenciar usos, costumes, atitudes e valores das gerações passadas:

“Como podemos amar o que não conhecemos?”

O filósofo Gaston Bachelard, ao falar sobre os devaneios voltados para a infância, escreveu que cada cheiro de infância é uma espécie de “lamparina no quarto das lembranças”. Justamente por isso, a jornalista que te conta essas histórias se emocionou ao documentar tal tradição, e lembrar das cores dos ovos e do cheiro da barba-de-pau. Durante essa escrita, as memórias acenderam e me tomaram.

*Independente da religião, da abordagem dessa data no calendário ou dos símbolos relacionados a ela, o objetivo desta reportagem é falar de memórias, tradições, infâncias e partilha do tempo entre adultos e crianças.

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