Será que estamos ouvindo de verdade nossas crianças ou assumimos condutas adultocêntricas ao lidar com elas? Será que consideramos que as infâncias são múltiplas e possuem diferentes formas de expressão? É com estes questionamentos que Pedro Hartung, diretor de Políticas e Direitos da Infância do Instituto Alana, abre o evento de lançamento dos sumários executivos “Por um método de escuta sensível das crianças” e “Escuta de crianças sobre a natureza e as mudanças climáticas”, que aconteceu de forma híbrida nesta terça-feira (25).
Em um trabalho desenvolvido entre 2018 e 2020, Ana Claudia “Cacau” Leite e Gandhy Piorski entrevistaram crianças com diversos perfis (de gênero, étnico-raciais, socioeconômicos), de quatro a 12 anos, de cinco cidades brasileiras: São Paulo (SP), Porto Alegre (RS), Brasília (DF), Recife (PE) e Boa Vista (RO). Com apoio do Instituto Alana e da Fundação Bernard Van Leer, o ponto de partida da pesquisa foi o interesse na perspectiva das crianças perante o impacto das mudanças climáticas em suas vidas e nas futuras gerações. Como as crianças se manifestam e exprimem seus pensamentos sobre o tema? Nem sempre pela fala e escrita, mas também por meio de desenhos, artefatos feitos à mão, pinturas e muita imaginação no processo criativo de cada uma.
“As crianças captam muito mais o intangível, aspectos do tempo que não estão nessa simples relação de passado, presente, futuro e em outras instâncias, na infinitude e eternidade” – Gandhy Piorski
Para Cacau Leite, “as crianças se expressam por várias linguagens e habitam um outro território, em que o brincar é uma linguagem essencial”, fazendo com que suas relações com o tempo, espaço e outros temas que nos cercam sejam diferentes das que os adultos mantêm. A partir dessa premissa das sutilezas da linguagem infantil, o processo de escuta com as crianças foi realizado por meio de oficinas desenvolvidas em dois formatos:
- Imersiva, em dias consecutivos, com quatro encontros de três horas, totalizando 12 horas;
- E aprofundada, com intervalo de uma semana entre dois ciclos de quatro encontros cada uma, totalizando 24 horas.
Para desenvolver o método, os dois maiores desafios no processo de escuta foram criar condições para que as crianças se expressem de modo livre e buscar sentidos além da superfície para as produções dos pequenos. As pesquisas também tiveram como objetivo sistematizar e compartilhar a metodologia criada, a fim de inspirar outras iniciativas comprometidas com a perspectiva das crianças.
Achados e perspectivas infantis sobre crise climática
Cacau explica que abordar o tema “mudanças climáticas” com as crianças partiu de uma base comum: falar sobre natureza. A maioria das criações de brincadeiras ao ar livre feitas pelos pequenos representa sonhos de lugares ideais ou memórias de experiências em contato com ambientes naturais – mais do que necessariamente o convívio diário nestes espaços.
A partir de brincadeiras, histórias, desenho, composição de objetos, modelagem e criação de narrativas desenvolveu-se um conjunto de atividades que foram experimentadas de formas diferentes entre as cidades. A escuta gerou um acervo composto por 395 produções realizadas pelas crianças – a seguir, algumas das perspectivas infantis disponíveis na pesquisa:
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Teia da vida
Em uma atividade que buscou evocar pensamentos elementares sobre a natureza e como as crianças se veem nela ou em relação a ela, um menino de oito anos de Boa Vista sintetizou um desenho com o título “Vida”. Ele explica que o desenho se chama “Vida” pela “natureza ser um tipo de vida”, sentindo-se livre nela, com o vento, sol, uma garça, peixes, água e um pouco de improviso.
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Retorno ao primitivo
A pesquisa explica que um dos aspectos da temática de retorno ao primitivo é o das destruições em massa ou privações extremas. A partir do questionamento “Está acontecendo algo no planeta Terra, mas não sabemos o que é. Vocês precisam criar alguma coisa que descubra o que se passa e traga respostas, soluções”, um menino de oito anos, de Recife, criou uma espécie de arma de sono, em que “o canhão lança uma bomba de gás e todos dormem em paz”.
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Drama ético
Aqui, as crianças atribuem boa parte dos problemas da natureza e das cidades ao comportamento humano. Um dos artefatos criados pelos pequenos foi o “Pato joinha”, capaz de deixar as pessoas felizes – incluindo o próprio criador mirim.
O Brasil possui aproximadamente 35,5 milhões de crianças no país, segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) Contínua de 2018. Destas, 56,7% são negras (pretas e pardas), 42,4% brancas e 0,9% amarelas ou indígenas. Para cada 100 habitantes brasileiros, 17 são crianças. Pedro Hartung endossa que “talvez a gente precise se educar novamente para ouvir as crianças”, já que “o adultocentrismo coloca sempre a criança em um lugar menor”, mesmo elas compondo uma parcela expressiva da população.
Para Gandhy Piorski, as políticas públicas precisam ter “sensibilidade em sua formulação e percepção, porque precisamos olhar o que impacta a constituição das crianças”. O coordenador reforça que a multiplicidade de olhares das crianças “revelam os processos que estamos fazendo no planeta e que impactam no que as constituem”, tornando a pesquisa um bom caminho para sensibilizar as pessoas para as perspectivas dos pequenos sobre mudanças climáticas.
“As crianças não falam de um lugar comum que insistimos em colocá-las, não como se fossem seres especiais, mas porque estão em um processo de se encaixar no tempo e espaço” – Gandhy Piorski
As pesquisas também estão disponíveis em inglês no site do Instituto Alana.
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