Quando recebi o diagnóstico de paralisia cerebral de minha filha, a primeira afirmativa que me ocorreu foi a de que ela tinha um corpo dissonante. Poucos e lentos movimentos, ausência de fala, impossibilidade de se colocar sentada ou de pé com autonomia. Uma corporeidade que não encontrava rima em minha experiência de vida. Eu era estreante nessa avassaladora noção das diferenças.
Corri para os livros, para as pesquisas em artigos científicos, para profissionais de saúde que pudessem ensinar sobre a condição que me era apresentada. Queria ser uma boa mãe e buscava referências que compensassem minha flagrante falta de preparo. Pensei que seria ali, somente na ciência, nos bancos da faculdade, o encontro com as respostas que procurava, o alívio que atestasse que eu saberia lidar com minha pequena Alice. Não me faltava amor por ela, que fique claro.
Faltava-me saber como amar uma filha com deficiência no dia a dia.
Essa busca nos levou por incontáveis consultórios, clínicas e hospitais. Eu havia encontrado uma única urgência como resposta às minhas indagações: precisava ajudar Alice a ultrapassar os próprios limites. E tinha que ser já, rápido, sem tempo a perder, porque a intervenção precoce poderia fazê-la ganhar muitas habilidades, porque a plasticidade cerebral precisaria ser explorada, porque ela poderia ser um exemplo de superação, diziam.
A urgência por entender o corpo de minha filha nos engoliu. Seu primeiro ano de vida se assemelhou a uma prescrição médica, com um colosso de protocolos a serem seguidos. Ela cumpria a agenda quase sempre dormindo, sobrecarregada que estava por medicações que prometiam normalizar suas ondas cerebrais. Foi preciso vivenciar essa rotina extremada para que eu tropeçasse em minhas limitações.
Não era nos livros, tampouco nos hospitais, que eu aprenderia a ser mãe da Alice.
Era no encontro diário com ela. Não era realizando as tarefas que nos diziam ser importantes. Era sendo junto com ela, e, assim, descobrindo seus desejos e suas prioridades. Levou algo como um ano até que eu aprendesse a verdadeiramente olhar para minha filha.
O que eu, enfim, pude ver foi tocante. Ela não tinha um corpo dissonante, como eu presumia. Tampouco diferente, uma vez que não há referência para o que é estar vivo. Não existe um código de barras para o ser humano, um controle de qualidade que dite a referência a partir da qual a existência deve ser estruturada.
Cada pessoa é amostra única. Alice me mostrou que não havia o que lhe faltasse. Nem fala, nem movimento. Nada. Faltava que eu me dispusesse a conhecê-la, inteira.
Esfreguei os olhos muitas vezes, para afastar padrões que não nos serviam, referências que não eram as nossas. Desanuviada, conheci a menina valente, bem-humorada, decidida, que adora passarinhos, que tem preferência por frutas e se diverte com brincadeiras radicais. Eu não podia perder mais nenhum detalhe. Ela esperou ter essa certeza para me entregar, então, seu primeiro sorriso, com um ano e quatro meses. Foi quando eu mereci.
Meu repertório de mundo finalmente estava se ampliando para dar conta da nossa existência. Já não fazia sentido caber onde quer que fosse, mas pertencer. Foi assim que me deparei com muitas outras existências que, até então, desconhecia.
Resgatei o afã de participar do mundo, porque era urgente fazê-lo um lugar bom para Alice e para as milhares de pessoas que ela tornou visíveis para mim.
Minha filha jamais será aquele exemplo de superação que pretenderam para ela. Não assim, como destino, como objetivo, como fardo, como imposição. Antes, quero que o mundo possa ser exemplar na superação das barreiras que limitam tantas vidas. A nós, que caiba apenas o exercício da liberdade.
Acho que minha filha me ensinou a amar o mundo o suficiente para assumir responsabilidade por ele.