Quando uma mãe precisa exercer a sua profissão, a regra básica experienciada pela maioria das mulheres é a sensação de “equilibrar pratos”. Tal demanda exaustiva e infinita pode ser associada imageticamente ao gênero de sci-fi: se nele podemos criar uma figura feminina com vários braços, olhos e pernas – algo próximo das deusas hindus que possuem diversos membros para simbolizar suas distintas qualidades -, nos plurais perfis de mães da vida real desdobrar-se em duas, ou mais, implica em dar conta de fazer o almoço enquanto amamenta, responde uma mensagem no celular e fica de olho nos outros filhos, tudo ao mesmo tempo. Esta realidade se acentua ainda mais quando falamos das mães solo.
Longe de ser roteiro fictício ou mesmo narrativa romantizada, as mães solo (mulheres que são as únicas ou principais responsáveis pela criança) são, de acordo com o Instituto Brasilleiro de Geografia e Estatística (IBGE), mais de 11 milhões no país.
Relembrando a sabedoria africana de que “é preciso uma aldeia inteira para educar uma criança”, é necessário também um vilarejo disposto a abraçar estas mulheres para que elas tenham o direito de ascender profissionalmente, com apoio, dignidade e respeito, após se tornarem mães.
Carreira na encruzilhada
A pedagoga e colunista do Lunetas Viviana Santiago, 40, é mãe do João, 15. Ela explica por que conciliar maternidade com profissão é um desafio diário. “Demorou para não me sentir culpada por querer continuar trabalhando e crescendo profissionalmente, aceitar que eu gosto de ir ao escritório e fazer as viagens de trabalho”, relata.
“Eu fui criada para acreditar que a maternidade era tudo e querer também a minha carreira era tirar algo do meu filho’’
Viviana considera um dos maiores obstáculos como mãe solo lidar com falso moralismo e preconceito. Enquanto mulher negra, nordestina e mãe, a pedagoga já passou por situações onde foi deslegitimada e tratada de forma desrespeitosa, tanto por homens quanto por mulheres.
Conforme os números da pesquisa realizada pelo Intituto Insper (2020), homens brancos ganham 159% a mais que mulheres negras na mesma ocupação. É importante ressaltar que 63% das casas brasileiras chefiadas por mulheres negras estão abaixo da linha da pobreza e 58% das mulheres desempregadas durante a pandemia são negras (estudo realizado por Gênero e Número e Sempreviva Organização Feminista em 2020).
Para administrar tempo-filho-trabalho, Viviana contou com uma grande rede de apoio: irmãs ajudando, babás presentes durante toda a infância e trabalhadoras domésticas em tempo integral até o filho completar 13 anos. “Eu vivi episódios que demonstraram que o mercado de trabalho não se importa com as mães e ponto.”
“Nós, mães, somos tratadas como se fosse uma grande benesse estarmos trabalhando e, portanto, devemos aceitar qualquer condição”
“O curioso é que te avaliam melhor na empresa quanto menos expressar que necessita de ajustes para garantir os cuidados de sua família”, revela.
Viviana pontua que as organizações deveriam entender que as mães, em particular as mães solo, são uma grande parte da classe trabalhadora e produzem com excelência mesmo sem ter apoio. Melhores condições de trabalho para conciliar a maternidade são imprescindíveis, como entender que não é privilégio o que as mães solo querem, mas sim um tratamento que potencialize suas carreiras profissionais.
“Eu sou mãe solo e sou profissional, e ambas as coisas me fazem felizes. Mas não glamourizo os esforços que fiz. Se o mundo fosse justo com as mães, eu não teria pago esse preço’’
Cláudia*, 36, mãe de Olívia, 5, passou pelo processo de separação quando a menina tinha apenas um ano de vida. Com a mudança do ex-companheiro para outro estado, a filha na escolinha por apenas quatro horas ao dia e nenhuma rede de apoio ou dinheiro significativo para auxiliar na rotina, ficou inviável para ela retornar à sua carreira na arquitetura, e ela tentou sem muito sucesso.
“Tinha saído do emprego um pouco antes de engravidar e comecei a trabalhar como corretora quando Olivia tinha 1 ano e 8 meses, e assim estou até hoje. É a carreira dos meus sonhos? Não. Mas me dá tempo e qualidade de vida mínima para cuidar da minha filha.”
“Nós, mulheres, somos vistas como cuidadoras principais e condicionadas a abrir mão dos nossos sonhos pelos filhos, que se tornam nossa prioridade absoluta”
Cláudia* não acredita que tenha espaço para o cuidado da filha neste sistema pautado pela alta produtividade e carga horária excessiva. “Eu fico imaginando que uma proposta de sociedade onde a carga horária de trabalho fosse de no máximo de seis horas por dia, ou dois turnos de quatro horas, atenderia as mães e a saúde mental de todo mundo, porém é utopia. Dentro dessa realidade, uma maneira de acolher minimamente as mães é contratando elas”, defende.
“Tenho a sensação de que quando você vira mãe, você vai para segunda classe da sociedade juntamente com as crianças”
E agora, como ficam as mães solo?
Maíra Liguori, diretora da Think Olga – ONG que atua junto à sociedade civil para sensibilizar a população sobre questões de gênero e suas intersecções – é direta na resposta:
“O mundo do trabalho é desenhado por homens, para homens, sobre homens e as mulheres foram se encaixando nesse universo sem terem as suas necessidades contempladas, sem poder colocar na mesa a jornada dupla”
“Temos mais de 6 milhões de crianças sem o nome do pai no registro e isso já indica um número alto de mães solo. Mas existem aquelas mães que têm os filhos registrados, os nomes dos pais na certidão, mas não têm contato com o pai. Há os casos das mulheres que estão casadas com seus companheiros e ainda assim são as únicas responsáveis pela tarefa, vista ainda como uma obrigação da mulher”, explica Maíra.
A grande realidade no ponto de vista da diretora é de mães que se apóiam em outras mães, terceirizando os cuidados para poderem exercer a sua profissão e botar comida na mesa. Essa é uma situação complexa, estrutural e sistemática que nem poder público e nem o setor privado se dispõem a debater e encarar.
Maíra acredita que gestões empresariais precisam ser compreensivas e sensíveis às questões de gênero e maternidade. “Quem cuida das crianças, na maioria dos casos, são mulheres. Isso é uma desconstrução que precisa ser feita com a máxima seriedade e urgência por todos os setores da sociedade. É preciso trazer soluções, incluindo os homens na conversa, e pressionar o poder público a assumir o seu papel, oferecendo a criação de leis e políticas de assistência adequadas em termos de saúde e educação para as crianças e para todas as pessoas. Temos mães negras trabalhadoras informais que estão dentro das casas cuidando das filhas de outras mulheres que estão trabalhando e que, muitas vezes, deixam seus próprios filhos aos cuidados de pessoas não confiáveis ou expostas a situações de vulnerabilidade. Essa questão demanda debate e ações urgentes”, ressalta a diretora.
Além disso, o medo de sair de licença-maternidade e ser cortada do trabalho ou mesmo não poder retornar, pois não tem com quem deixar o bebê, é algo que acontece com frequência com as mães solo.
A Maternativa, a primeira iniciativa no Brasil com foco em oferecer apoio e soluções para mães quando o assunto é trabalho, realizou no final de 2019 uma pesquisa sobre o impacto da chegada dos filhos na carreira das mulheres. O estudo indicou que o medo da demissão apareceu como a primeira e maior preocupação para 54% das mães que querem engravidar, 52% das mulheres que já estão grávidas e para 60% das mães que estão retornando de licença-maternidade. A falta de flexibilidade e o receio de não conseguir manter o ritmo de trabalho anterior aparecem logo depois.
Vivian Abukater, diretora de relações corporativas e sócia na Maternativa, diz que a sobrecarga do trabalho doméstico faz com que mulheres sacrifiquem oportunidades de aprendizado e de crescimento pessoal e que tenham dificuldade de encontrar sua independência financeira.
“Isso afeta todas as mulheres, mas as mães solo são as mais prejudicadas quando não se tem ninguém para dividir parte do cuidado dos filhos”
Sabendo que mulheres estão em desvantagem na equação “mães solo e carreira” e que mesmo com a forte articulação dos movimentos feministas para que os direitos políticos, econômicos e sociais sejam garantidos, a construção de uma rede de apoio segura é imprescindível. Mães saudáveis e que estejam bem, fisicamente e emocionalmente, podem auxiliar outras companheiras na busca por oportunidades mais equânimes no mercado de trabalho.
* Alguns nomes foram trocados para preservar a identidade das entrevistadas. Optamos também por não revelar seus nomes completos para garantir sua privacidade e proteção.
A teórica feminista estadunidense bell hooks defende que nenhuma reação antifeminista foi tão prejudicial para o bem-estar das crianças quanto a depreciação de mães solteiras pela sociedade, não apenas para os pequenos, mas principalmente às mulheres que se encontram em situações de maior vulnerabilidade financeira, de espaço e saúde mental.