Em alguma noite de 2019, antes da pandemia de coronavírus, o campus da Universidade São Judas Tadeu recebia as pisadas firmes de Mateus Fernandes. Negro, com cabelo black e óculos de armação redonda, saía diariamente do Parque Santos Dumont, em Guarulhos (SP), para chegar na Mooca, o segundo distrito mais branco da Zona Leste de São Paulo, segundo o Mapa da Desigualdade 2021.
Quando criança, o medo de não voltar para casa sempre existiu, enquanto caminhava pelas ruas da quebrada e via corpos no chão da calçada, frutos da violência e do descaso estatal. Mas foi a partir de uma operação policial na escola pública em que estudava no ensino fundamental, também em Guarulhos, que uma chave virou na cabeça de Mateus: “ou eu mudo minha vida por meio da educação ou eu vou ser mais um jovem morto”. Atualmente cursando Psicologia, Mateus foi cotista e se formou em Gestão de Recursos Humanos, dando palestras sobre diversidade socioeconômica e criando conteúdo digital para jovens periféricos. Sua história se repete por quebradas ao redor do país, porém, muitas vezes, as trajetórias são interrompidas antes mesmo do ciclo na educação básica se fechar.
“Eu abracei a educação como um ato de sobrevivência”
O dia 29 de agosto de 2022 marca exatos dez anos da Lei de Cotas (12.711/2012), sancionada pela ex-presidente Dilma Rousseff. Garantindo a reserva de 50% das matrículas por curso e turno nas universidades federais e institutos federais de educação, ciência e tecnologia a alunos oriundos integralmente do ensino médio público, em cursos regulares ou da Educação de Jovens e Adultos (EJA), também são reservadas vagas para estudantes pardos, pretos ou indígenas. No final de 2016 a lei foi alterada, passando a incluir ingressantes com deficiência (13.409/2016).
Há duas possibilidades do ingresso por cotas em universidades estaduais: utilização do Sistema de Seleção Unificada (Sisu), guiado pela Lei 12.711; e sistemas de bonificação nos vestibulares, opcionais caso o Estado onde a universidade é localizada não possua leis voltadas à reserva de vagas no ensino superior. Também existem alunos cotistas em universidades privadas, via Prouni (Programa Universidade para Todos) na seleção de ingressantes.
“Estudar para ser alguém na vida”
Henrique Augusto, 23, cursa o décimo semestre de Engenharia Civil na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Criado no Jardim Ângela, Zona Sul de São Paulo, foi apenas chegando em Belo Horizonte que o peso da desigualdade caiu de maneira mais intensa em seus ombros. “Por mais que haja diferenças dentro da periferia, os padrões de vida e oportunidades são parecidas. Quando eu cheguei em BH, passei a conviver com pessoas que passavam suas férias nos EUA e na Europa, que ganharam carro e apartamento por ingressarem na universidade”, conta o estudante.
“Como toda criança nascida no Brasil, meu primeiro sonho foi ser jogador de futebol. Após muitos anos de tentativas percebi que a melhor maneira de crescer seria por meio dos estudos”, relata Henrique. A escolha pela engenharia se motivou pela ideia de poder construir e transformar a realidade das pessoas, principalmente em um contexto onde diversas das crianças em que conheceu tinham problemas relacionados à moradia, como viver de aluguel ou morar em lotes com diversas famílias.
Para Beatriz Benedito, bacharel e mestra em políticas públicas pela Universidade Federal do ABC (UFABC), quando os cotistas chegam no mercado de trabalho, eles colaboram com posições estratégicas, intencionais e qualificadas. Sem contar que, “ao ingressarem no mercado de trabalho, eles garantem a continuidade dessa emancipação que buscamos quando vamos para a universidade”, diz.
A infância de Henrique conversa com a de Esther que, no começo dos anos 2000, jogava videogames emprestados dos primos em uma vida sem luxos, em Salvador. Mesmo sem passar necessidades durante a infância, o dinheiro passou a ser um objetivo que a tirasse da favela onde morava. Com a meta de realizar o ensino médio no Instituto Federal da Bahia, a vida de Esther começou a mudar ainda aos 14 anos, quando se matriculou no curso técnico em eletrônica do IFBA, em 2012 – o mesmo ano em que a Lei de Cotas foi sancionada. No ano seguinte, vários corpos negros já começaram a ocupar e frequentar o espaço do IFBA, na percepção de Esther.
Ingressando no curso de Biologia da Universidade Federal da Bahia (UFBA), Esther percebeu que não daria para viver de ciência no Brasil sem ter nascido rica, ou que passaria “perrengue” por pelo menos uma década ao longo da graduação, mestrado e doutorado – e sem uma garantia de emprego. Largou a Biologia e ingressou no curso de Engenharia Civil da UFBA – desta vez como cotista -, e foi na escola politécnica que ela percebeu o quanto ser uma estudante preta, pobre e favelada começou a pesar durante a vida universitária.
Parecia que o “estudar para ser alguém na vida”, como seus pais sempre lhe diziam durante a infância, não era o suficiente, quando algumas vagas de estágio pediam que o estudante tivesse carro, enquanto em outras, o nepotismo era frequente, relata. Ali, percebeu o quão importantes e necessárias eram as políticas de permanência, ainda mais em cursos sem aulas no período noturno, como a engenharia.
“Não é só colocar a pessoa lá dentro, deveria existir uma série de coisas que garantissem que ela consiga usufruir daquele espaço”
“Além das cotas, é necessário trabalhar a permanência estudantil. Não adianta colocar a gente dentro da universidade e não haver políticas públicas para que o jovem e o adulto consigam se manter ali. Hoje vejo que há um número maior de políticas de permanência nas universidade públicas, fruto de muita luta de cinco, dez anos atrás”, conta o historiador Bruno Correia. Além de lecionar em escolas, Bruno também é coordenador de um cursinho pré-universitário popular na Vila Curuçá, distrito com maioria preta e parda, no extremo leste de São Paulo.
Na mídia
Em 2011, antes da Lei de Cotas ser sancionada, a artista Bia Ferreira escreveu a canção “Cota não é esmola”. “E nem venha me dizer que isso é vitimismo, não bota a culpa em mim pra encobrir o seu racismo”, canta.
“As Cotas” é um manifesto audiovisual realizado pela União Nacional dos Estudantes (UNE), celebrando os dez anos de implementação das da Lei de Cotas no país e reafirmando a importância dessa política como direito.
A universidade que conversa com a infância
Para Beatriz, a Lei de Cotas conversa com a infância em três aspectos: o acesso de mães no ensino superior por meio das cotas; maior diversidade dos profissionais que vão olhar pelas infâncias; e trazer à tona a possibilidade de sonhar com um futuro possível e com maior autonomia. “Tendo em vista esse ingresso na universidade pela Lei de Cotas, a gente garante que as políticas desenvolvidas estejam mais próximas das realidades das infâncias plurais no Brasil”, diz a mestra em políticas públicas.
“A presença de diversos corpos na universidade qualifica o debate e contribui para análises mais profundas e próximas do cotidiano”
“A Lei de Cotas é necessária pois partimos de narrativas diferentes. Para além de uma dívida histórica, esse meio de entrada proporciona ver menos ‘menor’ morrendo no morro e mais favela na faculdade. Mas não basta apenas inserir, aquele ambiente precisa ser benéfico pra gente”, diz Mateus Fernandes. Além das palestras e criação de conteúdo, o gestor de RH também atua em uma empresa empenhada em aumentar a diversidade no meio corporativo. Além dos títulos que orgulhosamente ele pode bater no peito para reivindicar, o ingresso na universidade também conversa com sua infância, que diversas vezes foi deixada de lado para que um presente e futuro menos atravessados na violência pudessem ser construídos hoje.
“Eu gostaria de abraçar o Mateus criança, tenho muito orgulho daquele moleque que, mesmo novo, era muito responsável. Hoje, eu torço muito para que as crianças tenham o privilégio de continuar sendo crianças. Focar no agora e se permitir sonhar, sem cobranças”
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A UFABC, universidade onde Beatriz se formou, foi fundada em 2005 e teve políticas de cotas antes mesmo da efetivação da Lei 12.711/2012 – das 1.500 vagas do vestibular realizado em 2006, 750 foram reservadas para ingressantes oriundos de escolas públicas (entre as 750, 204 destinadas a alunos pretos e pardos, e duas voltadas à ingressantes indígenas). Hoje, a Universidade também reserva vagas para pessoas com renda per capita inferior a um salário mínimo e meio, com deficiência (Lei 13.409/2016), transgêneras, refugiadas ou solicitantes de refúgio.