“Os conteúdos obrigatórios de história e cultura afro-brasileira e africana são indispensáveis para produção de um imaginário diverso, um repertório simbólico múltiplo e uma realidade democrática em que todas pessoas possam ser respeitadas”. Essa é a importância de aplicar a Lei 10.639 nas salas de aula de escolas públicas e privadas Brasil afora, segundo o professor de Filosofia Renato Noguera, da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ).
Completando 20 anos desde a sua publicação, a Lei 10.639 tornou obrigatório o ensino de história e cultura afro-brasileira nos níveis fundamental e médio. Apesar disso, especialistas ouvidos pelo Lunetas relatam que desafios como a falta de fiscalização, uma estrutura educacional precária e racismo, principalmente o religioso, dificultam a efetivação da lei no país.
Ao defender que a construção de uma educação antirracista deve começar na infância, Noguera considera importante haver “mais suporte político do Ministério da Educação, e que o Estado brasileiro e outras instâncias da sociedade estejam envolvidos no processo de enfrentamento do racismo”.
“A infância é, dentre outras coisas, uma etapa da vida de formação de repertórios afetivos, políticos e éticos”
Publicada em 9 de janeiro de 2003, a Lei 10.639 tornou obrigatório o ensino de história e cultura afro-brasileira nos currículos da educação básica. Em 10 de março de 2008, a Lei 11.645 trouxe o complemento de também incluir a história e cultura de povos indígenas. Ao completar 20 anos, a Lei 10.639 marca uma série de políticas públicas voltadas à valorização da África, das lutas de africanos e seus descendentes no Brasil, da cultura negra brasileira e da presença do negro na formação da sociedade nacional, resgatando a contribuição do povo negro no país por meio da educação.
A lei na prática cotidiana
Você, professor, já abordou história e cultura afro-brasileira em sala de aula? E você, cuidador, teve alguma experiência com o aprendizado de temáticas voltadas a este tema durante sua trajetória escolar?
Para que as crianças tivessem um aprendizado livre de estereótipos em relação ao continente africano, a professora Lavínia Rocha, inspirada pela prática pedagógica do educador Dionysius Mattos, mostrou em suas redes sociais a reação dos alunos à pergunta: “Quando você pensa em África, qual é a primeira coisa que vem na sua cabeça?”.
A professora, que atualmente leciona em duas escolas particulares de Belo Horizonte (MG), reconhece a liberdade que tem para “tratar de temas sensíveis que os alunos trazem de casa, da sociedade e das igrejas”, embora colegas considerem difícil trabalhar com a temática muitas vezes por medo. Ela também aponta a dificuldade de acesso a formações especializadas como um dos obstáculos para que o ensino de história e cultura afro-brasileira seja efetivado no país. Ela conta que a estrutura curricular de sua licenciatura em história pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), priorizou o período pós-colonial, tratando apenas superficialmente a África pré-colonial.
Apesar das temáticas constarem da Base Nacional Comum Curricular (BNCC), Rocha considera insuficiente o que os livros trazem. Por isso, procura propor debates que vão além do material didático. “Às vezes me incomoda como o tema é tratado, no fim do capítulo, como se fosse um conteúdo extra, e não algo conjugado com o trabalho no todo”, finaliza.
“Aplicar a lei ainda parte mais de um objetivo pessoal do que uma exigência da escola”
Para a pedagoga Míghian Danae, o ensino de história e cultura afro-brasileira que antes geralmente partia “do trabalho solitário da professora”, sem amparo estrutural das secretarias, escolas e currículos das universidades para manterem o tema vivo. Agora, a percepção da lei atravessa a “porta de entrada” do ensino de história, arte e literatura brasileira, trazendo temáticas como capoeira, orixás e racismo religioso para ampliar as discussões para outras áreas do conhecimento.
Sobre o trabalho voltado a relações étnico-raciais em turmas da educação infantil e fundamental em escolas públicas, Danae comenta que “criar pertencimento e falar sobre a história delas gera recepção e acolhimento. É importante que todo mundo conheça as raízes que compõem o Brasil, porque se conhecer é conseguir aprender sobre o outro. Isso traz autoconfiança e uma conexão muito mais profunda com a própria ideia do conhecimento, porque eu sei quem eu sou”. Apesar de dizer que as crianças geralmente ficam “surpresas e curiosas” com o tema, muitas vezes, “alguns alunos tentam refutar as informações recebidas por terem uma visão arraigada, por ouvirem da família coisas como ‘falar de raça é falar de candomblé’, em tom negativo”, conta.
Para a educadora, é essencial não tomar o ambiente escolar pela linguagem do confronto ao falar sobre relações étnico-raciais, mas adotar caminhos que mostram o quanto a gente é diverso, ressaltando nossas diferenças. Danae também elege “monitoramento” a palavra de ordem, pois, sem fiscalização, “o debate se apaga e pode ser desmontado por uma lógica racista e colonialista”. Segundo ela, a escalada do conservadorismo também dificultou que temas voltados à educação antirracista continuassem avançando.
Apesar da importância das leis para a construção de um país que combata efetivamente o racismo, a educação, sozinha, é insuficiente para transformar a sociedade, acredita Noguera, endossando que a luta constante por uma educação antirracista deve ser reinvidicada por todos.
“Considerar apenas a escola como instância-chave do letramento antirracista é equívoco”
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