Você se lembra de alguém que tenha te inspirado quando você era criança? Alguém que você viu, ouviu e sentiu que poderia sonhar mais alto? Quando eu penso em quem me inspirou durante a infância tenho duas memórias diferentes. Uma era a que eu via na TV e a outra era a que eu convivia.
Lembro de ter me emocionado com alguns discursos das Diretas Já, de alguns líderes estudantis. Mas quem falava era quase sempre igual. Praticamente todos homens e brancos. Quando eu penso em quem foram as pessoas que me fizeram ser quem eu sou hoje lembro de muitas mulheres que conheci desde pequena. Minha mãe, tias, líderes comunitárias, senhoras cuidadoras, ativistas. Elas não ocupavam cargos, nem falavam na TV. Eu queria ser como elas. Mas não as via representadas na política, na mídia, nas empresas. Era difícil sonhar alto.
Era difícil entender que o mundo poderia ser plural.
Por isso eu ouvi ao discurso da Kamala Harris com água nos olhos. Mesmo sendo a eleição de um outro país, que vive seus próprios dilemas democráticos e imperialistas, eu senti a força simbólica de ter uma mulher, negra e asiática, ocupando pela primeira vez a vice-presidência dos EUA.
Imagine ser uma criança e ver uma mulher negra sendo celebrada por ter sido eleita vice-presidente de um dos maiores países do mundo? Qual narrativa ficará gravada nos corações e mentes de meninos e meninas ao verem ela sendo aplaudida e dizendo palavras de transformação?
Quando Kamala Harris entrou no palco, usando um terno branco, fazendo referência ao movimento sufragista e feminista que usou esta cor em tantos protestos ao longo do último século, pensei: Kamala representa todas as mulheres que vieram antes e que foram esquecidas, oprimidas e violentadas no processo democrático. Mas ela representa muito mais do que isso.
Em seu primeiro discurso, ela disse:
“Eu posso ser a primeira mulher neste cargo, mas não serei a última. Porque toda garotinha nos assistindo hoje vai ver que este é um país de possibilidades”
“E às crianças, independentemente do seu gênero, nosso país mandou uma mensagem clara: sonhe com ambição, lidere com convicção e se veja onde os outros podem não ver você, simplesmente porque eles nunca viram antes. E nós aplaudiremos vocês em todos os passos do caminho”.
Sonhar para além do que vemos. Querer ocupar todos os espaços. Essa é a mensagem que a eleição da Kamala ensina a meninos e meninas, não apenas dos Estados Unidos. Pois sabemos que ser uma potência mundial faz com que o que acontece lá seja refletido em muitos lugares. E, às vezes, isso pode ser uma coisa boa.
A criança pobre, a criança negra, a criança com deficiência, a criança LGBTQI+, a criança imigrante, a criança latina, todas as crianças, com todas as suas diferenças, podem sonhar em estar em todos os lugares. Elas devem pertencer a todos os lugares. É isso que a Kamala Harris representa.
Sonhar com o que não vemos para construir o futuro que queremos.
Essa mensagem é potente para meninas e meninos. Claro que tem uma importância vital para meninas ver mulheres chegando aos cargos de poder. Isso nos conta que somos capazes, que somos inteligentes, assertivas, fortes. Mas essa é uma mensagem que transforma também os meninos. Porque amplia os referenciais e consolida o que sabemos: meninas e meninos podem fazer todas as coisas. E ocupar todos os espaços. Liberta meninas e meninos para serem quem são.
Desejo que cada pessoa que chegar a um espaço de poder que nunca pôde ocupar antes faça como a Kamala: abra a porta, agradeça aos que vieram antes e diga para todas as meninas e meninos: isso também é seu, ocupe. Até que não exista lugar algum sem uma pessoa negra, latina, branca, indígena, asiática, deficiente, trans, LGBTQI+, imigrante. E que façamos isso como a Kamala: sorrindo e dançando pelo caminho.
*Ana Castro é mãe da Tarsila e do Ernesto. Jornalista, escritora e cofundadora do coletivo Política é a Mãe.
**Este texto é de exclusiva responsabilidade do autor e não reflete, necessariamente, a opinião do Lunetas.