A poluição do ar tornou-se emergência global de saúde pública e representa uma das maiores ameaças à saúde humana. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), 90% da população mundial respira ar abaixo de níveis seguros. Quando a fonte de poluição são as queimadas, além da perda de biodiversidade e o aumento de emissão dos gases de efeito estufa, existem outros prejuízos consideráveis, como doenças respiratórias e cardiovasculares, e mortes prematuras – crianças, idosos, gestantes e pessoas com doenças pulmonares ou cardíacas preexistentes são as populações mais vulnerabilizadas.
No Pantanal, entre agosto e outubro de 2020, grandes incêndios devastaram cerca de um quarto do bioma. Por mais contraditório que possa parecer, foram os piores incêndios na história da maior zona úmida da Terra. De acordo com cientistas do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres (Cemaden), o Pantanal vive atualmente a pior seca dos últimos 60 anos. As causas não estão claras: podem ser tanto em decorrência das mudanças climáticas como do desmatamento da bacia amazônica – menos floresta por lá significa menos formação de nuvens e, portanto, menos chuva.
Segundo relatório publicado pela ONU, a poluição do ar é “um assassino silencioso” que mata milhões de pessoas por ano. Ao inalarem regularmente ar tão poluído, colocam em risco a sua vida, a saúde e o bem-estar. Se a poluição do ar já era um grande desafio para cidades e estados em todo o Brasil, sendo responsável por mais de 51 mil mortes anuais no país, de acordo com estudo publicado pela Organização Pan-Americana da Saúde (Opas) em 2018, imagine quando ela está associada a recordes e aumento de queimadas.
De acordo com a OMS, 93% de todas as crianças do planeta respiram ar que contém concentrações mais elevadas de poluentes do que aquelas consideradas seguras para a saúde humana. Cerca de 7 milhões de mortes prematuras por ano são atribuíveis à poluição do ar – 800 pessoas por hora ou 13 por minuto.
Como resultado, 600 mil crianças morrem prematuramente a cada ano por causa da poluição do ar.
Como se isso não bastasse, a exposição ao ar sujo também prejudica o desenvolvimento do cérebro, levando a deficiências cognitivas e motoras, e coloca as crianças em maior risco de doenças crônicas.
O desmatamento da região Amazônica, por si só, é capaz de provocar diversas doenças respiratórias, como demonstra um estudo publicado na revista Nature e reforçado por outros artigos acadêmicos. Segundo pesquisas, inúmeros são os prejuízos causados pelas queimadas, em variados grupos, especialmente às crianças. Os efeitos encontrados nos estudos foram: aumento de doenças respiratórias e diminuição da função pulmonar em crianças, aumento da admissão hospitalar e mortalidade, principalmente em pacientes com doenças cardiovasculares e/ou pulmonares, piora dos ataques de asma em asmáticos, aumento de casos de câncer, entre outros.
O desmatamento na Amazônia em abril deste ano atingiu o pior índice para o mês já registrado na série histórica desde 2015, segundo dados do Instituto de Pesquisas Espaciais (Inpe). Os alertas abrangeram uma área de 580,55 km², equivalente a 58 mil campos de futebol, conforme medições do Sistema de Detecção de Desmatamento em Tempo Real (Deter). Os dados mostram que o desmatamento na região cresceu 42% em relação ao mesmo mês do ano passado.
Já em 2020, batemos recordes nos índices de queimadas e desmatamento, tanto na região amazônica quanto no Pantanal. Um de seus efeitos imediatos é a escalada de queimadas usadas muitas vezes para destruir a vegetação desmatada. Em 2019, foram 129.089 focos na Amazônia Legal, índice 81% maior em relação à média entre 2011 e 2018.
Há forte tendência de aumento da incidência de doenças respiratórias durante o período em que coincidem a diminuição das chuvas na região, a queda dos índices de umidade, a ocorrência de queimadas e a contaminação atmosférica pelos diversos tipos de poluentes.
O estudo “O ar é insuportável: os impactos das queimadas associadas ao desmatamento da Amazônia brasileira na saúde” estimou que 2.195 internações hospitalares por doenças respiratórias em 2019 são atribuíveis às queimadas. Quase 500 internações envolveram crianças com menos de um ano, e mais de mil foram de pessoas com mais de 60 anos. Essas internações, segundo o estudo, representam apenas uma fração do impacto total das queimadas na área da saúde, considerando que milhões de pessoas foram expostas em 2019 a níveis nocivos de poluição do ar decorrentes das queimadas associadas ao desmatamento na Amazônia.
Em agosto de 2019, quase 3 milhões de pessoas em 90 municípios da região amazônica foram expostas a níveis de poluição atmosférica nocivos, acima do limite recomendado pela OMS. Em setembro, o número aumentou para 4,5 milhões de pessoas em 168 municípios.
O Instituto Saúde e Sustentabilidade mostrou impacto semelhante em seis regiões metropolitanas brasileiras (onde vive 23% da população total do país) e concluiu que serão contabilizadas, de 2018 até 2025, aproximadamente 128 mil mortes precoces por um custo de R$ 51,5 bilhões em perda de produtividade, e mais de 69 mil internações públicas a um custo de R$ 126,9 milhões para o Sistema Único de Saúde.
Evidente então que focar nas queimadas dos biomas mais ameaçados e na consequente poluição do ar associada é mais do que urgente. Conforme descrito no relatório “Análise do Monitoramento de Qualidade do Ar no Brasil 2019”, do Instituto Saúde e Sustentabilidade, “das 27 unidades federativas, 20 (74%) não realizam o monitoramento; ou deixaram de realizar; ou realizam de forma obsoleta, ineficiente. E apenas 26% (6 estados e o Distrito Federal) atendem o regulamento vigente.
Nota técnica assinada pela Fiocruz e WWF-Brasil aponta que as queimadas na Amazônia aumentam os problemas respiratórios e elevam os gastos do sistema de saúde. O levantamento mostra que, em um período de dez anos, entre 2010 e 2020, os estados com focos de incêndio (Pará, Mato Grosso, Rondônia, Amazonas e Acre) tiveram internações associadas ao problema que custaram 1 bilhão aos cofres públicos e uma parte considerável dessas internações podem ser atribuídas às concentrações de partículas respiráveis finas emitidas por incêndios florestais. Segundo o relatório, os valores diários de poluentes são “extremamente elevados” e contribuíram para aumentar em até duas vezes o risco de hospitalização.
De acordo com a OMS, o principal esforço dos governos para proteger a saúde da poluição do ar pelas queimadas deve ser um programa de monitoramento da qualidade do ar eficaz e preciso, que meça os poluentes mais perigosos para a saúde, e que sirva de base para as autoridades tomarem as medidas necessárias à proteção da população.
O Pronar, regulamento que rege o controle da qualidade do ar no Brasil, não apenas está defasado, como também foi ineficiente para implementar a rede nacional de monitoramento da qualidade do ar e garantir o seu controle.
As autoridades ambientais e de saúde devem cooperar, nos âmbitos estadual e federal, para implementar Planos de Episódios Críticos de Poluição do Ar que estabeleçam medidas preventivas e responsivas para proteger a saúde quando a poluição do ar ultrapassar os padrões de qualidade do ar, em especial na “temporada do fogo”, como previsto no artigo 10 da Resolução Conama n. 491/2018.
Da mesma forma, o governo federal dever tomar medidas administrativas urgentes para reativar de forma plena o funcionamento do Prevfogo com todos os recursos autorizados pela lei orçamentária, zelando assim pela sadia qualidade de vida e padrões que protejam a saúde por meio de políticas preventivas e responsivas, com atenção especial aos grupos vulnerabilizados (especialmente crianças, gestantes e idosos), além de adotar medidas urgentes em prol do melhoramento e do monitoramento da qualidade do ar em todo o território nacional, inclusive tornando público para a população brasileira os resultados desse monitoramento para que as medidas de precaução e de saúde possam ser tomadas em tempo hábil.
Afinal, o princípio constitucional da precaução revela a responsabilidade para com as futuras gerações, e nos coloca como guardiões do tempo e das vidas futuras.
A dimensão intergeracional do princípio da solidariedade aponta também para um complexo de responsabilidades e deveres das gerações contemporâneas em resguardar condições existenciais para as pessoas que virão a habitar o planeta, devendo-se voltar o olhar para o futuro da humanidade. Tudo isso encontra suporte constitucional no artigo 225 da Constituição Federal de 1988, ao estabelecer que se impõe ao Poder Público e à coletividade o dever de defender e preservar o ambiente para as presentes e futuras gerações.
Em outras palavras, se reconhece o direito de crianças e adolescentes de ter futuro no presente.
A qualidade ambiental em sentido amplo é um dos principais fatores que determinam a sobrevivência das crianças nos primeiros anos de vida, e influencia fortemente o seu desenvolvimento físico e mental.
Não podemos mais ignorar o contexto da proteção socioambiental de crianças e adolescentes, devemos reconhecer que esta parcela da população tem sido afetada de forma desigual e desproporcional, merecendo um olhar mais apurado e uma proteção eficaz e integral com prioridade absoluta de seus direitos fundamentais, tal qual resta descrito nos artigos 225 e 227 da Constituição Federal.
Angela Barbarulo, coordenadora do projeto Justiça Climática e Socioambiental do programa Criança e Natureza do Instituto Alana. Advogada, formada pela PUC/SP e auditora especializada em direito ambiental pelo Institute of Environmental Management & Assessment/UK. MBA em Gestão Ambiental e Mestre em Engenharia e Tecnologia Ambiental pela Universidad de León, Espanha. Membro da Comissão de Meio Ambiente e de Direitos Humanos da OAB/SP.
** Este texto é de exclusiva responsabilidade do autor e não reflete, necessariamente, a opinião do Lunetas.
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Até setembro deste ano, a área atingida pelo fogo no Pantanal já é maior que a média histórica da região. Segundo dados do Laboratório de Aplicações de Satélites Ambientais (Lasa), 261,8 mil hectares já foram perdidos para o fogo; no mesmo período do ano passado, a área queimada foi de 1.356.925 hectares — segundo Márcio Yule, coordenador estadual do PrevFogo em Mato Grosso do Sul, esta área equivale a dois municípios do Rio de Janeiro.