Eu sou a principal cuidadora de uma criança que é a sociedade vê como um problema, como incapaz, como um fardo, como alguém com deficiência grave. Eu sou mãe da Alice, de 7 anos.
O direito de minha filha acessar a escola é muito recente. Historicamente, nossa sociedade tem mais experiência em segregar e excluir do que incluir. Se tivesse nascido há uns 30 anos, ela não só seria totalmente desacreditada pelo mundo, como estaria reclusa em casa, como tantas pessoas com deficiência que não tiveram direito à escola e à vida pública.
Na minha infância, morei em um bairro tranquilo, numa cidade no interior de São Paulo. A gente brincava na rua e todo mundo se conhecia. Todo mundo menos o Rodolfo, um dos vizinhos, que vivia atrás da grade da sua casa e a sacudia com força enquanto olhava as outras crianças autorizadas a brincar na calçada. Uma grade separava a vida pública do campo doméstico, quem podia brincar e quem não podia, quem iria à escola e quem nunca iria.
Rodolfo nunca brincou conosco, ele também nunca foi à escola. E eu nunca me esqueci do que não tivemos: o direito de viver juntos.
São 30 anos que separam o Rodolfo, meu vizinho de infância, da Alice, minha filha. Trinta anos é um piscar de olhos quando a gente pensa numa perspectiva histórica. Trinta anos em que a sociedade vem tentando avançar, em que os movimentos sociais vêm reivindicando que se compreendam as pessoas com deficiência como sujeitos de direitos – não como falta, como falha, como problema a corrigir ou isolar do mundo. Trinta anos em que as escolas vêm sendo pressionadas a avançar por muitas razões, mas também porque as pessoas com deficiência começaram a acessar esses espaços.
Ao chegarem outros corpos, outras formas de expressão, outras maneiras de estar no mundo, a escola precisou se atualizar, se ampliar para caber mais mundo, mais gente, mais vida.
Esse processo não está pronto e nunca estará. Mas ele só começou porque houve encontro, porque as pessoas com deficiência puderam se mover do campo doméstico para a vida pública.
Como tudo isso ainda é muito recente, como temos fresca na memória e na nossa compreensão de mundo a ideia de que pessoas com deficiência são um desvio, são inferiores, são tipos muito específicos de gente, as barreiras, ainda hoje, são inúmeras. Diárias.
Tive 10 negativas de matrícula para minha filha: seis na educação infantil, quatro na fundamental. O parque de diversões da cidade onde moramos tinha, até meses atrás, a entrada com rampa em uma rua lateral escondida, e as grades trancadas com cadeado, como aquelas grades que Rodolfo me apresentou. Aliás, no prédio em que moramos, construído 30 anos atrás, entramos pela garagem, porque a entrada principal, de pedestres, não tem acessibilidade. Mudamos para esse prédio porque, no nosso apartamento anterior, a cadeira de rodas não passava pelas portas. Me pergunto se as pessoas com deficiência não se moviam nem mesmo dentro de casa, se permaneciam acamadas na suposta segurança de seus lares com portas tão estreitas.
É preciso dizer também que os ônibus aqui da cidade onde moro são conhecidos por darem “janeladas”, que é o jeito que o motorista acelera ao perceber que tem uma pessoa com deficiência aguardando no ponto. Que o táxi cancela o chamado quando nota que precisa carregar uma pessoa com deficiência e, sobretudo, uma cadeira de rodas. Que na igreja onde certa vez estivemos, ela foi chamada como alguém possuída pelo demônio; eu, de pecadora, por merecer uma filha assim.
Nossa herança é esse mundo de portas fechadas, estreitas.
Um mundo em que a gente precisa afirmar que existe, que tem direitos, que as coisas é que precisam de conserto ou reparo, não as pessoas. E nisso a escola tem papel fundamental.
Minha filha, hoje, está na escola. Com todas as dificuldades do ambiente digital, com todas as barreiras para acesso ao currículo, ela está. E porque ela lá está, a escola está investindo na formação de professores em tecnologia assistiva. A escola está construindo um acesso para pessoas com mobilidade reduzida, para quando chegar o momento de voltarmos a nos encontrar pessoalmente. A escola vai rever o projeto político pedagógico no que tange a inclusão.
Um dia, em pleno processo de alfabetização, a professora falou sobre as diferentes formas de escrever: com lápis na mão, com máquina de escrever, com computador, com pranchas de comunicação alternativa. Os alunos já sabem que existem diferentes formas de expressão e, quando entram na sala virtual, dialogam com a minha filha com naturalidade. Eles se comunicam oralmente, e ela usa o corpo ou prancha de comunicação.
Quais dessas mudanças (estruturais, pedagógicas, tecnológicas e de percepção de mundo) se instalariam se minha filha não estivesse na escola? Quais debates não aconteceriam? Quais transformações ficariam pelo caminho? E mais, quais cidades construiríamos a partir daí? Nenhuma sociedade deveria abrir mão de ter a contribuição das crianças e dos jovens, todos eles, para refazer o mundo a partir da escola.
Essa é a diferença entre a educação em casa e a educação escolar: é na escola que nos educamos para a vida pública, no encontro com os estudantes da mesma idade, entre os pares.
A aprendizagem está inerente ao encontro com o outro e com os outros, ao exercício da alteridade, aos debates públicos em torno do conteúdo com os diferentes modos de interpretação, de compreensão. Não há como a família reproduzir isso em casa.
A educação em casa não tem como simular todo o processo educacional que acontece nesse encontro por uma razão tão simples quanto óbvia: ali não está a vida em sociedade.
Em casa, está um ambiente estático e artificial, porque está reduzido ao mais do mesmo. Fora da diversidade da vida em sociedade, tudo o que há é artificialidade.
É na vida pública que os conteúdos se transformam e impelem a sociedade a caminhar, a evoluir. O debate público que acontece na escola, entre todos que integram a comunidade escolar, coloca os conteúdos pedagógicos sob debate. E esse debate pode e deve transformar a sociedade permanentemente. Não são conteúdos estáticos para serem reproduzidos numa prova. Eles estão ali, abertos ao escrutínio de cada estudante, com sua perspectiva, sua cultura, seu modo de compreender, interpretar, perceber em diálogo e, justamente por isso, esse conteúdo já está se transformando.
É daí que vem o progresso da sociedade: porque as pessoas se encontram na escola e utilizam o conhecimento acumulado pela humanidade para fazer novas proposições.
É assim que minha filha Alice está mudando a escola e que a escola a está transformando também. Mutuamente.
O artigo 205 da Constituição Federal prevê que a educação será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho. Ora, o desenvolvimento de uma pessoa pressupõe que a vida em sociedade tem a ver com a vida pública, não só com transmissão de conteúdos. Por sua vez, isso desemboca no direito ao exercício da cidadania. Que cidadania é possível quando se experimenta uma vida escolar dentro de casa? Preparo para o trabalho, nós sabemos, está longe de ser apenas a obtenção de um diploma. Dito de outro modo, o homeschooling impede esses três objetivos da educação garantidos na Constituição.
Não há cidadania sem vida na sociedade e o homeschooling não é vida pública, é vida privada. Aquela, que foi, por anos e anos, a única experiência possível para as pessoas com deficiência. Nós chegamos na arena faz pouco, e não pretendemos sair.
É no mínimo ingênuo acreditar que a alternativa do homeschooling não impactará as famílias que não o desejam, quando ele é justamente resultado da falta de escolha de algumas famílias, em razão de uma sociedade que ainda hoje desacredita as pessoas com deficiência. O impacto se dá para além das crianças com deficiência: as crianças em situação de vulnerabilidade, as crianças que vivem na pobreza, as crianças negras, que são as que mais evadem da escola porque são impelidas a ingressar precocemente no trabalho – todas elas estão em um número muito maior do que aquelas que hoje estão em homeschooling.
Se um projeto de lei como esse passar, as condições materiais das escolas, somadas às ausências de toda ordem que se impõem nas realidades dessas crianças, levarão a mais evasão escolar e desigualdades. Mas, nesse caso, a evasão escolar estará legalizada. Que fiscalização dará conta de garantir que as crianças não tenham seus direitos negados?
Se a escola está precarizada, se precisa melhorar para atender nossos anseios como sociedade, é necessário investimentos, recursos, valorização, e não abandono.
Ela precisa que o dinheiro do Fundeb seja direcionado adequadamente, precisa que as famílias participem ativamente de seus espaços, precisa que os professores sejam melhor remunerados e tenham acesso a formações, precisa que suas estruturas melhorem, que as merendas sejam de qualidade e cheguem ao seu destino, precisam de tecnologia assistiva.
A escola precisa de nós, a escola não prescinde de nós.
O argumento de que as famílias têm direito de escolha fere os direitos da criança. É dever do Estado proteger a criança como prioridade absoluta. A escola é promotora dos direitos das crianças. Ou seja, o direito à educação, por óbvio, mas também inclui ações de promoção da saúde mental, de segurança alimentar, de ampliação da participação na vida em sociedade. Quando tudo se reduz ao campo doméstico, não se permite nenhuma variação de ser e estar no mundo, de modo de vida, de prática do cuidado. Nenhuma transformação de mundo é ventilada, concebida, sonhada.
A escola é o lugar onde a gente firma compromisso com a coletividade.
Minha filha, que está na escola a despeito de todas as barreiras, já compreendeu isso. Ela começou a escrever um livro nas sessões com a professora. Ela pesca as letras do alfabeto, uma a uma, usando o movimento de cabeça. Sem falar uma palavra, ela tem escrito outro mundo. O título do livro é “A imaginação da Alice”, que começa com a frase “era uma vez uma cidade sem buracos”. Sim, ela sabe do concreto incômodo das calçadas mal acabadas que balançam demasiadamente a sua cadeira de rodas.
Ela sabe disso porque não está submetida exclusivamente ao campo doméstico, como aconteceu com o Rodolfo, meu vizinho da infância, ou como as pessoas que moravam nas casas de portas estreitas. Ela sabe disso porque está nas ruas (não agora, em pandemia). Ela até poderia aprender a escrever sozinha em casa. Mas, se não fosse pela escola, ela não teria para quem contar. Mais do que isso, talvez ela não tivesse sequer razões para escrever seu livro, para anunciar o mundo a partir do seu encontro com ele, mediado pela escola.
Ela escreve porque está no mundo a partir da escola, e esse é um direito que não está em negociação.
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