Ascensão e sucesso são referências que costumam guiar homens e mulheres em suas trajetórias profissionais, seja ela numa carreira corporativa ou ao decidir empreender. Mas, quando essa questão se coloca diante de casais com filhos, as divisões de responsabilidades com as crianças precisam ser negociadas.
Como fica essa “lógica” quando o homem assume boa parte das atribuições do lar enquanto a esposa consolida a sua carreira ou um casal homoafetivo divide as responsabilidades de forma igualitária? O portal Lunetas escutou casais que não seguem esses padrões convencionais para saber como eles se apoiam e se incentivam mutuamente, cuidam da formação dos filhos e lidam com julgamentos e convenções de masculinidades muitas vezes tóxicas.
O psicólogo Robson Douglas da Silva Santos destaca dois pontos que tentam “justificar” esse formato. “O primeiro ponto é a questão física. Aprendemos nas histórias sobre os tempos primários da civilização que os homens saiam para caçar, pescar, participar de guerras para defender as terras e o seu povoado. Um segundo ponto é a questão bíblica. Segundo a história de Adão e Eva, Deus criou a mulher para ajudar o homem”.
Esses elementos, presentes em muitas famílias brasileiras, considera Robson, podem resultar, por exemplo, em homens autoritários que acham um absurdo a mulher trabalhar fora de casa por inúmeros motivos, principalmente porque foram criados em uma estrutura machista, ou na romantização da tradição do homem provedor enquanto a mulher tem que ser ‘bela, recatada e do lar’, cita o psicólogo.
Quebra de paradigmas na criação dos filhos
Mas, existem formações familiares que não seguem esses padrões tradicionais. É o caso de Rafael da Silva Santos, 33, e Mariana Dias, a “Maree”, 29. O casal tem três filhas: Aretha, 3, Amara, 1, frutos da união de ambos, e Ana Helena, 7, que é filha de um relacionamento anterior de Rafael. Ele, que já atuou como jogador de futebol, mudou de profissão e atualmente é produtor dos cosméticos da marca de Maree. É Rafael quem cuida dos afazeres domésticos e da rotina com as três meninas.
Após a transição de carreira de Rafael, o casal percebeu que a trilha profissional dele não apresentava muitas chances de crescimento, enquanto que o empreendimento de Maree avançava. Em outubro de 2019, após várias conversas, o casal avaliou que seria melhor Rafael deixar o emprego na loja, o que só se concretizou quando a filha caçula nasceu, em março de 2020. Mas não foi uma decisão fácil.
“Por mais que o Rafa seja uma pessoa de mente aberta, ele é um homem criado no Brasil e um homem negro. Então, veio na cabeça dele toda aquela coisa de ser um homem sustentado pela mulher. Primeiro ele falou não, mas fui bastante insistente”, diz Maree. Ela relembra como o primeiro semestre de 2020 foi intenso com o nascimento de Amara e a chegada de Ana Helena ao núcleo familiar. Rafael adiciona à lista a mudança para uma residência própria. A família até então morava na casa da mãe dele e, a partir daquele momento, os aprendizados nos cuidados com as filhas ganharam novos contornos, uma vez que Maree havia retornado às atividades profissionais após um período de interrupção em função da pandemia.
“Eu fui criado num contexto muito machista, ainda mais sendo um homem preto. Não podemos estar em casa às 9h da manhã de uma segunda-feira”, relata. “Quando as minhas questões profissionais começaram a atrapalhar esse processo de evolução dela, passei a sentir uma pressão horrível. E essa pressão que eu sentia da necessidade de estar trabalhando era dada pela sociedade. Na época, o meu salário não estava fazendo um grande efeito na nossa família”.
Passadas as adaptações iniciais, eles reconhecem que os ganhos para toda a família foram preciosos e refletem os valores de companheirismo entre eles. Hoje, inclusive, eles mantêm um perfil numa rede social, por meio do qual compartilham vivências e aprendizados com o modelo de vida da família. “Entendemos que esse movimento que eu fiz seria algo comum, como pai, esposo, parceiro para que as coisas fluíssem, embora não seja visto com tanta naturalidade por aí. Se a minha esposa tem uma profissão, com uma condição mais estabelecida do que a minha, nós temos sim que trocar essa ‘ideia’ para fazer com que as coisas funcionem”, diz Rafael, reconhecendo que a antiga visão impactava o desenvolvimento profissional da companheira e das crianças.
“Percebi que existe uma mulher para além da maternidade. Quando nos tornamos mães, tudo gira em torno dos nossos filhos. Nossos corpos, mentalidade e estado psicológico mudam por causa deles. Então, a gente fica sem aquelas coisas de se arrumar e ver as amigas. Mas eu percebi que eu posso fazer isso. Tenho um parceiro ao meu lado”, sentencia Maree.
“Ele é a minha pessoa de confiança”
O casal mineiro Fernanda Vidal Magalhães, 36, e Ernani Sirino, 41, encara com naturalidade o fato dele ser a pessoa da família que cuida dos afazeres diários e de Lara, 12. Juntos há 22 anos, Ernani, funcionário público e fotógrafo profissional, é quem conduz toda a rotina com a filha desde os 3 anos de idade, quando ela foi diagnosticada com espectro de autismo, em 2012. Com dois empregos à época, ele pediu demissão de um deles, que ocupava o turno diurno, para cuidar dela, enquanto Fernanda seguia a trajetória profissional em uma empresa de distribuição de energia elétrica. A decisão foi consensual entre o casal.
“A gente como homem está acostumado a trabalhar e a ser o provedor, mas isso era algo necessário. Nunca me incomodou, mas percebia que as pessoas estranhavam”, relembra Ernani. Fernanda emenda: “As pessoas perguntavam: essa menina não tem mãe? Os bilhetes escolares sempre vinham direcionados à mãe. Nas conversas com as terapeutas, os trabalhos da Lara eram muito elogiados e super bem feitos e todos achavam que era eu que fazia, mas era ele. Por outro lado, todo mundo achava que ele era um paizão, mas ele estava mesmo era apenas desenvolvendo o papel de pai”.
O grande “salto” na vida do casal ocorreu quando ela, após ser aprovada numa seleção interna da empresa, foi promovida de analista para coordenadora de operações jurídicas, em 2021. No entanto, a nova função envolvia uma mudança de Minas Gerais para João Pessoa (PB), deixando a cidade natal, todas as amizades de longa data e o círculo familiar.
“Me inscrevi no processo no início de setembro. A gente veio pra João Pessoa em 27 de setembro. Antes de me candidatar, perguntei a ele: Se eu passar, você vai? E ele falou “vou”. Quando o processo finalizou e eu fui aprovada, tivemos 15 dias para preparar a mudança. O que me deu muita força foi ver o Ernani mais empolgado do que eu. Ele fez tudo muito rápido e entrou com o pedido de licença sem vencimentos para conseguir fazer a mudança”, relembra ela. “Quando a Fernanda me falou da vaga, eu aceitei de pronto, porque ela merecia essa progressão”, cita Ernani.
Segundo Fernanda, vez por outra as pessoas perguntam se ele já está trabalhando ou se conseguiram “alguém de confiança” para cuidar de Lara. “Eu falo logo: ele é a minha pessoa de confiança. Ele não abriu mão de nada. Somos um casal e temos muita parceria. A gente não vai longe um sem o outro. A minha promoção foi uma grande oportunidade para a família”, avalia Fernanda.
Divisão de responsabilidades
A vida da família formada pelo casal Reginaldo Francisco Santos Ventura, 38, professor e artista plástico, seu marido Cláudio Francisco Barbosa Ventura, da mesma idade, diretor escolar, e pela pequena Ana Cecília, de 2 anos e meio, é cercada de afetos e divisões de responsabilidades, de forma que todos possam evoluir.
“Sabemos que é o nosso maior desafio, e por conta disso, a gente conversa e lê bastante sobre criação de filhos. As tarefas são bem divididas entre nós. Acho que por conta dos horários flexíveis, eu (papai Regiz) fico com ela na parte da manhã e tarde, e o papai Cláudio assume de tarde para noite. Quanto aos ensinamentos, alimentação, consultas e afins, fazemos juntos, sempre priorizando ela em tudo”, relata Reginaldo.
Ambos buscam conciliar o desenvolvimento profissional com a criação da filha, embora reconheçam o desafio de ser pai e investir na carreira. “Nós dois somos concursados na área da Educação Pública: eu como diretor de escola (papai Clau) e o meu esposo professor em uma fundação de ensino técnico. Mas também temos nossos projetos de empreendedorismo e o tempo (ou a falta dele) acaba sendo nossa maior questão: não deixar de crescer e também não deixar de ver o filho crescer.”
Regiz ressalta que um dos pontos principais da criação de Ana é apresentar a ela uma visão mais diversa da vida. Eles tentam contornar a pouca oferta de conteúdos inclusivos e sobre famílias diversas, principalmente entre casais formados por pessoas LGBTQIAP+, com adaptações de histórias tradicionais e recorrendo a livros mais representativos dessa realidade.
“Esses dias, estávamos assistindo desenhos com a Ana e me peguei tentando encontrar famílias mais diversificadas sendo retratadas nas séries… Um desafio difícil de resolver. Praticamente não existe. Nosso país ainda é extremamente conservador, mas nossas famílias estão aqui, fazendo um trabalho de formiguinha para desmontar esse padrão. Nossa meta é que nossa cria cresça sabendo que sua família é real e que existem muitos outros formatos de famílias também. O que nos nivela é o amor e o respeito”, finaliza Regiz.
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Em grande parte dos lares brasileiros ainda persiste a visão de que cabe “somente” à mulher as atribuições do lar, o que foi acentuado durante a pandemia de covid-19. Uma pesquisa realizada pela Catho, em 2021, com seis mil profissionais homens e mulheres, evidencia a desproporção sobre como as mulheres ficam mais assoberbadas com o acúmulo de funções. Segundo o levantamento, entre as mulheres que estavam trabalhando em regime de remoto (home office), 92% delas ficam responsáveis pelos filhos em casa; entre as mães que trabalham fora de casa, 69% deixam as crianças sob os cuidados de outras pessoas, 19% com pais e 12% em instituições de ensino; já entre os homens que trabalham em outros ambientes fora do lar, 58% deles deixam as crianças com as mães, 36% com terceiros e apenas 6% em creches ou escolas.