O sol do sertão aquece o pátio do Colégio Modelo Maria José de Souza Alves, em Canudos, Bahia. A sirene acaba de avisar que o intervalo entre aulas acabou. É dia de assunto obrigatório e ninguém vai querer reprovar na matéria que conta sobre o passado da própria cidade.
Durante as aulas da disciplina “História de Canudos”, a professora Mirian Nascimento conta aos alunos do 6º ano sobre o conflito, ocorrido naquela região entre 1896 e 1897, que terminou com a destruição do povoado de Belo Monte.
“Quem não conhece a história de Canudos, não conhece a história do Brasil”
“Eu costumo dizer que a Guerra não foi de Canudos, foi da República. Aqui houve uma atrocidade, um genocídio mesmo”, discute Mirian. Para ela, na histórica Canudos, há muito a se aprender ante os acontecimentos do passado.
Guerra em vão
Nem todos os alunos da turma são nascidos em Canudos, como é o caso de Mayngrid Vitória, 12. Mas, ao menos para ela, o assunto desperta o máximo interesse. “Tem três anos que eu moro aqui e já estudei bastante [sobre a Guerra]. É muito bom saber que [apesar de tudo] as pessoas daquela época lutaram pelos seus direitos”, opina.
A estudante se refere à resistência da comunidade de Canudos contra a miséria e a exploração, o que incluía a cobrança de impostos. Para Mayngrid e sua colega Thyfany, 10, esse cenário histórico permite que elas vivam o dia a dia da cidade com mais encantamento.
“Para gostar de um lugar [como Canudos] é preciso fazer amizades com pessoas ao redor da gente, entender, compreender, ouvir, mas também ter seu lugar de fala”, opina Thyfany. “Eu percebo que nessa história tudo foi em vão… E, tipo, começou por uma bobeira”, acredita.
A professora Mirian, entretanto, situa a fala em um cenário no qual a guerra, 125 anos atrás, teria sido evitada. “Caso houvesse diálogo, com certeza seria totalmente diferente”, reflete.
Passado e presente
O termo “guerra” surgiu após as várias batalhas entre tropas do governo federal e os sertanejos liderados por Antônio Vicente Mendes Maciel, líder religioso apelidado de Antônio Conselheiro. O acontecimento destruiu o povoado de Canudos, onde viviam cerca de 25 mil pessoas, e outras milhares foram mortas por pelo menos cinco mil soldados.
“Sei que teve a guerra… que Antônio Conselheiro morreu… que teve a terceira Canudos…”, comenta Antonelle, 8, aluna em uma escola particular local.
Para entender o passado e o presente de Canudos, é preciso compreender que existem três cidades situadas no tempo. A primeira foi a aldeia, também chamada de Belo Monte, fundada no século 18 e ocupada por Antônio Conselheiro e seus seguidores, e que ficou destruída no pós-guerra. Em 1940, o então presidente do Brasil, Getúlio Vargas, decidiu reconstruir a cidade para os sobreviventes. Contudo, a “segunda Canudos” foi submersa em 1968 com a construção do lago artificial de Cocorobó, que retém as águas do rio Vaza-Barris. A Canudos atual recebe o nome de “terceira Canudos”.
“Há remanescentes da segunda Canudos que estão vivas e que contam um pouco da sua experiência”, comenta João Batista, guia turístico e neto de conselheiristas, “pessoas adeptas de Antônio Conselheiro que viveram em Belo Monte, com quem facilmente podemos ter acesso e conversar”, como ele define.
“Canudos ainda faz parte do que nós chamamos de história do tempo presente”
“A primeira Canudos foi destruída pelo fogo, a segunda Canudos destruída pelas águas, a terceira surge de todo esse processo de resistência, desse reexistir”, reflete João Batista.
Crianças da “Canudos Velha”
Em períodos de estiagem severa no semiárido, as ruínas da segunda Canudos, ou Canudos Velha, se tornam aparentes. “É muito triste você saber que nunca mais pode voltar ao lugar onde nasceu. Toda vez que a seca traz de volta as ruínas da igreja, volto lá. E refaço a Canudos que sempre vai estar viva na minha memória”, relata a jornalista Maria do Socorro Araújo, 64.
“Naquele ambiente, as lembranças da guerra eram também a história da luta da nossa gente pelo sonho do Belo Monte com rios de leite e montanhas de cuscuz”, acrescenta Socorro. Em meio às histórias de uma guerra que havia terminado 60 anos antes do seu nascimento, ela lembra da infância entre adultos solitários, viventes em um povoado bem pequeno, às margens do Vaza-Barris.
No meio do mato, onde costumava brincar com os irmãos, era fácil encontrar evidências da guerra. “Ainda hoje alguns amigos guardam balas de canhão. Eu e meus irmãos não temos, porque nosso pai sempre dava nossos achados de presente para os estudiosos que iam pra lá”, lembra Socorro.
“De noitinha, naquele lugar sem energia elétrica, nossa diversão era ouvir as histórias da guerra contadas pelos sobreviventes, que tinham sido crianças no tempo do Bom Jesus Conselheiro”, revive. Além do açude, a memória persistente da guerra está guardada no cotidiano das pessoas e em espaços de preservação da história local.
Lugares de memória
“Na cidade, o Instituto Popular Memorial de Canudos (IPMC) lembra não apenas a guerra, mas a memória de Belo Monte e quem foi Antônio Conselheiro”, reforça João Batista. Ele destaca também os equipamentos que a Universidade do Estado da Bahia (UNEB) mantém, como o Memorial Antônio Conselheiro, o Museu João de Régis e o Parque Estadual de Canudos, com o objetivo de preservação da história da Guerra de Canudos.
“A gente produz material literário e sempre tenta fazer com que a população perceba a importância da história da cidade”, pontua Adriana Fontes, professora da UNEB, pesquisadora e divulgadora da história de Canudos. Sua filha, Júlia, 10, desde pequena é frequentadora do Parque Estadual de Canudos, uma área de 1.321 hectares, palco da Guerra de Canudos e hoje considerado um museu a céu aberto de grande interesse arqueológico.
“Sempre fui muito interessada pela Guerra de Canudos”, garante a menina. “Eu sei que a guerra aconteceu porque Conselheiro era contra a República. A maioria dos refugiados estava cansada. Vieram para Canudos segui-lo e apoiavam o que ele pregava sobre a República, sobre Deus”, detalha Júlia.
Ainda segundo a estudante, os demais espaços chamam a atenção pelas fotografias, pinturas e evidências do combate entre sertanejos e soldados. Já o parque se destaca por ser o local onde é realizado o evento “Domingo no Parque”.
“Esse projeto da universidade busca dar aos jovens e às demais pessoas da comunidade acesso à história, porque aqui na cidade tem muita gente que não o conhece, que nunca foi ao parque”, explica a professora.
Uma vez por mês é realizada uma lotação para visitar locais específicos no parque. Há reunião, leituras de textos sobre Canudos, declamação de poesia, música e debates que abordam a história numa perspectiva socialista, segundo Adriana.
O sentimento de pertencer ao lugar
O perfil de Júlia não é o de uma típica canudense na idade dela, opina a mãe. “Muitas outras crianças têm esse engajamento, conhecem sobre a guerra, principalmente os filhos de professores, de pessoas envolvidas com os movimentos sociais, mas boa parte do povo daqui não conhece a história”, pondera Adriana Fontes.
Para minimizar o problema, ao menos entre os estudantes do ensino fundamental 1 e 2, a Prefeitura Municipal de Canudos promulgou, em 1990, uma lei orgânica que torna obrigatória a presença da disciplina “História de Canudos” no currículo escolar. Conforme traz o documento, a ênfase da disciplina deve ser “no episódio histórico da Guerra de Canudos e sua história contemporânea pós-emancipação”.
Conforme informou a prefeitura, por meio de seu Departamento de Cultura, somente no último ano foram realizadas ações culturais e educacionais para os alunos da rede pública com objetivo de preservar a história e memória da guerra e transmitir o sentimento de pertencimento a todos os envolvidos. As atividades, dentre as quais destaca-se o Festival de Arte e Cultura, envolvem literatura, música, dança e audiovisual.
As estudantes Júlia, Antonelle, Mayngrid e Thyfany guardam sentimento de respeito a Antônio Conselheiro e sabem da importância da Guerra de Canudos para a História do Brasil. Mas as professoras Adriana, da UNEB, e Mirian, do Colégio Maria José de Souza Alves, concordam que muitos alunos demonstram baixo interesse no conteúdo histórico local.
“Há crianças daqui, alunos que nasceram aqui, que não se sentem pertencentes à história. Perguntam: ‘Professora, por que estudar uma coisa que aconteceu lá atrás?’”, revela Mirian. Para ela, atividades como os desfiles e as romarias mantêm viva a memória e podem despertar o interesse dos jovens, sobretudo quando há encenações da guerra.
A cada ano, as romarias, consideradas experiências de fé e organizações populares em Canudos, celebram um novo tema. “Havia um concurso nas escolas do ensino fundamental e médio, organizado pela comissão da romaria, em que o melhor desenho era publicado para divulgar o evento, além de ganhar um prêmio em dinheiro”, traz João Batista.
Maria do Socorro Araújo lembra como eram animadas as festas do padroeiro Santo Antônio, santo de devoção dos canudenses. “As alvoradas, com fogos, cantorias e a zabumba – assim a gente chama a banda de pífanos – estão entre as melhores memórias da minha infância. Hoje, essa Canudos onde nasci está debaixo das águas do Vaza-Barris”, retoma.
Em uma conversa por um aplicativo de mensagens, Socorro compartilha uma imagem do fotógrafo Araquém Alcântara que mostra as ruínas da segunda Canudos e explica que elas vão perdendo a forma porque ficam muitos anos debaixo d’água. “Você já leu ‘As brumas de Avalon’? Sempre penso que, como na história da Távola Redonda, o último resquício de Canudos vai se perdendo nas brumas…”, encerra.
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