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A pandemia longe dos pais para filhos de profissionais da saúde

Um menino branco, cabelos lisos e castanhos com franjinha, está sentado à beira de uma janela, com olhar triste.

Filha de uma obstetra e de um anestesiologista, Clara, 6, foi levada para a casa dos avós em março de 2020, quando surgiram os primeiros casos de covid-19 em Pernambuco. A família acreditava que passaria separada por apenas alguns dias. Mas, com a perpetuação da pandemia, o fechamento das escolas e a mudança na rotina profissional dos pais, Clara só retornou para casa em fevereiro de 2021. 

Da confirmação do primeiro caso de covid-19 no Brasil, em 26 de fevereiro do ano passado, até o dia 12 de junho deste ano, 550 mil profissionais da saúde no país tiveram a doença, segundo o Ministério da Saúde, e 869 vieram a óbito. Ser profissional da saúde, desde então, é estar na iminência do adoecimento físico ou mental. Além de trazer uma rotina exaustiva, a pandemia reconfigurou a estrutura e a rotina dessas famílias. Por trás de muitas delas, estão crianças e adolescentes que se viram sem escola, sem a presença constante dos pais e até sem o mesmo espaço físico de moradia.

No começo da pandemia, Clara e os pais passaram três meses totalmente afastados. Foram dias sem abraços, sem contato físico, com apenas videochamadas e troca de olhares a metros de distância. “Uma semana virou duas, que viraram meses. A gente tinha que continuar trabalhando”, lembra Carolina Alves, 37, mãe da menina. Depois desse tempo, as visitas da mãe passaram a ser uma vez por semana. O primeiro abraço com o pai só ocorreu em agosto. “Eu não vou pegar coronavírus, não?”, perguntou Clara, na ocasião. 

 “Eu senti falta de abraçar meus pais. Eu tinha muita, muita saudade”

Apesar da rotina interrompida, Carolina não percebeu mudanças comportamentais na filha. “Clara sempre foi tranquila e já convivia muito com os avós.” 

A médica pode se considerar sortuda. Segundo o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), a pandemia colocou a saúde mental de 332 milhões de crianças em risco. “Há muitos filhos de profissionais da saúde que sentem medo de que algo aconteça com seus pais ou cuidadores. Por isso, é importante cuidar desse profissional, que está vivenciando a morte com frequência, com níveis maiores de estresse”, afirma a professora de pediatria da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e psiquiatra da infância e da adolescência Ana Maria Costa Lopes. 

Ainda que não haja nenhuma pesquisa científica realizada no Brasil sobre os impactos da pandemia aos filhos dos profissionais da saúde, médicos, enfermeiros e fisioterapeutas entrevistados para esta reportagem relataram mudanças de comportamento nos pequenos, que vão desde perda da afetividade até queda no rendimento escolar. Alguns deles receberam alerta de psicoterapeutas e pedagogos sobre comportamentos agressivos inexistentes antes da crise sanitária.

Arquivo pessoal

A obstetra Carolina Alves em videochamada com a filha Clara, 6. A menina, era acostumada a dormir abraçada com a mãe, conta que sentiu muita falta de abraçar os pais durante os meses em que ficou afastada deles, ambos médicos

A rotina de videochamadas durante um ano longe de casa

“Mãe, você já tomou a vacina?”, perguntou Ágatha, 8, para a mãe, Eliana Santos, 41, em um áudio no WhatsApp. Enfermeira em um consultório em Ribeirão Pires (SP), Eliana foi convocada para ir a São Paulo em março de 2020, dividir um flat com colegas e trabalhar em uma Unidade Básica de Saúde atendendo a população em situação de rua. Não tinha com quem deixar os filhos, então, a solução foi mandar Ágatha e o irmão, Pedro, 16, para a casa da avó. Pedro já voltou para casa, Ágatha ainda não.

A menina vive desde março de 2020 com a matriarca, na mesma rua da própria residência, mas não pode retornar. “Quando ela foi para lá, eu só pensava que não poderia trazer o vírus para casa, pois meus pais são idosos”, conta Eliana. A enfermeira passou dois meses em São Paulo, vendo a filha apenas por videochamada. Ela conta que, nos fins do expediente, sentava no chão e chorava. Acordava de madrugada aos prantos.

“Eu pensava que ia morrer, que não ia ver meus filhos crescerem”

Eliana tinha motivos para acreditar nisso. Segundo dados do Conselho Federal de Enfermagem (Cofen), as mulheres representam 85% de todos os casos de enfermeiros e técnicos de enfermagem que contraíram covid-19. Entre os óbitos, foram sete em cada 10. 

Enfermeiros e técnicos de enfermagem foram os que mais se infectaram e morreram por covid-19 no Brasil. São 56 mil casos e 784 mortes na categoria até o fim de maio, de acordo com o Conselho Federal de Enfermagem (Cofen).

Para tentar aliviar a saudade, mãe e filha se falam todos os dias pelo telefone. Em algumas chamadas, a menina reforça a preocupação com a saúde da mãe: 

“Mamãe, você não pode pegar covid. Mamãe, quando o corona vai embora?”

Depois de alguns meses, Eliana decidiu trazer Pedro de volta para casa, porque o filho estava passando muito tempo trancado no quarto. A preocupação dela tem sentido, pois 54% das famílias relataram que algum adolescente do domicílio apresentou sintomas de adoecimento mental, segundo o Unicef

Separada há mais de um ano da filha, Eliana aproveitou para fazer uma reforma no quarto da menina e melhorar o ambiente de estudo. Ela teme deixá-la só em casa com o irmão e não quer fazer isso enquanto não puder acompanhar as aulas de Ágatha. Mas, ao mesmo tempo, convive com uma saudade dolorosa. O primeiro abraço entre as duas só ocorreu em dezembro. “Eu não vejo a hora de tudo passar, de tudo acabar, de voltar à rotina da escola”, desabafa.

Arquivo pessoal

A enfermeira Eliana Santos está separada da filha Ágatha, 8, há mais de um ano: “Eu não vejo a hora de tudo isso passar”

Mudanças de comportamento e queda no rendimento escolar

Em um ano e dois meses, a vida de Vitor, 3, mudou três vezes. Primeiro, interrompeu a adaptação escolar, iniciada poucos dias antes de a pandemia começar. Depois, viu a mãe, a enfermeira Karina Albuquerque, 36, sair de casa para proteger a família do coronavírus. Em seguida, a mãe voltou, mas os pais se separaram. Mudou de casa novamente. No começo do ano, a escola chamou Karina e avisou que o menino estava com comportamento agressivo e desatento nas atividades. 

“A gente já tinha percebido ele mais manhoso, com medo de tudo. Se eu fosse à cozinha, ele chorava”, conta.

Desde abril, Vitor começou acompanhamento profissional. Segundo a psiquiatra Ana Maria Costa Lopes, situações de dificuldade na escola, comportamentos agressivos dentro de casa e com colegas, falta ou excesso de apetite e alterações do sono podem ser indícios de que a criança precisa de ajuda.

Arquivo pessoal

A enfermeira Karina Albuquerque, no intervalo do trabalho, em uma videochamada com o filho Vitor, 3. O menino teve mudanças de comportamento dentro de casa e na escola

Eliana também recorreu a apoio profissional quando percebeu Ágatha mudar. Vez ou outra, enquanto estava no plantão, recebia ligações da filha com dúvidas nas aulas on-line. Em processo de alfabetização, a menina não conseguia realizar as atividades. Houve um dia que Ágatha chorou, ao telefone, com medo de ficar analfabeta. Sem poder acompanhar de perto, Eliana decidiu pagar uma psicopedagoga para acompanhar as aulas virtuais da filha. 

Adoecimento mental dos pais pode impactar o equilíbrio emocional dos filhos

Oito em cada dez profissionais da saúde brasileiros tiveram algum problema de saúde mental ao longo do último ano, estima uma pesquisa realizada pelo Núcleo de Estudos da Burocracia da Fundação Getulio Vargas (FGV), com 1,8 mil pessoas de diversos setores. Apesar de estarem a mais de um ano dentro de hospitais e unidades de saúde, sete em cada 10 profissionais disseram não se sentirem preparados para lidar com a pandemia. Por outro lado, somente dois em cada 10 receberam algum tipo de suporte em saúde mental. Medo, ansiedade, cansaço e tristeza são os sentimentos mais comuns entre eles, segundo o estudo.

Se esses profissionais são também pais de crianças, eles devem acender o alerta, pois um dos principais fatores para o desenvolvimento emocional dos filhos é o estado de saúde mental dos pais. “A criança, na sua vida psíquica, espelha de forma direta o ambiente familiar e reflete o núcleo de parentalidade”, afirma a psiquiatra Ana Maria Costa Lopes. 

 

 

A vivência emocional dos pais tende a influenciar a resposta das crianças. “Pais mais ansiosos, que não têm tempo de se dedicar a entender o comportamento emocional das crianças, tendem a fazer uma hiperestimulação. A criança passa a ter referência invertida e responde de forma exacerbada diante de um problema”, diz o professor associado do Instituto de Psicologia da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e doutor em neurociência do comportamento, Neander Abreu.

O estudo Saúde mental parental e regulação emocional infantil durante a pandemia de Covid-19, realizado pela UFBA em 2020 com pais de crianças entre 5 e 12 anos, concluiu que quanto maior a ansiedade dos pais, menor a regulação emocional das crianças. A pesquisa, que comparou dados coletados perto dos 100 dias de pandemia com estudo anterior ao coronavírus, mostrou que houve um aumento dos níveis de depressão e ansiedade de pais e filhos durante a pandemia. “Isso é um alerta. Crianças que têm baixa regulação emocional, no fim da adolescência, têm maior risco de apresentar transtornos mentais”, afirma Neander.

 

 

Essa é uma das atuais preocupações da fisioterapeuta Carmen Feliciano, 41. No começo da pandemia, Carmen levou a filha Geovana, 17, para a casa da avó. A menina ficou lá por quatro meses. Voltou para casa depois que uma tia adoeceu e ficou internada na UTI em estado grave. Na mesma época, Geovana começou a ter crises de falta de ar e choro constante. A preocupação era dupla, com o baixo rendimento nos últimos anos escolares e com a exposição da mãe no hospital. 

“Como era tudo novo, eu tinha medo, mas ao mesmo tempo eu não podia preocupar a minha avó. Era angustiante não poder estar perto da minha mãe”, lembra a adolescente. Carmen contraiu a covid uma semana depois da irmã, mas de forma leve. 

Nesse período, o filho mais novo, Miguel, 6, também ficou afastado da mãe, que até hoje tem sua rotina alterada. “Minha mãe tem que sair pra trabalhar e volta tarde”, conta. A fisioterapeuta percebeu no filho uma mudança na afetividade. “Ele sempre foi de abraçar muito, sinto que hoje é bem mais retraído.” 

Como lidar com as informações e mitigar a ausência

Além do dilema da ausência dos pais, outro fator que preocupa é o que e como falar aos filhos sobre a rotina no trabalho. Entre os profissionais entrevistados pela reportagem, a solução mais frequente foi evitar contar detalhes do que vêem dentro dos hospitais e procurar explicar porque precisavam se ausentar de casa ou ter jornadas mais longas de trabalho. Ser transparente, explicam especialistas, é fundamental para evitar o descontrole emocional da criança.

De acordo com a psiquiatra Ana Maria Costa Lopes, a pandemia impôs uma situação inesperada, mas nem todas as crianças terão um transtorno de ansiedade em função dela, porém, muitas vivenciarão um estágio anterior, o de sofrimento. “O adoecimento mental é multifatorial. Se a família consegue fortalecer os fatores de proteção, as chances de adoecimento são menores”, explica. O diálogo, afirma, pode ser o marcador de diferença de como a criança irá encarar a ausência dos pais e o trabalho. “É importante explicar, em uma linguagem acessível, que a criança foi deixada com um núcleo de apoio porque os pais estão trabalhando em uma atividade que pode colocar em risco a vida delas”, explica. A criança, complementa, tem uma capacidade de resiliência capaz de responder a essas mudanças.

Foi o que a médica Juliana Castelo Branco, 32, tentou fazer quando decidiu sair de casa em março do ano passado. A solução foi deixar os filhos Fred, 5, e Joaquim, 3, com o marido. Juliana foi morar com a mãe, também médica, para proteger a família do coronavírus, e passou três meses longe dos filhos, vendo-os apenas por videochamadas. “Meu marido tinha feito um transplante há pouco tempo, então o medo era grande. Sabia que estava protegendo eles, mas foi muito ruim. Chorava demais”, conta.

Arquivo pessoal

A médica Juliana Castelo Branco foi morar com a mãe, enquanto os filhos Fred, 5, e Joaquim, 3, ficaram com o marido. A decisão foi dolorosa, mas uma forma de proteger a família

“A gente explicou porque eu iria sair de casa e eles encararam bem no começo, mas depois começaram os questionamentos. Um dia, o mais velho me perguntou [porque sairia novamente]. Expliquei que ia cuidar de pessoas que estavam ‘dodói’. Ele disse: ‘mas eu também estou dodói e você não vai estar aqui’”, lembra. Segundo a psiquiatra, para evitar que esses questionamentos e sofrimentos da criança se transformem em adoecimento psíquico, os pais devem fortalecer a rede de proteção, isto é, vínculos e momentos em comum.

Algumas formas são evitar o isolamento dentro do próprio ambiente familiar, promover a circulação de todos dentro de casa, reduzir o uso de aparelhos eletrônicos e focar em momentos juntos, encontrar – de acordo com as restrições de circulação previstas – caminhos para brincar ao ar livre com as crianças. “É importante não exacerbar a quantidade de informações e cuidar das desinformações que a criança recebe, tratar de outros assuntos e dar tempo para a criança expressar também suas preocupações”, complementa o professor Neander Abreu.

*Esta reportagem foi produzida pela Agência Retruco, com o apoio de uma bolsa de Thomson Reuters Foundation, a partir do COVID-19 Centro de Reportero sobre la Crisis-América.  A edição é do Portal Lunetas.

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