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Falta de acesso ao gás de cozinha expõe crianças a queimaduras

Uma mulher de pele negra, vestindo regata e shorts, está agachada fazendo fogo em um pedaço de tijolo, com lenha. Atrás, um menino a observa. Estão numa área externa, coberta, com pedaços de madeira e entulhos ao redor

Em uma de suas brincadeiras de criança, Cauã, 3, sentiu-se atraído pelo alaranjado das chamas que saíam do fogão à lenha. Numa questão de segundos, enquanto a avó preparava o café da manhã, a criança passou correndo perto da chaleira fervente e colocou os dedos. Por sorte, não se feriu gravemente: mas algumas bolhas surgiram ao longo da sua mão direita. 

Além da avó, o pequeno mora com a mãe, as duas tias e outros três primos. Apesar da família ter fogão em casa, os últimos anos têm sido difíceis. O gás de cozinha virou objeto cada vez mais raro no barraco que mede 2,5 x 12 metros. Atualmente, a renda da família gira em torno de pouco mais de R$500 de auxílios do governo, dinheiro que se soma ao pouco lucro obtido pela venda do sururu, molusco comum na região em que vivem, na favela Sururu de Capote, situada à margem da Lagoa Mundaú, no bairro Vergel do Lago, parte baixa de Maceió (AL).

É nesta região onde está localizado o 2º Distrito Sanitário de Maceió, responsável pela maior quantidade de atendimentos por queimaduras pelo Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu), com 28% do total de ocorrências atendidas entre os anos de 2019 ao mês de junho deste ano.

Foto: Vitor Beltrão/Portal Lunetas

Cauã, 3, já sofreu queimaduras enquanto brincava próximo ao fogo a lenha, na favela Sururu de Capote, no bairro Vergel do Lago, em Maceió (AL)

“Temos que estar atentos. A gente começa a fazer o fogo e explica que eles precisam ficar longe daqui, mas nem sempre é possível. Quando tudo aconteceu foi muito rápido. Fiquei preocupada porque poderia ter sido pior, mas graças a Deus não precisou levá-lo para atendimento médico”, relembra Marli Silva, avó do menino.

À espreita da avó, Junior, 6, observa a conversa e fala que após ter visto as bolhinhas que surgiram na mão do primo mais novo, hoje, tem mais medo do fogo. 

“Eu fico só olhando a minha avó. Não é bom mexer, porque se queimar é pior para mim. Meu primo chorou muito com a dor do fogo na mão, é perigoso”, diz.

Foto: Vitor Beltrão/Portal Lunetas

Marli Silva, avó de Cauã, coloca pedaços de madeira para fazer o fogo

Sem ter como comprar o gás ou até mesmo dispor de um fogão, a maioria das famílias que vivem na região tem como única alternativa cozinhar de maneira improvisada no fogo a lenha. Atualmente, o preço do botijão de gás na capital alagoana está entre R$74 a 85, de acordo com dados do Sistema de Levantamento de Preços da Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis. Ano passado, a média de preços variava entre R$57 e 70. Madeira de móveis antigos, pedaços de papel, garrafas PET e espumas tiradas de colchões velhos são utilizados para fazer o fogo. Juntos, esses materiais se tornam altamente inflamáveis e perigosos, principalmente para as crianças.

Maria Clara, 5, também foi vítima de queimadura. Enquanto a avó fazia o almoço, a menina correu para brincar com os primos perto do fogo na área em frente ao barraco e se desequilibrou. A panela de pressão estava há mais de 30 minutos cozinhando o feijão e acabou queimando os braços e parte da perna da pequena.

Foto: Vitor Beltrão/Portal Lunetas

A despenicadora de sururu Rosa Silva faz o fogo para cozinhar o almoço do dia. Atrás, Pedro, 8, observa a avó

“Ela passou 15 dias internada no HGE [Hospital Geral do Estado] e até hoje tem marcas no corpo. Foi uma situação horrível que a gente não esperava. Se tivéssemos dinheiro para comprar o gás, com certeza, teria menos chances disso acontecer. Vejo assim: um gás de quase R$100, um auxílio de R$150. Se tentar, uma vez por mês, comer uma carne, já é R$35 o quilo. Não tem como! Os 12 meses do ano são sempre assim, independente de pandemia”, relata Rosa Silva, avó de Maria Clara.

Dados obtidos com o Centro de Tratamentos de Queimados (CTQ) do HGE mostram que o número de acidentes com crianças de até dez anos cresceu 22% nos primeiros quatro meses deste ano se comparado ao mesmo período do ano passado, marcado pelo primeiro ano de pandemia de covid-19. Enquanto em 2020 foram 27 casos, até abril deste ano 33 crianças deram entrada na unidade de saúde. As informações também revelam que as crianças representam 40% das vítimas que precisaram de internação após sofrer queimaduras nos últimos dois anos. Esse número pode ser ainda maior, uma vez que a unidade de saúde classifica as faixas etárias de dez em dez anos, ou seja, crianças de 11 a 12 anos estão classificadas com a faixa etária de 11 a 20 anos. 

Veja, no gráfico abaixo, os últimos dados deste ano.

O cirurgião plástico do CTQ, Thiago Carvalho, explica que a maioria das crianças atendidas por queimaduras no hospital tiveram a chamada queimadura por chama direta, ou seja, o contato direto com água fervente ou líquidos quentes.

“Esse tipo de queimadura costuma causar lesões mais extensas e mais profundas [segundo e terceiro graus], com necessidade de internação hospitalar para enxerto de pele. Isso também acontece devido à situação de habitação, onde não há condições de gás de cozinha. Acidentes por escaldadura [líquido fervente] costumam acometer mais a parte anterior do corpo, especialmente tórax e abdômen”, ressalta o especialista.

Ainda segundo Carvalho, a prática de passar produtos para amenizar as queimaduras, como creme dental e manteiga, pode piorar o estado da pele e causar infecção.

“Muitas pessoas acabam passando também pó de café e plantas medicinais. Infelizmente, isso não ajuda no resfriamento da área queimada e ainda pode provocar infecção da ferida. Como primeiro passo, o que deve ser feito é tentar resfriar o local ferido com água corrente – torneira ou chuveiro – de cinco a dez minutos e, de modo algum, usar gelo, pois pode potencializar a lesão da queimadura”, explica o médico.

Além do uso do fogo a lenha representar um risco para os pequenos quanto às queimaduras, a fumaça tóxica pode causar doenças respiratórias e cardiovasculares ou até piorar doenças pré-existentes. 

Foto: Vitor Beltrão/Portal Lunetas

Com o preço do botijão de gás chegando a quase R$100, a solução para muitas famílias é usar lenha e outros materiais inflamáveis para preparar comida, o que representa um risco à saúde das crianças

O neto mais velho de Rosa, Pedro, 8, nasceu asmático e tem enfrentado muitas crises. Ele conta que tenta se afastar ao máximo quando o fogo começa a ser feito, mas nem sempre é possível. 

“Eu canso sempre. Respiro e canso. Nem sempre vem ar. Também vou ao posto para fazer nebulização. Vivo espirrando e gripo também. Às vezes, saio para brincar no momento em que estão fazendo o fogo, mas tem sempre um vizinho do lado que também está cozinhando”, conta o menino.

Fogão a lenha e aumento de doenças respiratórias

O pediatra do HGE, Marcos Gonçalves, alerta que crianças que já têm algum tipo de doença pulmonar – fibrose cística, anomalia no pulmão, asma alérgica, como é o caso de Pedro – podem ter sua condição de saúde piorada.

“A poluição causa um estresse oxidativo no pulmão, que já está sofrendo com a doença, prejudicando o órgão cada vez mais. Um estudo realizado nas Olimpíadas da China, por exemplo, apontou que a redução drástica da poluição do ar meses antes e durante o evento diminuiu bastante a visita aos hospitais devido a doenças respiratórias’, argumenta. 

Ainda segundo o médico, as consequências do uso contínuo do fogão a lenha são negligenciadas. O pediatra explica que o uso frequente desse tipo de forma de cozimento pode diminuir a expectativa e a qualidade de vida, inclusive, de bebês.

“A sujeira inspirada no ar prejudica ainda mais gestantes e bebês. Os bebês não têm o sistema antioxidante funcionando completamente para poder eliminar essa matéria inalada. Já em gestantes, o contato com essas substâncias tóxicas pode indiretamente alcançar o feto, ocasionando sofrimento fetal, devido à inalação aumentada desse tipo de poluição pela mãe. Então, a mãe vai sofrer e, consequentemente, o seu feto também”, detalha.

A doutora em Desenvolvimento Econômico pela Unicamp e professora da Universidade Federal do Alagoas (Ufal), Luciana Caetano, explica que no atual momento de pandemia, os programas de transferência de renda, a exemplo do Bolsa Família, reconhecido pela ONU em 2014 como referência mundial no combate à fome, não têm sido suficientes para suprir as necessidades básicas das famílias mais vulneráveis.

“O Programa Bolsa Família tenta cumprir esse papel, todavia, a pandemia elevou o percentual de famílias em condição de extrema pobreza. Enquanto a crise pandêmica estiver fora do controle estatal, será muito difícil restabelecer a recuperação da economia, do emprego e da renda. Só após controlar a crise sanitária, a economia terá chances de crescer, o que parece fora de nosso horizonte com o atual governo. Os governos subnacionais, por outro lado, estão incapacitados a realizarem grandes intervenções, por causa da queda de arrecadação fiscal. A saída pode estar na redefinição do orçamento de estados e municípios, suspendendo o que não é prioritário e elegendo a vida como prioridade. Quem tem fome tem pressa”, argumenta.

Segundo a pesquisadora, a nova política de preços de combustíveis e do gás de cozinha transfere uma fração importante da renda das famílias a empresários do setor.

“Infelizmente, alguns produtos têm seus preços definidos por oligopólios privados, a exemplo da carne bovina, dos combustíveis automotores, do gás de cozinha e da energia elétrica, todos com preços elevados para sustentar lucros extraordinários. Em 12 meses, o INPC [Índice Nacional de Preços ao Consumidor] registrou inflação de 7,59% em meio a uma taxa de desemprego de 14,7%, além da redução do auxílio emergencial, após três meses de interrupção. O desemprego estrutural joga à margem do consumo mais de 50 milhões de trabalhadores, dependentes da renda de outros membros da família. O resultado dessa equação é a expansão do número de pessoas abaixo da linha de pobreza, já concentradas na região Nordeste mesmo antes da pandemia”, finaliza a doutora.

A reportagem do Lunetas procurou a Prefeitura de Maceió – por meio da assessoria de comunicação da Secretaria Municipal de Assistência Social – para saber se existe algum tipo de programa ou plano que possa apoiar, de forma efetiva, as famílias que moram na região da orla lagunar e que passam por dificuldades no acesso ao gás. Em nota, a Semas informou que as famílias têm acesso aos programas de benefício de transferência de renda do Governo Federal, como o Bolsa Família e o Benefício de Prestação Continuada (BPC), mas não explicou se há algum projeto do órgão específico sobre o tema. Leia um trecho da nota abaixo:

“Temos o Programa Primeira Infância Cidadã/Criança Feliz, que atende a comunidade do Vergel do Lago. Nesse programa, são realizadas visitas domiciliares que envolvem ações de saúde, educação, assistência social, cultura e direitos humanos. O público-alvo são crianças de até três anos e suas famílias beneficiárias do Programa Bolsa Família, crianças de até seis anos beneficiárias do Benefício de Prestação Continuada (BPC) e suas famílias, além de crianças de até seis anos afastadas do convívio familiar em razão da aplicação de medida de proteção.”

Como diminuir os riscos de queimaduras em crianças

  • Mantenha as crianças longe da cozinha e do fogão, principalmente durante o preparo das refeições.
  • Prefira cozinhar nas bocas de trás do fogão e sempre com os cabos das panelas virados para dentro, para evitar que as crianças entornem os conteúdos sobre elas. O uso de protetores de fogão é um cuidado a mais para evitar que a criança tenha acesso às panelas.
  • Evite cuidar, ficar perto ou carregar as crianças no colo enquanto mexe em panelas no fogão ou manipula líquidos quentes. Até um simples cafezinho pode provocar graves queimaduras na pele de um bebê.
  • Deixe comidas e líquidos quentes no centro da mesa, longe do alcance das crianças.
  • Não utilize toalhas de mesa compridas ou jogos americanos. As crianças podem puxar esses tecidos, causando escaldadura ou queimadura de contato.
  • Não deixe as crianças brincarem por perto enquanto estiver passando roupa ou utilizando outro aparelho que produza calor, como secador de cabelo. Ao utilizá-los, desligue-os, tire-os da tomada e guarde-os longe do alcance das crianças.
  • Brinquedos elétricos podem causar queimaduras. Evite brinquedos com elementos de aquecimento, como baterias e tomadas elétricas, para crianças com menos de oito anos.

Fonte: Criança Segura

 

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