O rio seca e uma criança não pode mais manter os seus costumes ribeirinhos. As chuvas aumentam, a terra desliza, e uma criança deixa de ir à escola, porque é difícil chegar até ela ou a própria escola já não existe mais. Seja em comunidades tradicionais ou em centros urbanos, as mudanças climáticas provocam efeitos diretos, como a seca e o aumento das chuvas, mas também indiretos, como mudanças nos hábitos de consumo e produção, dificuldades de acesso à educação formal e, consequentemente, restrição das possibilidades para o futuro.
Para compreender a relação entre efeitos diretos e indiretos da emergência climática na sociedade é preciso exercitar uma visão sistêmica, como afirma a bióloga Fernanda Tibério, mestre e doutora em Ecologia, docente do Instituto Federal de São Paulo (IFSP) e alumni do Youth Climate Leaders e Amani Institute. “Os temas ambientais sempre foram tratados como ‘coisa de ambientalista’. Com a crise climática não é diferente. Escolhemos priorizar o indivíduo em detrimento do coletivo, o econômico em detrimento do ecológico. Criamos essas separações falsas”, defende.
“Não existe uma natureza lá fora, separada de nós”
A emergência climática impacta nosso estilo atual de vida, exigindo mudanças comportamentais – em especial no modo de consumo – e também novas diretrizes para o bem comum. Além disso, essa crise já está afetando e afetará ainda mais os modos de produção, alterando a relação dos indivíduos com o trabalho, e encerrando determinadas atividades ou impulsionando o surgimento de outras.
Uma pesquisa inédita realizada pela Fiocruz na Região Amazônica demonstra que sua suscetibilidade a eventos climáticos extremos pode também diminuir o potencial de pesca e da produção agrícola, interferindo na segurança alimentar das populações que vivem na região.
Kunhate Uru Eu Wau Wau, 19, do povo Uru Eu Wau Wau, em Rondônia, tem uma filha de 5 anos e relata, com preocupação, a impossibilidade de pescar e de se banhar quando o rio seca, um fenômeno cada vez mais frequente. Além disso, diz ser muito triste imaginar que um dia o lugar onde ela nasceu e cresceu pode deixar de existir.
“Eu gostaria de poder mostrar para a minha filha a floresta onde eu cresci e onde agora ela também está crescendo. Gostaria de apresentar para ela os costumes do nosso povo”
O que tudo isso tem a ver com a educação de crianças e adolescentes?
De acordo com o estudo “Climate change and educational attainment in the global tropics” (“Mudanças climáticas e desempenho educacional nos trópicos globais”, em tradução livre), publicado em 2019, quando uma criança passa a viver em situação de insegurança alimentar, em decorrência dos efeitos das mudanças do clima – como o fato de a região em que habita sofrer com a estiagem e, por sua vez, com a escassez de alimentos -, ela terá o seu desenvolvimento cognitivo e físico limitado, com prejuízos no rendimento escolar.
O mesmo relatório citado anteriormente aponta que o número de anos que uma criança frequenta de educação formal está relacionado à sua exposição a altas temperaturas ou a chuvas em excesso. Na região da América Central e do Caribe, por exemplo, quanto maior a exposição a chuvas, menor o tempo de ensino.
Uma possível correlação está associada aos problemas econômicos gerados na localidade, o que pode diminuir a renda familiar e inviabilizar o investimento educacional ou ainda impulsionar famílias a direcionarem seus filhos e filhas ao trabalho – antes de completarem os estudos – para contribuir com a renda da casa. Em casos como esse, Fernanda alerta para a maior vulnerabilidade em que as meninas se encontram. “As meninas tendem a sofrer mais esses impactos, pois elas são as primeiras a serem retiradas da escola para cuidar da casa e da família.“ Elas ainda ficam mais passíveis a serem vítimas de casamento infantil, tráfico de menores, exploração e abuso sexual.
Ainda que todas as crianças sejam impactadas pelos efeitos da crise climática, nem todas o são da mesma forma. Pensando na possibilidade de mitigação dos efeitos negativos às múltiplas infâncias, é importante aguçar o olhar para identificar quem são os públicos mais afetados e por quê.
De acordo com a ecofeminista e advogada Marina Marçal, coordenadora do portfólio de política climática do Instituto Clima e Sociedade (iCS), as mudanças do clima afetam majoritariamente crianças periféricas, amazônicas, negras e pobres – justamente aquelas que moram em áreas de maior risco ambiental. “São crianças que lutam para que os indicadores sociais de onde moram não determinem o seu destino. É importante perceber que a premissa do artigo 225 da Constituição Federal, que diz que todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, não funciona de maneira igual para todas as crianças.”
Um estudo publicado este ano pelo Unicef mostra que as taxas de abandono escolar nos territórios do Semiárido brasileiro e, em especial, da Amazônia Legal brasileira, além de algumas áreas igualmente afetadas pelos fenômenos da seca nos estados de Minas Gerais e de Espírito Santo, são superiores às médias nacionais, caracterizando um desafio importante às políticas públicas educacionais.
Marina aponta que o olhar interseccional, que consegue identificar quais são as crianças mais expostas aos efeitos da crise climática, possibilita o planejamento de políticas públicas específicas, levando em conta território e questões identitárias.
As vantagens de um dia de aula
Na Ilha de Cotijuba, no Pará, o professor de artes Murilo Rodrigues não mede esforços para incorporar a realidade ribeirinha em suas aulas. “Eu me lembro de uma aula em que levei um conto sobre desmatamento. Durante a troca de ideias, um aluno relatou, com tristeza, que o pai havia derrubado uma árvore para construir uma ponte que pudesse dar acesso da sua casa à margem do rio, viabilizando o deslocamento deles. Isso me marcou profundamente.”
Esse momento, segundo o professor, foi fundamental para que ele pudesse explicar às crianças o quanto a vida delas está conectada com a natureza e que aquele ato individual do pai do aluno não era desmatamento. Foi também uma oportunidade para apontar a diferença entre as dinâmicas de quem vive na área rural e consumirá os seus recursos de modo controlado e as relações comerciais sem limites, desempenhadas por corporações e pessoas que não vivem lá.
Ele também conta sobre casos de crianças que passam dias sem ir à escola por medo de acontecer alguma fatalidade no percurso fluvial de casa até lá. “A força da correnteza fica tão forte que pode derrubar as crianças, em especial na hora do embarque ou desembarque do barco.”
De acordo com Matheus Rangel, oficial de educação do Unicef, conforme eventos como esses vão se tornando corriqueiros, eles podem trazer traumas às crianças e enfraquecer seus vínculos tradicionais.
O professor Murilo aponta que, ao contrário de outras localidades, as comunidades ribeirinhas não possuem amplo acesso à telefonia e internet. Ou seja, não é possível repor aulas pelo ambiente virtual, por exemplo. Os prejuízos são incalculáveis quando se compreende que a escola é também um espaço para construção social.
“A escola é um território de encontros, de troca de saberes e de afetos”
“A escola não é um depósito de conteúdo, mas um espaço para o olho no olho, para o contato com o mundo que não é o seu, onde se aprende a respeitar a diversidade”, afirma o professor.
A importância da educação ambiental
Se por um lado o acesso à escola é afetado pelas mudanças climáticas, é nela também que está um dos caminhos para a transformação.
De acordo com o relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), a principal causa das mudanças do clima está associada ao nosso modelo de sociedade, pautado no consumo e na dependência de combustíveis fósseis. A irresponsabilidade de nações ao não assumirem posturas mais rígidas na redução de gás carbônico, o que pressionaria grandes corporações a um reajuste de produção, sustenta um padrão que, na verdade, já se provou insustentável. É importante lembrar que por trás de grandes corporações e departamentos governamentais estão também pessoas. Por isso, os esforços da educação ambiental em nível interpessoal permanecem válidos e devem se traduzir em decisões de mudança estrutural.
Nesse sentido, Fernanda Tibério acredita que trabalhar a emergência climática por uma perspectiva integral da vida, pautada nas filosofias africanas e indígenas – as quais reúnem saberes tradicionais apontando para uma conexão entre humanidade e natureza e o bem viver coletivo – pode ressignificar a educação e o que ela gera de transformações sociais a partir de crianças e jovens. “As mudanças climáticas podem ser trabalhadas em sala de aula para estimular a utilização dos conhecimentos escolares no enfrentamento social, no posicionamento crítico e na resolução de problemas.”
De acordo com o Programa Nacional de Educação Ambiental (ProNEA), a educação ambiental deve contribuir para a construção social do cidadão, ampliando seu senso crítico para buscar soluções sustentáveis para uma vida em sociedade. Apesar de o Brasil apresentar uma política nacional nesse sentido, por meio da Lei Federal 9.795/1999, o país ainda não a incorpora de forma transversal no currículo escolar.
Marina Marçal explica que, pela lei, além da transversalidade no currículo escolar, a educação ambiental também deveria extrapolar o ensino formal. “É muito importante que sejam criadas dinâmicas para envolver familiares e crianças nesse processo de aprendizagem e busca de soluções para a questão climática.” A representante do iCS acrescenta que as crianças podem ainda engajar as famílias ao serem “multiplicadoras desse conhecimento em seus lares”.
Segundo o relatório “O que fazem as escolas que dizem que fazem Educação Ambiental”, a escola poderia ser peça-chave nessa conexão, trazendo a educação ambiental para o cotidiano da comunidade. Mas, dados do Censo Escolar 2004 revelam os desafios dessa articulação. Somente 8,8% das 152 mil escolas que, na época, ofereciam educação ambiental contavam com a participação da comunidade na manutenção das hortas escolares, por exemplo.
A Organização Internacional do Trabalho (OIT) estima que até 2030 a crise climática poderá provocar a perda de 80 milhões de empregos, prioritariamente em países pobres. Nesse sentido, a educação ambiental, com foco na educação climática, é fundamental no processo de transição para uma economia verde – movimento necessário se quisermos visualizar um futuro possível.
Preocupado com o desenvolvimento crítico de seus estudantes, o professor Murilo aponta que, em sala de aula, não se pode cair em um discurso ingênuo de que “se cada um fizer a sua parte, vamos salvar o planeta”. Para ele, os estudantes precisam entender que uma atitude individual é importante, mas, para ocorrer efeitos positivos em grande escala, é preciso uma mudança no modelo de sociedade que temos.
“Não se pode pensar em soluções isoladas para um problema que é sistêmico”
“Dessa forma, os estudantes precisam ser questionados sobre o sistema em que estão inseridos. O mesmo modelo capitalista que lhes vende uma proposta de vida de sucesso é o mesmo que destrói os seus lares”, provoca o professor.
Leia mais
Segundo o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), o número de crianças deslocadas por fenômenos climáticos extremos no Caribe aumentou quase seis vezes, entre 2014 e 2018, quando 761 mil crianças foram deslocadas internamente – entre 2009 e 2013, este índice era de 175 mil. O deslocamento forçado expõe famílias a situações de vulnerabilidade e violências, além de interromper a vida escolar das crianças e os vínculos afetivos construídos no local de origem.