“Se a empatia tivesse vida, ela seria os olhos da infância“. Esta é uma das frases que compõem o Manifesto pela Empatia, criado pela organização social Carlotas. E é também com esse mote que o projeto entra nas escolas para debater o assunto com as crianças. No dia 11 de setembro, uma terça-feira fria e ensolarada de inverno, a EMEF (Escola Municipal de Ensino Fundamental) Infante Dom Henrique, localizada no Canindé, zona norte de São Paulo, foi uma das instituições escolares a receber a iniciativa, para o que seria a continuidade de um trabalho que a organização vem realizando com os estudantes.
Carlotas é uma organização social fundada por Carla Douglass, Carla Scheidegger e Fabiana Gutierrez, com o objetivo de difundir a importância da empatia na formação do indivíduo, que utiliza a educação lúdica para expandir o entendimento sobre diversidade e respeito. Elas fazem workshops que ensinam as pessoas a ter uma vida mais empática e conectada com a humanidade de cada um de nós. Nas escolas, as atividades são pensadas para desenvolver as habilidades socioemocionais, tanto crianças e dos jovens, quanto dos professores e de toda a comunidade escolar.
Passava um pouco das 9h30 da manhã quando o Lunetas chegou ao espaço para acompanhar a atividade da Carlotas. A energia das crianças brincando e confraternizando no recreio indicava que o dia delas já havia começado há muito tempo. Não demorou para que a sala começasse a ser ocupada por olhares curiosos do que aconteceria ali: “Que horas começa, pro?“, pergunta uma garota encostando metade do corpo no batente da porta.
Assista ao vídeo:
Em 2017, a instituição recebeu o convite da Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura) para participar de um programa mundial de escolas associadas. Todas as escolas ligadas à Unesco compartilham um calendário de atividades comuns relacionadas aos direitos humanos. No caso da EMEF Infante Dom Henrique, essa preocupação está declarada já nas suas paredes, tomadas por lambes com frases de resistência. Quem entra na escola, se depara com um mural colorido que ocupa uma parede toda da recepção, e traz rostos estilizados de diferentes etnias e culturas. Ao lado do quadro, que é uma criação da artista chilena Verónica Ytier, os dizeres: “Por uma escola pública inclusiva”.
Conduzida pela educadora Gabriela Treteski, a atividade contou com a presença de crianças de oito a 15 anos, em sua maioria imigrantes. Historicamente, a Infante Dom Henrique é conhecida por receber muitas crianças imigrantes de diversos países, sobretudo bolivianas – 23% de um total de 562 estudantes são de outro país, sendo que 90% dessas são da Bolívia. Há também uma minoria de países como Angola, Nigéria e China, conforme nos contou o coordenador pedagógico da escola, Carlos Eduardo Fernandes.
Por isso, a instituição começou um trabalho para combater a xenofobia e o bullying, debatendo os impactos do preconceito étnico e cultural. O programa Escola Apropriada, que existe desde 2012, se pauta pela cidadania e os direitos humanos atrelados à educação, e reúne estudantes a cada 15 dias que os alunos imigrantes compartilhem suas histórias. Naquele dia, havia muitos desses estudantes.
Filhos de pais que migraram de países como Marrocos, Síria, Peru e Colômbia, os pequenos puderam compartilhar suas percepções sobre um tema que se conecta de perto com a reflexão sobre empatia na escola: religião. A ideia do tema veio dos próprios alunos, que percebem na escola um espaço fértil de diálogo sobre o tema. A Infante Dom Henrique possui uma profissional focada em mediação de conflitos, que também é muçulmana, o que facilita a aproximação dos estudantes com o assunto.
A palavra “religião” vem do latim ¨religare¨, e tem o significado de “religação”
A proposta foi praticar uma escuta ativa das curiosidades e possíveis receios dos estudantes em relação ao assunto. Assim, tudo começou com uma brincadeira de reconhecimento de imagens. A partir de algumas cartas ilustradas, cada um poderia adivinhar o que o outro pensou sobre a imagem que via ali. A ideia era estimular a pensar sobre como construímos as nossas referências de mundo. Em palavras mais simples: por que pensamos do jeito que pensamos?
A partir daí, Gabriela adentrou o tema do encontro. As crianças foram convidadas a montar uma espécie de quebra-cabeças sobre as religiões do mundo, encaixando informações como origem, países praticantes, número de adeptos e símbolos religiosos. A maioria não teve grande dificuldade para preencher a linha do cristianismo, que rapidamente teve suas peças encaixadas corretamente. Porém, com as outras práticas, a familiaridade era quase nenhuma, como por exemplo o budismo, cujo símbolo (a chamada “Roda da Lei”, ou “Dharmachakra”, em sânscrito, que representa o ciclo de morte e renascimento ao qual todo ser está ligado) poucos conheciam.
Por que algumas religiões são mais conhecidas que outras, mesmo que não sejamos praticantes dela? Essa foi a pergunta que ficou no ar naquele momento, favorecendo a reflexão dos estudantes sobre a hegemonia de algumas religiões sobre outras. “
“Muitas vezes, o preconceito está pautado no desconhecimento”, diz Gabriela.
E foi desse mapeamento coletivo das religiões que cada criança teve seu espaço para comentar sua própria prática – ou a ausência dela, no caso de famílias ateias. Por se tratarem de filhos de imigrantes, a diversidade religiosa era grande na sala. Muitas eram muçulmanas, outras evangélicas, algumas católicas, e havia também adventistas.
As crianças relembraram costumes, preceitos e rotinas comuns de suas religiões, como o Ramadã, o chamado “mês sagrado” do islã. No nono ano do calendário islâmico, os muçulmanos jejuam durante o dia, rezam e celebram o livro sagrado Corão. O pequeno Mohamed Sarya Ghazi, de 11 anos, explicou em suas próprias palavras o que ele entende da prática: “É quando a gente fica sem comer para ver como é estar na pele das pessoas que passam fome”.
Para ele, a definição de religião também é bastante simples: “É onde a gente reza e pede perdão quando faz algo errado”.
O que ficou latente nas crianças durante a oficina é a naturalidade que elas têm de falar sobre integrar, respeitar e celebrar o fato de que somos todos diferentes. Quando colamos essa naturalidade ao assunto discutido na atividade do projeto Carlotas, foi possível perceber como os preconceitos que construídos muitas vezes estão ligados a uma ideia cristalizada que fazemos das coisas, sem olhar verdadeiramente para elas e sem conhecê-la de fato.
Na fala do estudante Mohamed, que veio da Síria para o Brasil com a família há três anos, isso aparece com força. “Na minha prática, não pode maltratar ninguém, eu não entendo por que fazem isso”. O desejo do menino é que respeitem sua religião, e parecem de associá-la ao terrorismo.
“O medo e a discriminação nascem desse espaço de desconhecimento daquilo que é diferente, e a nossa ideia foi abrir o diálogo”, explica Fabiana, do Carlotas.
“Porque o outro vem de uma história que não é a minha, mas que eu posso aprender a respeitar”
“E ser brasileiro, é religião?”, provocou Gabriela. As crianças se entreolharam, e a resposta veio logo. “Não. Tem que tomar cuidado. Porque se uma pessoa entra em um país, não quer dizer que está entrando naquela religião“, diz uma das crianças.
Medir o impacto de uma atividade como essa requer acompanhamento e observação atenta da relação entre as crianças e os jovens. Contudo, o que se pode dizer sem medo de errar é que as crianças saem diferentes de como entraram.
Quando o Lunetas perguntou aos participantes da oficina o que sentiram durante a atividade, alguns sentimentos comuns apareceram. Alívio era um deles. “Eles não sabem nada da Síria, mas está melhorando”, diz Mohamed. “Eu achei boa a atividade para as pessoas se olharem e ver como cada um é, ninguém julgar ninguém. Eu sou brasileiro, o outro é boliviano, eu não vou parar de ser amigo dele”, explica Gustavo André dos Santos, de 11 anos.
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A Escola também foi vencedora do Criativos da Escola 2017, com o projeto “Sí, yo te entiendo!”. As estudantes descendentes de bolivianos Thais Jaimes Lopez e Jaqueline Clara Larico Huanca, ambas com 12 anos, e Mariana Victoria Calle Quispe, de 13 anos, deram aulas de espanhol para os estudantes brasileiros do 5º ao 8º ano. As aulas envolviam jogos, brincadeiras, produções audiovisuais e músicas, buscando sempre a divulgação da cultura boliviana. Conheça aqui!