Em áreas próximas aos garimpos na Amazônia, a vida de crianças corre risco desde o ventre. Nesses locais, mulheres grávidas estão expostas à contaminação por metais que podem afetar diretamente seus bebês. Um dos mais perigosos é o mercúrio, que contamina os rios e compromete a saúde de toda a população. Mas o medo das mulheres se sobressai: “A gente não quer ter mais filhos, porque temos mercúrio no sangue. Nós estamos contaminadas”, diz Aldira Munduruku, cineasta residente na terra indígena Sawré Muybu, no Pará.
O relato de Aldira durante o Climate Story Lab, em novembro de 2021, revela uma das faces mais cruéis do avanço do garimpo na Amazônia: a contaminação por mercúrio e seus efeitos na saúde humana desde o nascimento, deixando marcas para a vida toda. É o que mostra uma pesquisa sobre o impacto do mercúrio na saúde de populações indígenas, desenvolvida pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) em parceria com outras instituições. Publicado em 2020, o texto com os resultados preliminares aponta altos índices de contaminação em três aldeias do município de Itaituba, no oeste do Pará: uma em cada três crianças com menos de cinco anos apresenta níveis de mercúrio seis vezes maiores do que os considerados aceitáveis por agências de saúde reconhecidas internacionalmente.
Os efeitos da contaminação em mulheres grávidas são ainda mais preocupantes. Isso porque o metal pode ultrapassar a barreira placentária e atingir o cérebro do feto, causando danos irreversíveis, como perda de audição, déficit cognitivo, retardo no desenvolvimento e malformação congênita. A evidência do comprometimento no Quociente de Inteligência (QI) das crianças em formação no útero de suas mães, por exemplo, dá dimensão do risco que as mulheres grávidas e suas crianças estão submetidas, quando se encontram contaminadas por mercúrio. “Em outras palavras, pode haver o comprometimento de uma geração inteira de pessoas que vivem na Amazônia, caso nada seja feito pelas autoridades brasileiras”, destaca um trecho do estudo.
As terras indígenas pesquisadas dependem do rio Tapajós para a subsistência. Itaituba fica na região do médio Tapajós, parte do rio que é afetado pelas atividades garimpeiras. Alessandra Korap, liderança Munduruku da região e coordenadora da Associação Indígena Pariri, que abarca 11 aldeias de Itaituba, confirma os danos da contaminação. “A gente vê mulheres perderem seus filhos espontaneamente e casos de mulheres terem filhos que nascem com problemas. Às vezes eles nem sobrevivem.”
Segundo ela, os moradores sabem que a contaminação ocorre principalmente pelo consumo de peixes, já que o mercúrio despejado no rio Tapajós adentra a cadeia alimentar de peixes e depois chega à mesa das famílias locais. “O metilmercúrio é um metal pesado e fica lá no fundo, nas plantas, e os peixinhos vão comendo. Peixes maiores, como o surubim, a pescada, o tucunaré, comem os menores e daí ficam todos contaminados. Quem consome esses peixes somos nós”, explica.
No estudo, a faixa etária de 1 a 5 anos de idade marca o início da maior incidência de contaminação, já que coincide com o momento em que essas crianças deixam de se alimentar exclusivamente do leite materno e passam a comer os mesmos alimentos consumidos pela família, o que inclui os peixes vindos do rio contaminado.
A recente mudança nas cores do rio Tapajós, nos trechos de Itaituba até Santarém, chegando a Alter do Chão, está sendo investigada pela Polícia Federal. A atividade ilegal do garimpo é a principal suspeita, responsável pelo despejo de 7 milhões de toneladas de rejeitos no rio Tapajós por ano, segundo a PF. “No inverno, o rio fica amarelado. No verão, ele fica verde, limpinho. Mas, desde 2019, quando a gente sobe o Tapajós, ele já está branco. Os garimpeiros enfiam aquelas dragas de ferro e vão furando o rio lá no fundo, espalhando a lama. Eu não consigo olhar porque aquilo está fazendo mal à saúde, à natureza”, conta Alessandra, que luta a favor da preservação ambiental.
Crianças e mulheres em idade fértil são grupo de risco
Na comunidade Vila Nova, em Rio Grande, no Amapá, as mulheres estão expostas ao mercúrio diariamente, por trabalharem diretamente com a extração ou por serem casadas com garimpeiros. Muitas famílias do vilarejo têm o garimpo como fonte de renda há décadas; outras vivem de subsistência pescando nos rios.
Vila Nova foi um dos locais pesquisados no mais recente estudo que analisou a contaminação por mercúrio em mulheres de quatro países da América Latina onde há garimpo. O resultado apontou que as participantes de 18 a 44 anos excedem o limite de 1 ppm (partes por milhão). Isso já comprometeria a gestação, pois o nível médio de mercúrio encontrado nas amostras de cabelo foi de 2,98 ppm e o nível mais baixo para causar efeitos sutis nos fetos é de 0,58 ppm.
“Essas mulheres estão mais expostas à contaminação por causa da manipulação direta do mercúrio no garimpo ou pela respiração. É muito comum apresentarem sintomas de perda de equilíbrio, tontura, coordenação, problemas neurológicos de leves a graves”, explica Decio Yokota, pesquisador e um dos coordenadores do Instituto de Pesquisa e Formação Indígena (Iepé), que apoiou o estudo no Amapá realizado pela Rede Internacional de Eliminação de Poluentes (International Pollutants Elimination Network) e Biodiversity Research Institute (BRI).
Principais sintomas de intoxicação por mercúrio
Fetos em formação:
- comprometimento neurológico
- perda de QI
- danos aos rins
- danos ao sistema cardiovascular
Adultos e crianças:
- tremores
- insônia
- perda de memória
- alterações neuromusculares
- dores de cabeça
- disfunções cognitivas e motoras
Fonte: Exposição de mulheres ao mercúrio da mineração de ouro em países latino-americanos
O principal grupo de risco apontado nesta pesquisa são as crianças e as mulheres em idade fértil. “As crianças são mais suscetíveis pois a quantidade de contaminação por massa corporal faz muita diferença. Elas estão no processo de formação do sistema nervoso central, no qual o mercúrio tem efeito nocivo. Já as mulheres são o ponto crítico por darem à luz. O feto em formação vai ser exposto à quantidade de mercúrio que está no corpo da mãe imediatamente”, alerta Decio.
Apesar do reconhecimento do Conselho de Direitos Humanos, da ONU, sobre garantir um meio ambiente limpo e sustentável, as pesquisas mostram outra realidade. No cenário das invasões dos territórios tradicionais para a exploração de minério, crianças correm risco antes mesmo de chegarem ao mundo. A poluição ambiental por mercúrio e outros tipos de metais pesados deixa marcas por muitos anos. “É um mal silencioso. Antigamente se usava chumbo na gasolina e, hoje, por causa das pesquisas, já sabemos o efeito dele na população. No caso do mercúrio, como a contaminação é ampla, os sintomas se estendem”, conclui Decio.
A ação ilegal do garimpo e a ameaça a territórios indígenas são alguns dos temas tratados na série “Aruanas”, produzida pela Globoplay, e assinada por Estela Renner e Marcos Nisti. A produção mostra a luta de três ambientalistas para denunciar e combater crimes ambientais, como a devastação da floresta, a poluição do ar e de rios, e os avanços do garimpo na Amazônia. A segunda temporada aborda outra faceta da exploração mineral: o rompimento de barragens de rejeitos, a criação de uma CPI e a movimentação nos bastidores do Congresso para isentar impostos de grandes empresas de exploração de petróleo, levando as protagonistas a investigarem as questões ligadas ao licenciamento destas empresas em áreas preservadas.
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Nesta animação, o menino José, membro de uma comunidade de pescadores da Amazônia, ensina de onde vem o mercúrio e quais os danos que pode trazer à saúde. Ele também compartilha quais são as espécies de peixes mais seguras para serem consumidas.
O vídeo, produzido pela Frankfurt Zoological Society do Peru, foi traduzido e adaptado pelo Instituto Iepé.