O ano letivo de 2020 não aconteceu na escola e transformou-se em um período de violento isolamento às crianças e suas famílias. Para alguns, a escola chegou via ensino remoto e, para a maioria, a escola permaneceu fechada.
Um ano nada novo começou e, em 2021, a escola abriu um pouquinho: teve muita criança que entrou correndo e sem olhar pra trás (elas estavam com muita saudade), e teve criança que nem conseguiu sair de casa (elas estavam com muito medo). É preciso dizer também que teve criança que não tinha mais matrícula regularizada.
Antes que a gente pudesse lidar com tudo que esse acontecimento colocou em jogo, a escola fechou de novo. Fechou em resposta à maior crise sanitária da história do Brasil, fechou sem que os trabalhadores da educação soubessem quando seriam vacinados, ou qual o seu lugar na fila de prioridade. Fechou sem que o país sustentasse a urgência de uma política de isolamento para conter a escalada de mortes, e sem um plano nacional de vacinação viabilizado. A escola fechou.
Já falamos um bocado sobre os aspectos técnicos dessa questão e sobre as lições que as crianças nos deram no curso dessa crise: já discutimos e rediscutimos a centralidade da escola na nossa organização social, seu lugar, seu mandato. Já falamos bastante sobre a função da alternância e a vida em alteridade, sobre as conexões possíveis e impossíveis da vida digital e sobre a segregação e patologização das infâncias nesse contexto. Gente séria e competente indicou caminhos para construirmos saídas, como aquele apresentado pelo manifesto “Ocupar escolas, proteger pessoas, recriar a educação”.
O que chama a atenção é que, ainda assim e de novo, insiste-se no entendimento de que essa discussão não pode ser pensada politicamente. E me pergunto como vamos enfrentar essa discussão sem assumir seu caráter eminentemente político.
A importância da escola não está acima das práticas políticas como uma certa moralidade propõe. Ao contrário, o lugar da escola, na sociedade, nasce de uma decisão política.
É isso que o “Levantamento internacional de retomada das aulas presenciais”, realizado pelo Vozes da Educação mostra: entre os países analisados, os que tiveram a reabertura da escola avaliada como satisfatória são também os que estão entre os 24 primeiros colocados no Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (Pisa). Ou seja, um país que atribui alto valor à educação é um país que assume a posição política de sustentar as condições necessárias para a realização do mandato da escola, em todos os seus níveis de ensino, a qualquer tempo.
Se esse fato é assim tão evidente, resta uma pergunta: por que evitar nomear o caráter político dessa discussão? Aqueles que sustentam essa opinião parecem querer evitar que seus argumentos sejam associados com essa coisa que entendem ser “suja” (a política), temendo perder adesões e força (que aliás, é política) nesse debate.
O que aconteceu conosco para que a palavra “política” se tornasse um termo pejorativo? Por que o nosso entendimento sobre o campo político está tão comprometido? A resposta é tão simples quanto complexa.
“Sofremos da falta de educação política, e é ela que faz parte da construção da cidadania”
Isso quer dizer muitas coisas e, entre tantas, diz que nos falta educação política nas escolas, ou seja, estamos perdendo uma oportunidade preciosa de educar pessoas (crianças incluídas, evidentemente) que sabem da importância e do valor dos direitos civis, sociais e políticos para serem cidadãos.
Reduzimos política à política praticada pelos partidos porque não aprendemos na teoria, e não exercitamos na prática, a compreensão da política como o sistema que sustenta nossa participação no espaço público. Quando o argumento para “não politizar” a discussão ganha espaço, a função da escola fica comprometida, porque é fundamentalmente política a regulação que torna possível (ou não) sermos diferentes e convivermos no mesmo tempo e no mesmo espaço, em uma mesma cidade (pólis). Trocando em miúdos:
É a política que propõe qual escola teremos e construiremos, simplesmente porque a escola não se destaca da cultura que a produz.
Fica mais fácil entender isso quando nos damos conta de que as políticas para a infância podem ser inclusivas e equitárias, como é o caso da Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva (PNEEPEI), ou podem ser excludentes, como o recente veto presidencial à proposta de democratização de acesso à internet para professores e alunos da educação básica.
No curso de uma emergência sanitária, a decisão sobre o momento de abrir ou fechar escolas, sobre o seu modo de funcionamento e o seu alcance, assim como a decisão sobre os conteúdos aos quais a escola dará acesso ou, ainda, se terá a disposição necessária à diversidade da experiência humana, cada um e todos esses pontos refletem posicionamentos políticos. Porque esses pontos dizem como a cidade vai funcionar, e implicam uma escolha sobre o que pode e o que não pode, o que é incentivado e o que é coibido no espaço público.
As políticas para a infância são, como o seu nome diz, políticas.
A discussão é política, assim como é política a necessidade de que as demandas de cuidado com as infâncias não sejam violadas a cada eleição.
Passamos boa parte do ano de 2020 debatendo a recriação da escola para que pudesse receber as crianças. Era preciso mexer no espaço físico, decidir prioridades e possíveis usos, fazer rede, repensar seu funcionamento. Essa é uma discussão política, em todos os seus termos, uma vez que cada escolha feita encaminha um tipo de compreensão diferente de mundo.
Foi possível produzir e distribuir vacina contra um vírus letal em 10 meses, e, nesses mesmos 10 meses, o governo brasileiro não conseguiu repensar modelos e formas para a vida escolar das crianças e dos jovens. Não estaria aqui em jogo a tal “vontade política”?
Outra pergunta: como têm sido interpretadas as dificuldades enfrentadas pelas crianças e por suas famílias, nesse tempo sombrio e violento que atravessamos? Nas conversas sobre a vida das crianças em isolamento social, os fatores de estresse foram constantemente referidos. Fala-se de estresse, ou de qualquer outro termo análogo, para nomear o insuportável e o mal-estar no sujeito; fala-se em estresse como a causa central ou principal de alterações de comportamento; alguns falam também de “complicações emocionais”, e todos alertam para os danos sobre o desenvolvimento.
Psicólogos, médicos e educadores foram entrevistados pelos mais diversos veículos de informação para ajudar as famílias a lidarem com os fatores produtores de estresse nas relações e “preservar a saúde mental” e o desenvolvimento das crianças. Foram produzidas muitas instruções para serem seguidas dentro de casa: organize o tempo, cumpra uma rotina, brinque, converse, cozinhe junto e com alegria, conte história, ofereça alternativas analógicas para as crianças, se acalme.
Foram tantas as palavras de ordem, que viraram senso comum, mas, o grande problema é que essas e outras dicas se tornaram imperativos e deixaram, na conta das famílias o ideal de cuidado a ser conquistado, tirando a responsabilidade de todas as outras instituições, incluindo o Estado, na construção do cuidado na crise e suas situações emergenciais. É assim também que, como diz a jornalista Renata Cafardo em sua coluna que “passam a boiada no MEC”, fazendo a família idealizada cumprir as funções do Estado, e descartando políticas públicas que possam dar suporte às mais diversas formas de família e situações de vulnerabilidade: “A meta traçada pelo Governo Bolsonaro na educação é aprovar o ensino domiciliar ainda no primeiro semestre”, afirma.
Mais rara, porém, foi a discussão que apontasse para o tipo de vida que levamos e para os modos de tecimento do laço social que nos trouxeram até aqui: são eles que imperam na constituição do sofrimento vivido pelas crianças na atual crise sócio-sanitária mundial. Pouco se discutiu sobre a forma de gerir o sofrimento, que, em poucas palavras, deixa uma experiência (politicamente determinada) na conta de cada um. Esse é um movimento contemporâneo, que tem a função de evitar a crítica política e, para isso, usa a estratégia de patologizar a vida e o sofrimento individual.
O fato é que as infâncias, perspectivadas em diversidade e cada uma em sua particularidade, sempre demandaram o tecimento de redes de cuidado.
Essas redes, guardadas as variações culturais, se constróem no interior das famílias, com suas redes de apoio, e também na relação das famílias com a escola, da escola com seu território, e em todas as combinações possíveis dessa teia tão fundamental.
O que as crianças demonstraram, com muita força nesse instante, foi a multiplicidade de sentidos que condicionam a verdade daquele provérbio africano, tantas vezes citado nesses últimos meses: para cuidar de uma criança, é preciso uma aldeia. E é mesmo.
Aldeias são as redes de afeto e apoio contemporâneas, são os enganches comunitários, são laços regidos pela ética do cuidado. Aldeia, em política pública, quer dizer rede de cuidado e de proteção social como prioridade governamental. É como diz a pedagoga Maria Thereza Marcílio: lugar de criança é no orçamento.
Entre esses e outros diferentes sentidos, e entre as diversas formas de laço instituídas numa aldeia, a particularidade da experiência de cada criança em quarentena fez aparecer uma modalidade específica de laço que se apresentou como falta: o encontro entre crianças. Com o passar do tempo em isolamento, fomos escutando, cada vez com mais nitidez, que aquilo que adultos fazem por e com uma criança, não substitui e nunca entra no lugar do que uma criança pode fazer por e com outra criança. Nem o melhor pai, mãe, avó, avô, educador, profissional de saúde, de assistência social, especialista em infância… nenhum adulto é capaz de fazer a vida pulsar como acontece no encontro entre crianças.
As crianças conhecem formas de se relacionar com a experiência da vida e de lidar com isso que são diferentes daquelas que operam para um adulto. Para os adultos, a experiência se faz registrar com outras condições e variáveis. É o encontro entre pares, que podem se interrogar e se acompanhar, nesse tipo de laço tão constitutivo e necessário que se dá nas fraternidades – isso, um adulto não pode oferecer a uma criança.
São essas as políticas da infância que precisam ser consideradas quando desenhamos políticas de cuidado para a infância.
Entre si, as crianças compartilham suas formas de ler o mundo. As crianças, juntas, inventam histórias, brincam suas experiências para pensar porque, entre outras razões, os silêncios e as explicações dos adultos não lhes são suficientes para dar conta da vida.
Como diz Rinaldo Voltolini, é uma criança que rompe o acordo tácito para gritar que o rei está nu. Há uma resistência da infância, como fenômeno político, e também de cada criança, como acontecimento, que aponta, sem cerimônia, para a parcialidade das ficções sobre o viver que os adultos lhes impõem, com seus sentidos sempre muito fechados. “A infância é mais poderosa do que a ficção”, sintetiza o escritor colombiano Andrés Barba, em seu impressionante livro, “República Luminosa”.
Entre pares, as crianças crescem e pensam. Sim, os adultos têm lugar, mas um outro. Pais e mães são importantes, mas não são tudo. Família pode ser importante, mas não esgota o desejo de companhia e de mundo.
No prolongado curso da quarentena, as crianças contam, para quem quiser ouvir, que o isolamento físico se tornou social porque violou profundamente a experiência com os outros: os de perto, os de longe, os que entendemos que são parecidos, os que são diferentes, os que vivem de formas diversas. Há muitas formulações sobre isso, e com todas elas, é preciso considerar que a vida pulsa no encontro com a alteridade.
Do ponto de vista da experiência das crianças, a escola não é casa, e casa não é escola.
Não dá e não é pra ser porque a ampliação do universo familiar precisa se instituir na dinâmica de crescimento das crianças. Numa escola, cada criança encontra pessoas outras, notícias sobre outros mundos, saberes outros sobre esse mundo que habitam. E é assim, encontrando tantos outros e alteridades, que as crianças se encontram. Se encontram no sentido de que é no encontro com os outros que se torna possível, para cada um, construir seu lugar no mundo. Fechadas em ambientes familiares ou de baixa possibilidade de circulação, as crianças estão dizendo: “a gente precisa se imundar pra crescer”. Dar ouvidos a isso e inventar formas de cuidado é, decididamente, um ato político e urgente.