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‘Mundo interior’: primeiro documentário brasileiro sobre autismo

Uma foto preto e branco mostra um garotinho de cerca de quatro anos sorrindo. Grafismos azuis contornam o seu rosto. Matéria sobre "Em um mundo interior", primeiro documentário brasileiro sobre autismo

Feche os olhos e imagine: como é uma pessoa com autismo? Mesmo que você não conheça ninguém com a condição, consegue defini-la em algumas palavras? Será que você pensou em isolamento, quietude, incomunicabilidade, frieza? Afinal, o autismo tem feições, comportamentos e gestos específicos? Tem um rosto, um trejeito, uma cor própria? O autismo tem só um jeito de ser?

É possível que muito daquilo que a maior parte das pessoas pensa sobre esse transtorno seja pautado por uma série de ideias social e culturalmente construídas que nem sempre condizem com a realidade. A palavra “espectro”, que acompanha a nominação oficial da condição cunhada pela Organização Mundial de Saúde (TEA – Transtorno do Espectro Autista), dá a pista: o autismo se dá de muitas formas, e se manifesta de maneiras muito distintas de um indivíduo para o outro. Por isso, é tão complexo e sensível retratá-lo.

Foi para ajudar a desconstruir estereótipos que só reforçam o preconceito e mostrar que o espectro autista configura todo um universo a ser descoberto, respeitado e incluído na sociedade, que os cineastas Flavio Frederico e Mariana Pamplona realizaram o documentário “Em um mundo interior“, que participou da seleção oficial do Festival É Tudo Verdade deste ano.

Para pontuar a importância de debater o assunto neste Dia Internacional de Conscientização do Autismo – celebrado todo dia 2 de abril, o Lunetas conta sobre o processo de criação do filme, que é o primeiro longa-metragem brasileiro estritamente sobre autismo.

Divulgação

“Em um mundo interior”: o filme compõe um retrato dos muitos autismos possíveis a partir do dia a dia de sete famílias brasileiras

Uma condição, múltiplos retratos

Os realizadores definem o filme como um “mosaico de histórias” conectadas pelo diagnóstico do autismo, tendo como ponto comum a perspectiva da inclusão e uma única certeza: cada sujeito com autismo é diferente do outro. Não por acaso, a trilha sonora da abertura é “O quereres”, de Caetano Veloso: “onde queres descanso, sou desejo“. A questão do “eu queria que meu filho que…” permeia todo o filme e remete diretamente ao chamado “luto do filho idealizado“, comum após o diagnóstico.

A provocação que fica é: por que idealizamos as crianças – típicas ou atípicas -, se cada uma vai desenvolver sua própria subjetividade? Uma reflexão que se estende não só para pais de crianças com deficiências, transtornos ou limitações específicas, mas para a sociedade em geral.

O filme apresenta a história de sete famílias de diferentes classes sociais e regiões do país, que compartilham com o espectador a rotina de Enzo, Julia, Roberto, Igor, Isabela, Mathias e Eric, crianças e adolescentes cujas idades variam entre três e 18 anos.

“A ideia é mostrar como uma pessoa com autismo pode levar uma vida social normal – trabalhar, estudar, se relacionar – mas que também há dificuldades que não devem ser ignoradas”

Ou seja, não se trata de romantizar a condição, e sim de uma proposta de diálogo aprofundado que parte do cotidiano real das famílias.

Com isso, o documentário levanta uma questão ainda maior: como cada família lida com as expectativas e frustrações diante do diagnóstico, do tratamento e dos resultados – ou falta deles?

Para isso, alguns cuidados foram tomados, com sensibilidade. Uma destas escolhas foi escolher o vlogger Marcos Petry – autor do canal Diário de um Autista, para ser consultor durante o pré-lançamento do filme.

Conhecido por desmistificar o padrão de comportamento autista que ainda existe na cabeça de muitas pessoas – como o vídeo “Coisas que todo autista gostaria que você soubesse” -, Marcos contribuiu criando e validando conteúdos de divulgação para as redes sociais e para a imprensa. A proposta é valorizar o lugar de fala da pessoa que vivencia a condição, sem recair em noções preconcebidas.

Outro diferencial do filme é proporcionar o protagonismo do sujeito autista durante o processo de filmagem, que resulta em um retrato ainda mais fiel ao que acontece dentro de cada pessoa que lida com a diferença em uma sociedade tão marcada pelo desejo de normatização. Para isso, os cineastas entregaram câmeras nas mãos dos personagens, incluindo as crianças.

Saiba mais sobre o primeiro documentário brasileiro sobre autismo na entrevista a seguir:

Lunetas – De onde veio o desejo de se debruçar sobre a temática do autismo?
Mariana Pamplona – A ideia de fazer esse filme nasceu de um desejo antigo, de fazer um documentário sobre crianças que tivessem algum tipo de dificuldade. Ou seja, crianças que não tivessem uma vida fácil e que tivessem que superar obstáculos pra conseguir estar no mundo. O tema do autismo apareceu durante estas pesquisas. O autismo não tem cura, não tem causas definidas. Existem apenas hipóteses, algumas mais aceitas, outras menos.

“Não existe no mundo um autista igual ao outro”

“O espectro do autismo é muito amplo, ou seja, existem graus muito diferentes do transtorno. Claro que existem algumas características em comum, mas cada autista é um ser humano completamente único.

“As pessoas de um modo geral não sabem o que é o autismo e muito menos como lidar com ele”

Flavio Frederico – Eu e Mariana tínhamos acabado de lançar o longa ‘Em busca de Iara’ e estávamos pensando qual seria o nosso próximo documentário. Foi quando a Mariana veio com a ideia de fazer um filme com crianças. Pensei: ‘que ótimo! Até que enfim um filme leve…’. Mas logo ela me falou: ‘na verdade, crianças com algum tipo de dificuldade’. Sempre gostei de fazer filmes que possam de alguma forma contribuir pra um mundo melhor.

Então, ela começou a pesquisar possibilidades e se deparou com o autismo. Nos debruçamos sobre textos, livros e filmes, e logo percebemos a riqueza desse tema – e ao mesmo tempo a urgência de se falar sobre ele. No Brasil e no mundo, pesquisas tentam decifrar o autismo ao mesmo tempo em que legislações inclusivas são criadas ou modificadas. Como a ideia inicial era retratar crianças no filme, partimos para a proposta de tentar uma aproximação do universo interior dessas crianças tão especiais.

Lunetas – Quais os aspectos mais marcantes e os principais desafios ao longo dessa imersão?
FF – Queríamos fazer um documentário sobre pessoas, e por isso um dos momentos mais importantes foi a pesquisa dos personagens, o casting. Queríamos crianças de diferentes gêneros, idades, classes sociais, de algumas cidades brasileiras e com diferentes graus do transtorno, para realmente compor um micropanorama desse universo.

Esse processo é bastante demorado e difícil, porque a maioria dos pais não queria expor seus filhos. Aos poucos, fomos encontrando esses personagens e nos apaixonando por essas crianças tão únicas. Nessa escolha, tínhamos uma única certeza: todas as crianças precisariam estar de alguma forma em um contexto de melhora. Queríamos que o filme fizesse um retrato realista e próximo das crianças autistas brasileiras, mas que seu recorte fosse afetuoso, que transmitisse esperança e, principalmente, ajudasse na inclusão dessas crianças na sociedade. Esse processo de escolha dos sete personagens deve ter durado cerca de dois anos.

MP – Uma coisa muito marcante e surpreendente foi o quanto essas crianças se envolveram com a equipe durante as filmagens. Existe um estereótipo de que os autistas são frios. Mas durante todo esse processo pude perceber que de frios eles não têm nada. Mesmo o Betinho, que tem um grau de comprometimento bastante severo, acabou se relacionando do jeito dele com a gente.

“Uma coisa que me impressionou muito foi descobrir a força que os pais dessas crianças têm”

Todos os dias eles acordam e têm uma maratona física e emocional para cumprir. A disposição dessas pessoas e também dos especialistas que fazem as diversas terapias é impressionante. Quando uma criança autista consegue superar uma barreira é a coisa mais linda!

Um dos principais desafios foi o de atrapalhar o mínimo possível o cotidiano e a vida daquelas famílias. É claro que a gente sempre atrapalha um pouco, mas tentamos deixar as crianças o mais à vontade possível. Nossa equipe era pequena e bastante silenciosa.

Lunetas – Como avaliam a experiência de entregar câmeras às crianças durante o processo do filme?
FF – A ideia de entregar as câmeras às crianças surgiu ainda no roteiro. O título “Em um mundo interior” exprime o desejo que tínhamos de tentar entrar, nem que fosse tangencialmente, nesse mundo dos personagens. Uma das formas que queríamos tentar essa aproximação era utilizar o material produzido pelas crianças.

Então surgiu a ideia de dar uma câmera para cada criança. Desde o princípio, fomos alertados por especialistas que, muito provavelmente, poucos deles realmente filmariam de verdade. Mas, no decorrer do processo, percebemos a enorme responsabilidade que tínhamos, ao fazer o primeiro longa-metragem brasileiro sobre autismo, especialmente no contexto atual, em que diversas correntes antagônicas se debruçam sobre o tema.

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Nem todo autista é isolado e retraído, há também muito carinho e afeto na convivência com pessoas do TEA, e é isso que o filme também mostra

Logo entendemos que teríamos que abrir mão de possíveis experiências mais sensoriais, que ocupariam um longo espaço no filme, para que ele tivesse uma característica um pouco mais didática, afinal o tema é bastante desconhecido da maioria das pessoas. Apesar disso, continuamos investindo nas câmeras dando uma para cada um dos personagens, acreditando que os poucos momentos que surgissem seriam muito especiais. E foi o que de fato ocorreu, especialmente com a Júlia, que fez um uso muito interessante da câmera, gerando, na minha opinião, um dos momentos mais poéticos do filme. Assim como Igor, que naturalmente já tem aptidão com objetos eletroeletrônicos.

MP – A gente já esperava o que de fato aconteceu: algumas crianças usaram as câmeras e outras não. Algumas adoraram o objeto, outras o ignoraram completamente. Os vídeos entram de forma natural, quando estamos na casa ou em algum lugar do cotidiano da criança e ela, por alguma razão, decide registrar alguma coisa durante o processo de filmagem.

Lunetas – Que cuidados nortearam o processo? Que caminhos decidiram evitar?
FF – A ideia sempre foi utilizar uma abordagem extremamente respeitosa e sem um viés predefinido de abordagem do conteúdo. Nos preocupamos em ouvir as diferentes correntes que lidam com a desordem neurológica, com diferentes abordagens, mas ao mesmo tempo estabelecemos um critério extremamente seletivo de quais seriam os especialistas que participariam do filme. Eles precisariam necessariamente estar ligados aos personagens e já terem feito algum tipo de atividade regular com eles.

Da mesma forma, nos preocupamos em respeitar o espaço dessas crianças. Fizemos questão de conhecê-las melhor antes da filmagem. Queríamos entendê-las, ser respeitados por elas. Que de alguma forma tivéssemos sido convidados a entrar em suas vidas, durante alguns dias. No dia da filmagem, orientamos toda a equipe a agir de forma delicada, respeitosa. Na verdade, toda a equipe já foi escolhida pensando em pessoas que naturalmente teriam um bom relacionamento com as crianças.

O próprio equipamento de filmagem escolhido também foi pensado para incomodar o mínimo possível os personagens e a dinâmica natural dos ambientes retratados. Utilizamos pequenas câmeras DSL R, que poderiam se aproximar dos personagens sem causar estranhamento. Chegamos a emprestar essas câmeras para eles. No processo de montagem, procuramos também respeitar os pontos de vista, alguns momentos especiais e, principalmente, evitar caminhos fáceis de sentimentalismos, que poderiam quebrar essa sutileza que acabou sendo reconhecida pela crítica.

MP – Certamente, o caminho a ser evitado foi o da pieguice, do sentimentalismo barato que tenta a qualquer custo tirar lágrimas do espectador.

“A gente tentou fazer uma abordagem que não esconde a dor e as dificuldades das famílias, mas que mostre sempre um contexto de melhora, de alegria, de positividade”

Apesar de todas as dificuldades, cada uma destas crianças está evoluindo e melhorando. Estas crianças e estas famílias são muito fortes! Muito mais fortes do que eu imaginei quando comecei o trabalho.

Lunetas – Segundo a Organização Mundial de Saúde, no Brasil, cerca de 2 milhões de pessoas apresentam algum grau do transtorno e ele segue considerado uma das mais enigmáticas desordens neurológicas. Diante desse cenário, qual a contribuição e o legado de “Em um mundo interior”?
FF – Acredito que o filme pode cumprir um papel muito importante para ampliar a discussão do tema na sociedade e ajudar na inclusão de crianças com o transtorno do espectro autista na sociedade. Espero que seja apenas o primeiro de uma série de filmes e outras produções culturais que possam ajudar a incluir os indivíduos autistas.

MP – A gente espera poder colaborar para que a sociedade se aproxime mais do tema, e entenda um pouco melhor o que é o autismo e como ele pode ser tratado.

“Quanto mais aprendermos a incluir o diferente, mais justa e democrática a nossa sociedade vai se tornar”

Assista ao trailer do filme:

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