No dia 13 de março de 2019, uma quarta-feira, dois jovens de 17 e 25 anos, cruzaram o mesmo portão por onde entraram um dia para estudar, e dispararam dezenas de tiros contra colegas, professores e funcionários. No total, foram dez mortos – nove estudantes e um comerciante, tio de um dos jovens que articulou o ato. O saldo, porém, não se pode calcular. Não é numérico, pois não se trata de um número absoluto. “O massacre de Suzano“, como já ficou conhecido o assassinato em massa cujo cenário foi a Escola Estadual Professor Raul Brasil, na cidade de Suzano, na grande São Paulo, silenciou o Brasil em um estado de luto. Um luto que dói e ao mesmo tempo desperta urgências sociais: precisamos falar sobre a cultura da violência.
Por trás de de um acontecimento como esse, inumeráveis questões. O que levou esses jovens a praticarem um ato de violência dessa proporção, e logo após tirarem a própria vida? Que feridas psíquicas, emocionais e/ou sociais motivam o comportamento homicida em adolescentes? Como o ambiente escolar segue sua rotina após um sofrimento dessa dimensão? Quem cuida de quem fica?
Para pensar junto nesses aspectos e iluminar pontos sensíveis dessa conversa, com o cuidado e a sensibilidade que o caso demanda, fomos buscar quem mais entende de comportamento humano, sobretudo de jovens em formação. Isabel Gervitz é psicanalista. Vanessa Helena Campos de Miranda é doutora em Psicologia da Educação. Duas mulheres que trabalham observando a mente humana a partir de como ela se mostra por fora. O que elas podem nos dizer sobre o ocorrido?
Saúde mental na juventude
Não é fácil ser jovem. Assim começamos a refletir. Não é fácil estar nesse estado de transformações e acomodações psicossociais. Não somos mais quem éramos e não sabemos o que seremos. Foi desse pensamento que partimos. No entanto, por que esses jovens decidiram dar vazão aos seus impulsos dessa forma, e não de outra?
Não é fácil ser jovem. São muitas dores novas e profundas. Mas o que leva um adolescente a atirar em outros e em si mesmo? Por que essa saída, e não outra? Qual o impacto da cultura da violência para a infância e formação do indivíduo? Foram essas as perguntas que fizemos às especialistas no assunto.
Para Vanessa, antes mesmo de começar, já aí existe um equívoco, muito comum, de achar que os jovens estão de fato extravasando seus sentimentos.
“Será que a muitos adolescentes lhes é dada a oportunidade de aprender sobre si mesmo a ponto de identificar suas dores, medos, angústias e frustrações? Acho que podíamos começar a conversar pensando nisso. Se existisse um lugar pra dor, se a dor fosse aceita, se a considerássemos como elemento constituinte, presente nas relações interpessoais, parte integrante da partilha e convivência com o outro, como agiríamos?”, pondera.
“O reconhecimento das dores emocionais é uma das formas de cuidado psíquico que deve ser ofertado aos adolescentes como uma medida de prevenção”
De acordo com a psicóloga, trata-se de oferecer um olhar atencioso sobre sua saúde mental e as inúmeras possibilidades de sofrimento psíquico que pode estar vivendo.
Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), em âmbito global, cerca de 800 mil pessoas morrem por suicídio a cada ano – sendo essa a segunda principal causa de morte entre pessoas com idade entre 15 e 29 anos. Ou seja, sobretudo entre os jovens, é um problema real e latente. Não por acaso, é uma das condições prioritárias cobertas pelo Mental Health Gap Action Programme (mhGAP), programa da OMS que visa ampliar a oferta de serviços oferecidos psicossociais oferecidos por cada país.
Relação de causa e efeito
No caso de Suzano, não se pode afirmar com segurança quais eram as condições psíquicas dos jovens envolvidos no massacre, afinal, especulações podem cair no engano de simplificar uma questão que é fato muito mais complexa.
“O sofrimento é parte inerente à condição humana e cada sujeito encontra uma saída muito própria para lidar com ele”, diz Isabel Gervitz.
“Quando uma pessoa jovem tira a própria vida de forma violenta tendemos a nos agarrar em motivos racionais para tentar compreender tal ato e para aplacar nossa própria angústia diante do horror. Surgem as mais diversas explicações: “Ah! Ele sofria bullying e era abandonado pelos pais” ou “Ele jogava videogames violentos”, etc. É claro que esses fatores merecem ser questionados e levantados, mas não só”, explica.
“Ao falarmos de experiências subjetivas, as relações de causa e consequência são insuficientes para esclarecer o que se passa”
“Um fato não tem efeitos específicos por si só. Se fosse assim, todas as crianças que vivenciam algum tipo de abandono seriam violentas. Mas evidentemente não se pode afirmar isso”, afirma.
Por outro lado, se pode cuidar das condições, isto sim, de toda a comunidade escolar que agora precisará retomar suas atividades após um trauma como esse.
Cultura da violência
“Não é a violência que cria a cultura, mas é a cultura que define o que é violência”, diz a socióloga Luiza Bairros, em um dossiê sobre o tema raízes da violência, publicado pela Agência Patrícia Galvão.
A citação acima nos ajuda a pensar onde estamos nesse processo todo. No caso do assunto que estamos discutindo aqui, onde a criança e o jovem está. Discursos, atitudes, comportamentos, mídia, momento político, status social: tudo isso faz parte daquilo que define a cultura em que estamos inseridos. Enquanto sujeitos, somos instigados a todo mundo a responder a ela, seja como parte integrada ou marginalizada. Como indivíduos em formação, os jovens são mais suscetíveis a tudo isso?
“Os adolescentes e jovens estão em uma fase de busca pelo seu lugar no mundo. Eles irão construir seu caminho a partir de identificações com figuras de seu convívio e também com modelos sociais. Enquanto sociedade temos valorizado lideranças e influências que se afirmam pela violência e precisamos, agora, assumir responsabilidade por isso. Será que só conseguimos respeitar quando tememos?”, afirma Isabel.
“Vivemos um momento em que as “soluções” passam, muitas vezes, pela eliminação do outro como forma de defesa de si mesmo. Vemos em diversos aspectos políticos e sociais a validação disso, por exemplo, quando a resposta para acabar com o crime é aniquilar o criminoso; a forma de lidar com a pobreza é afastando-a para as zonas periféricas; a saída para a situação dos refugiados de guerra é fechar as fronteiras; discursos de ódio são cotidianamente banalizados e assim por diante.
“A cultura da violência tem sido institucionalmente legitimada enquanto possibilidade para resolver questões sociais e interpessoais”
Ou seja, na prática, é como se houvesse um aval simbólico para agir barbaramente quando isso for justificável do ponto de vista individual.
Vanessa chama a atenção para o fato de que a construção identitária vem do coletivo, e ressalta como o referencial do que é certo e errado, bom ou ruim se transforma de acordo com essas perspectivas.
“Se nos constituímos enquanto indivíduos desde valores, práticas, limites e autorizações de uma cultura da violência seremos seu produto e seu instrumento de produção. O que hoje vemos como atos e comportamentos violentos passam a ser simplesmente atos e comportamentos cotidianos”, defende.
Complementando o que Isabel trouxe à tona sobre a naturalização de aniquilar o que é diferente e como esse comportamento afeta a noção de sociedade que se constrói, Vanessa atenta para os efeitos nocivos e potencialmente catastróficos que isso traz. Afinal, se fizermos um resgate histórico, social e cultural, veremos que muitas coisas que hoje entendemos como barbárie já foi visto como normal. Ou seja, o modo como as coisas eram, era justamente como se aceitava que elas fossem.
“O impacto da proliferação de uma cultura violenta é formar uma sociedade de indivíduos com permissão social e psíquica para destituir-se da responsabilidade de questionar-se sobre o bem comum, a coletividade, a igualdade de direitos à vida”, diz.
“A cultura da violência é individualista, segregadora, opressora, gera tensões, medo do outro, necessidade de proteção, isolamento e distanciamento”
Violência no Brasil têm gênero e cor
De acordo com o último Atlas da Violência, publicado pelo Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), 94,6% dos homicídios com uso de arma de fogo no Brasil acometem os homens, majoritariamente negros. “Uma das principais facetas da desigualdade racial no Brasil é a forte concentração de homicídios na população negra. Quando calculadas dentro de grupos populacionais de negros (pretos e pardos) e não negros (brancos, amarelos e indígenas), as taxas de homicídio revelam a magnitude da desigualdade”, diz o levantamento.
A pesquisa aponta para uma realidade que deve ser questionada: como foi construída essa masculinidade que aprendeu a agressão como forma de expressão, e que transforma os homens ao mesmo tempo em vítimas e principais agentes da violência? Por que, proporcionalmente, não há massacres cometidos por meninas e mulheres, e sim por meninos e jovens em formação, em sua maioria?
Enquanto pais, professores, cuidadores, mediadores e interessados no desenvolvimento das gerações atuais de crianças e adolescentes, a pergunta que fica – e talvez a mais urgente – é: que tipo de relações humanas pode se construir e se estruturar sob esses parâmetros?
Confira no infográfico a seguir algumas orientações práticas do terapeuta social e educador físico Reinaldo Nascimento, terapeuta social e cofundador do projeto Pedagogia de Emergência no Brasil: